"God's Little Acre" filmado por Anthony Mann começa e acaba no mesmo quadro; as gentes lá por dentro tantas voltas e cambalhotas dão que tudo fica igual pelos delirantes ziguezagues e desejos. Sede de ouro, sede de sexo, mas também de fúria justiceira, de onde o carregado determinismo pulsional é complexificado num humanismo tão instintivo como o seu contrário. Raramente se escancarou assim a carne e a revolta, mesmo que apócrifamente, unindo-se o animalesco de Erskine Caldwell ao pragmatismo sabido de Mann; transfiguração que salvaguarda o fundo de cada um de nós em cada, cada, situação.
Mas falando em humanismo, ou seja, em sentimentos, e em certezas (verbo saber) com "The Glenn Miller Story" atinge-se montanhas e céus da dimensão e dos tons do John Ford de "The Long Gray Line". Tudo o que se poderia esperar do gesto biográfico corrente e logo enaltecedor, a música em crescendo no momento da morte do artista ou o esganiçamento interior deste na dúvida artística, fica para o nosso coração compor; mesmo o enlevo hagiográfico que cairia que nem gingas não procede, esta é a história do extraordinário homem comum nas suas aventuras pelo sincero e pelo perigoso. Mann vai pelas vias da reacção, do passo seguinte, do universal. "Não eleves a fé à altura do voo dos pássaros e não rastejarás depois como os vermes", recita Tom Joad algures nas Vinhas da Ira, não sabendo se tal pertence às escrituras ou ao "The Winning of Barbara Worth". O Glenn Miller aceite por James Stewart (que com Mann vai laconicamente e pacificamente de um lado ao outro dos reinos cimeiros cá de baixo) tem toda a calma e paciência do mundo.
Verga as costelas numa gasolineira para poder tirar o seu instrumento musical do prego ou para poder comer, e, mais adiante, quando tem cada vez mais dúvidas se vai ou não vai conseguir dar o passo superior na sua criação, não se apoquenta; primeiro, pois compreende que se lá chegar é pela persistência, suor, merecimento e por ter calcado muito e experimentado horizontes vários. E compreende igualmente que se lá não chegar é somente lógico, que as coisas tomam o seu curso e não se devem forçar pois de inutilidades está o palco cheio. Saber por fim que a revolução pode ser simplesmente a fidelidade, como os agricultores que viram todos os milagres citados nas suas colheitas; saber que não existe apenas o "eu" em urgência, que o "nós" está na partida; depois, ou melhor, antes, pois no reinicio da sua vida juntou-se à única mulher que sempre admitiu, numa relação perfeita e delicada onde o sofrimento e a ausência estão na mesma face da presença e do amor; amor guardado e indomável apurado no ápice da criação. Então, de forma tão natural que parece fácil, arrisca-se algumas vezes o pescoço, trabalha-se noites a fio, ignoram-se as queixas, sono e dor, recebe-se e dá-se as mãos após as quedas; a disponibilidade perante o rumor interior e a violência latente do imprevisto, olhando e escutando detidamente, afagando o medo como aninhando o sucesso, e a força da verdade e da emoção surge sem margem para dúvidas no seu esplendor de justeza e de mistério em marcha. Que no auge Glenn Miller e a sua banda se meta na guerra e nas bombas, jamais é para conquistar a capa do super-herói, medalhas ou discos vendidos como pão, mas sim para no longe dar a sentir a casa de cada um bem perto, o tal regresso mesmo que impossível, como desígnio último e total. Como o amor entre Glenn e Hellen, escrito para além do firmamento.
Se fosse preciso falar da técnica do habilidoso (habilidoso tal como os trabalhadores da construção civil auguram), esse saber fazer da posta em cena do cinema, bastaria o momento Louis Armstrong, nas sua duração e peso saturno e revelador, essas demenciais pinceladas, esse jogo corporal e ânsias de puro prazer surgidos das entranhas e não do botão do software da máxima tecnologia de ponta. Mas técnica e ser estão unidos sem questões e dispensam análises do género.
Quando hoje em dia a pressa anda aliada ao mais inútil tipo de sede, a sede do vedetismo e do poder e do espezinhamento - no cinema acabam-se filmes às três pancadas para brilharem instantaneamente no festival mais in / nos antros ou pocilgas "políticas" estende-se o cadafalso ao invés da mão ou da face e ludibriam-se as notas podres além Grécia - o olhar de alguns Glenn Millers por aí ignorados e humilhados não podem ser exterminados, sobre risco da autodestruição cada vez mais prometida pela estirpe. Assim, há que lutar por grandezas de valores que no secreto suspiro atingem o épico, há que ver bem para no meio de tanto lixo resgatar a essência. Essencial que de tão deformado deixou de ser o natural, certo e sagrado. Fiando-nos, ainda e sempre, no brilho das estrelas para acharmos a exacta perspectiva.