segunda-feira, 20 de julho de 2015



"Ana", António Reis e Margarida Cordeiro, 1982



Onde está a menina da blusa de chita
Saia de riscado e avental aos folhos?
Não sei se era feia ou bonita
Só sei que a esperança brilhava em seus olhos.

Parece-me vê-la! Quando ao entardecer
Ela regressava de mondar os trigais.
Alta, muito delgada, e por assim ser
Riam, troçavam-na todos os demais.

Serena, ela sorria, sorria,
Flor singela, tal qual as do prado.
Mondando e ceifando, mil sonhos tecia
E era princesa dum castelo encantado.

Onde está menina do prado?

Pelos caminhos distantes do tempo
Não ouves que te chama, que te chora o vento? 

"Menina do Prado", Virgínia Maria Dias



Dos mais de cem créditos que Edward Ludwig apresenta como cineasta em vários formatos, conhecendo-se bem as pequenas grandes obras-primas que vão de "Wake of the Red Witch" a "The Black Scorpion", este bem vivido pioneiro que começou nos anos vinte da nascença do cinema terá certamente infindáveis quilómetros de metragem fascinante e indescritível por achar. E fascínio é uma palavra que assenta perfeitamente em experiências assim inéditas e reveladoras. Então, é com grande comoção que se acolhe e se mergulha em cada novo mundo, em cada paraíso já quase esquecido ou mesmo trucidado. "Jivaro", também dos anos cinquenta, descoberto agora, espanta pelo modo como os sentimentos vibram e se digladiam com o meio que os acolhe e enforma; espanta como as formas desta arte - que parece agora seca e esgotada pelo excesso de imagens e de conceitos aleatórios - explodem e se contêm, relacionam e dependem, em suma, existem pois há um fundo sensível que as fecunda, as concebe, as nutre num desenvolvimento constante.

Fernando Lamas, o actor perfeito para tais arenas, é Rio Galdez, metido numa selva longe da civilização, para ganhar a vida perigosamente em viagens e trocas dúbias e, fatalmente, para tentar esquecer o amor que torna dos ecos da infância. Já a questão de vida e de morte se tornou pasmaceira e calina quotidiana quando a mulher que também em busca lá chega vai provocar e precipitar o turbilhão enterrado. Sem grandes novidades, aparecem as noites longas e claras, as perguntas cósmicas e evidentes, o calor e o gelo conforme a consciência e as quedas do credo que se considerava bem fincado. Quando nos tentamos convencer ou conciliar com o que não acreditamos e não sentimos, é o princípio do fim. Dali, do fim, só lançando-nos a uma prova gigantesca e nela tirando conclusões gigantescas poderemos vislumbrar uma aurora. Que é o que vai acontecer à seguríssima, depois reticente e finalmente estropiada Alice Parker, a que se meteu com Rio Galdez até já não haver volta a dar.

O meio onde cavalga a acção é um caldeirão tão puro como exótico e venenoso, no qual um sem fim de almas aflitas clamam encharcadas em álcool, em alienação e desconhecido pelo golpe que tudo faça sangrar. Na excepção permitida a cada um, a descoberta e progressão fulminante da paixão vai ser acompanhada - ou comentada, conforme a moral - pela indomável manifestação da natureza, caindo nesse terminal ombrear os mal-entendidos e as mentiras que são o alçapão eterno da perdição e do abandono. Da noite de cerveja quente e da ração de combate até ao piano medidor das temperaturas, eclodindo irreversivelmente no plutónico vento final depois dos animais e das águas insuportavelmente realistas e imemoriais - em tensões e catarses elementares que me transportam para o raio de "Untamed" de Henry King ou para as areias do "Suez" de Alan Dwan - todas as virtudes e pecados, santos e demónios, beijos com balas se vão mesclar na carne, no ouro, na libertação e poder, consumindo-se um cosmos rumo a um dia novo. De onde ninguém sai verdadeiramente maculado, tanto pelo ferimento alheio como pelo próprio. Numa dialéctica que une com o brilho final, condição olhada de frente. Edward Ludwig, essencial, só fala do contemporâneo.


sábado, 18 de julho de 2015



"God's Little Acre" filmado por Anthony Mann começa e acaba no mesmo quadro; as gentes lá por dentro tantas voltas e cambalhotas dão que tudo fica igual pelos delirantes ziguezagues e desejos. Sede de ouro, sede de sexo, mas também de fúria justiceira, de onde o carregado determinismo pulsional é complexificado num humanismo tão instintivo como o seu contrário. Raramente se escancarou assim a carne e a revolta, mesmo que apócrifamente, unindo-se o animalesco de Erskine Caldwell ao pragmatismo sabido de Mann; transfiguração que salvaguarda o fundo de cada um de nós em cada, cada, situação.

Mas falando em humanismo, ou seja, em sentimentos, e em certezas (verbo saber) com "The Glenn Miller Story" atinge-se montanhas e céus da dimensão e dos tons do John Ford de "The Long Gray Line". Tudo o que se poderia esperar do gesto biográfico corrente e logo enaltecedor, a música em crescendo no momento da morte do artista ou o esganiçamento interior deste na dúvida artística, fica para o nosso coração compor; mesmo o enlevo hagiográfico que cairia que nem gingas não procede, esta é a história do extraordinário homem comum nas suas aventuras pelo sincero e pelo perigoso. Mann vai pelas vias da reacção, do passo seguinte, do universal. "Não eleves a fé à altura do voo dos pássaros e não rastejarás depois como os vermes", recita Tom Joad algures nas Vinhas da Ira, não sabendo se tal pertence às escrituras ou ao "The Winning of Barbara Worth". O Glenn Miller aceite por James Stewart (que com Mann vai laconicamente e pacificamente de um lado ao outro dos reinos cimeiros cá de baixo) tem toda a calma e paciência do mundo.

Verga as costelas numa gasolineira para poder tirar o seu instrumento musical do prego ou para poder comer, e, mais adiante, quando tem cada vez mais dúvidas se vai ou não vai conseguir dar o passo superior na sua criação, não se apoquenta; primeiro, pois compreende que se lá chegar é pela persistência, suor, merecimento e por ter calcado muito e experimentado horizontes vários. E compreende igualmente que se lá não chegar é somente lógico, que as coisas tomam o seu curso e não se devem forçar pois de inutilidades está o palco cheio. Saber por fim que a revolução pode ser simplesmente a fidelidade, como os agricultores que viram todos os milagres citados nas suas colheitas; saber que não existe apenas o "eu" em urgência, que o "nós" está na partida; depois, ou melhor, antes, pois no reinicio da sua vida juntou-se à única mulher que sempre admitiu, numa relação perfeita e delicada onde o sofrimento e a ausência estão na mesma face da presença e do amor; amor guardado e indomável apurado no ápice da criação. Então, de forma tão natural que parece fácil, arrisca-se algumas vezes o pescoço, trabalha-se noites a fio, ignoram-se as queixas, sono e dor, recebe-se e dá-se as mãos após as quedas; a disponibilidade perante o rumor interior e a violência latente do imprevisto, olhando e escutando detidamente, afagando o medo como aninhando o sucesso, e a força da verdade e da emoção surge sem margem para dúvidas no seu esplendor de justeza e de mistério em marcha. Que no auge Glenn Miller e a sua banda se meta na guerra e nas bombas, jamais é para conquistar a capa do super-herói, medalhas ou discos vendidos como pão, mas sim para no longe dar a sentir a casa de cada um bem perto, o tal regresso mesmo que impossível, como desígnio último e total. Como o amor entre Glenn e Hellen, escrito para além do firmamento.

Se fosse preciso falar da técnica do habilidoso (habilidoso tal como os trabalhadores da construção civil auguram), esse saber fazer da posta em cena do cinema, bastaria o momento Louis Armstrong, nas sua duração e peso saturno e revelador, essas demenciais pinceladas, esse jogo corporal e ânsias de puro prazer surgidos das entranhas e não do botão do software da máxima tecnologia de ponta. Mas técnica e ser estão unidos sem questões e dispensam análises do género.

Quando hoje em dia a pressa anda aliada ao mais inútil tipo de sede, a sede do vedetismo e do poder e do espezinhamento - no cinema acabam-se filmes às três pancadas para brilharem instantaneamente no festival mais in / nos antros ou pocilgas "políticas" estende-se o cadafalso ao invés da mão ou da face e ludibriam-se as notas podres além Grécia - o olhar de alguns Glenn Millers por aí ignorados e humilhados não podem ser exterminados, sobre risco da autodestruição cada vez mais prometida pela estirpe. Assim, há que lutar por grandezas de valores que no secreto suspiro atingem o épico, há que ver bem para no meio de tanto lixo resgatar a essência. Essencial que de tão deformado deixou de ser o natural, certo e sagrado. Fiando-nos, ainda e sempre, no brilho das estrelas para acharmos a exacta perspectiva.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

"O assunto é o mesmo que cada homem tem utilizado como tema: a existência, o equilíbrio, a batalha e a vitória, na eterna guerra entre a sabedoria e a ignorância, a luz e a treva, o bem e o mal".

John Steinbeck, "A Leste do Paraíso"

quarta-feira, 15 de julho de 2015



Por alturas de "Kaze no naka no kodomo" Hiroshi Shimizu trouxe igualmente à luz "Koi mo wasurete" e ambos se afastam e complementam na tragédia surda, fina e lógica (absurda) da criança a braços com as misérias da vida adulta, conscienciosa, controlada. É ela, criança, a estóica, seca de rosto na hecatombe, sempre a caminhar, resolvendo o que há para resolver e ignorando o que é para ignorar. Quando entramos, acolhe-nos um encantamento cantado, na saída, o mesmo encantamento e canto surgem, envoltos nessas transparências ocultas e rescendentes, esses fulgores diáfanos celestes ou simplesmente casuais do quotidiano. E é nessa corrente que uma mulher-da-vida, o seu filho e um homem vindo das névoas (do nada) vão estar ao mesmo nível de perpétua busca e perdição. É precioso e desarmante que Shimizu mais uma vez não estabeleça os degraus de consciência e os estatutos como os adultos ensinaram que se faça, para mais do que a inteligência ser uma questão de humanismo (sentimento) a prevalecer. A mãe reza as promessas obrigatórias, e tem as suas razões, o filho age todo solto e acossado; entre eles, o tal homem, fantasma ou aceitando a condição ontológica, complexo anjo caído que no primeiro encontro com a Mãe - no mais belo momento do conto e na mais bela história de amor por nada do mundo - nada pergunta, justifica ou sugere, e ela com ele num enlace de instante perfeito que não voltará. Naturalmente, a bifurcação que sempre construímos a vociferar, as crianças a esvoaçarem descobertas, o Pai a dizer ao filho para não ser "responsável", os alicerces sociais a tremerem (pobre massa de que são feitos) e a sensibilidade (último reduto) a queimar para redenções. Sempre na morte mais funda e no amor mais fundo, sempre entrelaçados, natureza suprema.

Dois filmes de correspondências sublimes e terríficas, onde a figura de estilo não é o plano sequência, a escala não é a média, o ritmo não é cadenciado, a acção quebrada e seguida na elipse não é compêndio de modernidade. Tudo neste paraíso está aquém ou além dos chavões e da linguagem defensiva - como em "Ordet" - modelando-se no desconhecido. Desconhecido, duração, paixão, tudo vias de salvação que é por onde este cinema nos leva. Sem obrigações.

terça-feira, 14 de julho de 2015


Quando no final de "Kaze no naka no kodomo" que Hiroshi Shimizu trouxe à vida em 1937 a criança que seguimos mais de perto corre atrás do circo que chegou ao seu reino, nesse momento tão feliz e delicado, ela já tem no seu interior avisado e no seu corpo marcado o espectáculo das regras, das confianças, esse sistema de valores e de compensações sempre tão evoluído e feito pelos melhores de nós. Evidentemente que toda a sinopse e "análise séria" terá de marcar esta demanda com as melhores cauções de um Flaubert, educação sentimental mastigada, passagens e agruras de infância, o ponto de vista do petiz no mundo gigantesco e a criatividade do artista para com tema tão batido. Mas a cantiga pia e afina para lá do óbvio, do "pensante" e do racional: se a gravidade que desagua na tragédia ao modo abafado, concentrado e rarefeito de Mizoguchi ou de Naruse parece posta de lado, assim como as fatalidades e aceitações entre os espaços vazios da morte e da vida em Ozu, o que não se vê - como no plano estelar em que os miúdos olham as estrelas que a câmara não capta e são iluminados por elas como nunca as vimos iluminar e brilhar em cinema - a prisão do Pai inocente que adorava o filho travesso por este não conhecer o significado das aparências e das máscaras, os mecanismos de humilhação, depreendimentos e silogismos, ferem com a finura e o intolerável de um bisturi que abre um fígado ou um estômago. Fígado ou estômago, ou coração e tripas, que são as corridas silenciosas dos anjos ou bichos ainda alvos, ainda antes da modulação oficiosa dos melhores de nós; as suas aparições fantasmais e fantásticas antes da decência (decadência); armadilhas e travessuras fabulosas e por si só absolutamente opostas à respeitabilidade de escritório ou tribunal ou de escola. Por isso tanto se sobe a árvores, vai-se rio abaixo na banheira arrancada à casa de banho, prefere-se os monstros das águas aos fatos compostos dos adultos mais acabados e brilhantes que calcam o macadame. A criança que das outras se nos foi destacada para a vermos melhor através da lupa única, precisa e preciosa do cinematógrafo será certamente especial pois tão verde possui as armaduras dos sábios e jovens de milhões de anos e de vidas e de rotações. Se o contrário acontecer, e a cada dia se prova que a raça terráquea não sabe dos limites a limitar e em termos de sentimentos e dádivas quanto menos mais, a tragédia não será maior (se tal desse para medir) pois haverá sempre um psicólogo ou especialista desse campo a explicar a infernal via láctea não permitida aos não formados.

"Kaze no naka no kodomo" é tão triste pela sua evidência como belo no modo como é tecido, passo a passo, respirar a respirar, batida a batida, cada partícula ínfima o cosmos eterno e liberto. Um dos hemisférios pode dobrar para cima do outro, as tais estrelas desistirem, a água mudar de rumo e soltar as deformações, a cientifica gravidade gastar-se, que Shimizu, que os desta têmpera, jamais irão soltar o aparato e o fausto de uma arte que a isso se proporciona em augúrios demagógicos e arrivistas; Shimizu e os seus vão querer ver melhor e assim não escancarar o invisível, abrir a profundidade toda do espaço e cerrar o íntimo, utilizar o campo e o contracampo para nos devolver, descobrir e redescobrir as expressões, os olhares e a atmosfera de cada pedaço de alma que completa a gigantesca e genuína alma que nunca se apagará - a do rosto (luz e movimento, tempo e espaço) fiel e inexplicável. Assim Jacques Rivette estava cheio de razão ao confessar que não era preciso saber idioma algum para se perceber o Japão presente e ancestral que iluminava virginalmente a sua tela. Em ténue oblação e de forma desgarradamente animal, é um filme irmão de "Rebel Without a Cause" do Nick Ray aflito de Hollywood, irmão dos "Mes petites amoureuses" do suicidário Jean Eustache que na Paris ao rubro não esqueceu o rubro da sua pequena aldeia. Todos eles, em movimento único e comum, clamando o inesperado, a única condição certa.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

 
 
(...) O cinema é a arte do verdadeiro. O que me entedia no cinema é uma vida caricaturada, deformada, estagnante, homens que não têm alma, um mundo que não reconheço. O único belo é o verdadeiro, só se pode amar o verdadeiro. Adianto que entendo isso de encontro ao sentido em que o entendia Boileau, em que o entendeu o Grande Século; não falo de realismo, seja ele neo-realismo ou só realismo; não falo de De Sica, nem de sordidez ou de miserabilismo. Eu falo do Homem, é justamente isso que faz o artista. Desprezo contos de fada, pantominas, tagarelices mais ou menos engraçadas de um metteur en scène indiscreto, essas intrigas, mais ou menos retorcidas, que não exploram senão as curvas do cérebro do seu inventor. Interesso-me pelos homens e pelas mulheres, por conseguinte interesso-me por mim mesmo. Não me sinto tocado senão quando vejo a alma de um homem, ou quando, sem ornamentos nem estardalhaços, alguém se dirige à minha." (...) "O que ele mostrava, a sua franqueza, a sua honestidade, desconcertava como um soco, era um ser maior do que os heróis, mais belo do que os deuses; era um homem. (...)
 
 Jacques serguine, Educação do Espectador, Cahiers du Cinéma nº 111, Setembro 1960.