quarta-feira, 11 de dezembro de 2013



A etiqueta de Francis Ford Coppola é a da megalomania, espécie de Abel Gance ou Erich von Stroheim dos seventies, mais parra do que uva? Já não há como escapar da fama, no entanto, o desmedido arquitecto da trilogia do Padrinho, o suicida operático de “Apocalypse Now”, o fantasista barroco e sonhador de “One from the Heart” ou “Dracula”, esse mesmo que fundou e afundou estúdios e impérios, pediu empréstimos sem garantias e a tantas zangas deu azo, foi na mesma medida um cultor de objectos subestimados porque mínimos, não condizentes com certas expectativas, colocados e colados simplesmente ao lado de uma personagem ou de um grupinho, escutando-lhe temores, tremores, medos que para fora não pulam. Sem barulho ou bandas-sonoras a não ser a da música da alma.

Existem mais do que dois ou três exemplos, entre o escondido técnico de som, do saxofone das ruínas e de um envergonhado romantismo que o fantasmático Gene Hackman desenrola em “The Conversation”, até aos soldadinhos de chumbo que se continuam a derreter em prantos nos instantes decisivos e tão fundos que assolam “Gardens of Stone”. Mas a minha pessoa e o seu testemunho pelo cinema e nada mais do que o cinema continua a ser o da lacrimosa, fragilíssima e pulsante Shirley Knight no luminoso e ao mesmo tempo tão opaco “The Rain People”. Letreiro tão lancinante como um “Meet Me in St Louis”, um “On a Clear Day You Can See Forever”, aquele “They Drive by Night”. Do rosto daquela criatura dispersa às paisagens de fim de estação, Francis Ford Coppola, o megalómano, o acusado esbanjador de formas e de emoções, assume-se um humilde topógrafo da solidão, das ambições autênticas, do desamparo sem luz ao fundo do beco, dos ritmos cardíacos ecoantes, desconsolados. Também um perdido à procura de algo, de coisas, qualquer coisa.

Precisamente o oposto do que na mesmíssima época Dennis Hopper procurava com “Easy Rider”. Ambos atravessando e cortando a América. Ambos em fuga para a frente de muita coisa, os dois foram geograficamente no sentido contrário, chegando a um ponto de encontro que os afastou ainda mais. Se Hopper incitava à revolta social, aos gritos, à provocação e a um individualismo destruidor, Shirley Knight, no filme chamada Natalie, lamente os ósculos soprados ao vento, o lusco-fusco das eternas redescobertas, as alegrias de outrora, dialogando com o silêncio. Parceira do Robert Eroica Dupea de “Five Easy Pieces”, da Wanda de Barbara Loden, dos nobres Stallones, da Delphine do “Le rayon vert” de Eric Rohmer. O farrapo de cabeça erguida do Travis no “Paris, Texas”, hummm, talvez. Dos anjos ou estropiados da esquina mais próxima. E, divagação minha ou débil crença de alguns sem medo de serem crentes e errarem, puramente Hawksianos, pois não se trata só de qualquer um deles se estar a borrifar, virar a cara ao mundo ou fugir das chamadas responsabilidades adultas, mas sim o assumirem por inteiro a atitude, darem a cara, fazerem brutamente, deixarem estupefactos os reguladores do meio; ilusões perdidas, mesmo que vacilem ou se contrariem indesejadamente. No fim nunca há cordas na garganta ou enforcamentos, e se os há metaforicamente, qualquer um deles age com mais violência e convicção do que qualquer radical dos filmes radicais. Claro que John Wayne não tinha destes pruídos nem se engasgava, mas ali era matar ou morrer literalmente, por muito que queiramos tapar estrelas mais próximas com peneiras. Neste outro mundo disfarçado ou diversamente encenado, surgem-nos estes seres, causalidades incompreensíveis, e a violência da coragem e da verdade interior que algures assoma ao todo, ou numa aresta e de raspão, precisamente. Se não vamos acreditar em coisa alguma, e aqui está o grande paradoxo para quem pensar nisto como só desacreditação, coisas assim, para dentro e para fora da tela, não valem para nada.

Primeiro plano, rente ao chão. Chuva, lixo e o som de muito ar. Segundo, gotas sozinhas, o fundo desfocado. Foca-se, surge-nos a casa. Depois baloiços, casa novamente. Entrámos num quarto e vemos um casal. Sentimos mal-estar, respira-se mal, corpos gelados. Mais gotas que vão ser visita recorrente. A água de um banho esperançoso, num conto tão aquoso e embaciado. Nada parece ajudar e surge uma inevitável carta. Um último beijo ou até logo, um último toque, a fuga. No caminho dela, a visita parental de aconselhamento ou nada disso. As primeiras recordações e flashs que teimarão em regressar sem pré-aviso. Casamentos, danças e festividades que prefiguram tanto do que Francis fará brevemente. Periferias, arredores, vias-rápidas, coisas sem muita graça e caminhos para lado nenhum ou para os cinco, ou vinte ou algumas horas sozinha que Natalie deseja. Túneis e um fade a negro que corta para a cabine telefónica que não é confessionário. Tão pouco tempo e ferida tão grave. A partir daí não se esmiuça, ou sente-se ou não se sente.

Fundamental essa chamada, longuíssimo plano de duração essencial, onde ela se despe toda, para do outro lado da linha acontecer o que tantas das vezes acontece a estes nus, o marido pensa que ela está doente. Jamais também psicodrama ou reflexão sobre a depressão. No quarto de motel onde ela relaxa e se esconde do lá de fora que assusta, nada a fazer, nada de nada, a não ser as batalhas eternas com a mente e as imagens inapagáveis, invencíveis com as suas ondas sonoras a picarem para lá do conforme, as que não se cortam como numa mesa de montagem. Por isso a duração volta-lhe a ser fiel, o ponto de vista que lhe cede o espaço necessário e o ar, também. Lá sai do casulo e o acaso prega a partida do costume. Pessoas de chuva, gente feita de chuva, que quando choram desaparecem juntos, porque choram tudo para fora, desvanecem-se, ou coisa parecida. É o que já foi herói e decidiu varrer folhas livres quem o diz. Gente que ele certa vez avistou por aí, real, comum. Bela, com certeza transparente.

Jimmy Kilgannon, apelidado de Killer e encorpado por James Caan no seu auge, é ele que aproveita a boleia hesitante dela e faz o tal destino começar a revirar. Partem por ali abaixo, entre comboios e carreiros da mitologia da americana, e já são dois como diria Gaston Bachelard. Ela inventa um novo nome para ele lhe chamar, ele vai nessa, começam reinvenções logo de partida. Brincam como crianças, por nada, sem esperteza daquela corrompida. Tira-se roupa, bailam sem orquestra, já brigam e amuam. Parecem namoradinhos ou união prometida. Trata-a como uma princesa, devolve-lhe a beleza e a coroa simples, um arco-íris fulgente como as chuvadas que teimam. E ele também começa a ter os seus flashes, como outros, e surge-lhe o brilhante jogador de futebol que foi, o ídolo agora considerado atrasado mental por quem antes lhe deu o corpo e assegurou tudo. E Francis, o machão, o egocêntrico, surpreendentemente, torna-se cineasta da Mulher no sentido fabuloso que importa, sem feminismos ou bandeiras inertes, e oferece, como Minnelli ou Mizoguchi ou Cukor, planos só de e para Natalie, para Shirley, espelhos e brilhos a condizer com a abstracção salvadora deste salvador filme.

Vão por ali fora e acontecem coisas tristes e coisas alegres. Prodígios e lamentos. A morte sobeja inesperada como sempre ou nem por isso. Fábulas como no cinema de género ou no pavor quotidiano. Patético e trágico de mão dada e indestrinçáveis. O resto não sei e não quero insistir muito para saber. Começo por não saber por que ela lhe pede coisas no motel em que passam a primeira noite sem fazerem amor físico, as causas da fúria ainda breve. Por que ela depois o insulta muito mais quando o decide abandonar na berma. Por que o escorraça tantas vezes, o chama sempre, o acaricia sem lição. Por que ela fugiu de início. Causas e menos causas e não sei mais. Sei cada vez menos. Mas percebo, algumas coisas. Quando Killer lhe diz na rodoviária que espera por nada e Natalie lhe confessa o real nome. São necessidades bruscas. E não se conseguem separar. E Natalie insulta-se a si mesmo. Provoca e aparece a indómita ciumeira. Mente. Não sabe se para o menino que não cresceu ou foi diminuindo há-de ser mãe ou a melhor amiga. Não sabem se se amam ou gostam só. É lindo, isto, isto de certas não certezas.

E as novas chamadas para o marido, em que ela fala chinês e ele russo ou assim. A gravidez que nada importa e no final quando o polícia (olha, hehe, já é o genial Robert Duvall) com quem vai para a cama trata a filha como lixo já parece importar. Contradições sempre. Esse polícia que proporciona um momento de aparente enamoramento e de assomo lírico na cena da multa, cabelos ao vento e ângulos contra o céu, mas que se desgraça em esquemas podres e baixarias. Mas sei lá se o posso culpar? Posso culpar Killer quando o parte todo como se ainda fosse jogador? Killer confunde o inconfundível? Ou essa menina possuída que diz ao menino que é o mais inteligente que conheceu mas lhe espeta tiros sem dó? Sei lá, vou percebendo umas coisas, outras zero. E que a dúvida é centro destas pinceladas impressionistas e fortes. A câmara por si só não tira conclusão, apenas capta, guarda, faz ver e rever, o pior é o resto, certas cabecinhas pensadoras. Vamos com ela neste percurso e circulação em que o presente se reflete e ramifica para todos os lados, tornando-se ou reconstruindo-se sempre presente. (Linearidade e circulatório, o claro e o escuro e os perfis entrevistos na cena da roulotte, a vida?) Lá está, desfocando, focando, e assim vai. De Nova Iorque para Oeste e se mais houvesse mais se galgaria. Era a intenção dela, acaba em Pietà no escuro calado da noite. E isto vai passando. E um tipo sabe cada vez menos, mas às vezes, uma luz dali, um cruzar de braços dacolá, o corpo mal posicionado…


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