AtR continua a ser mostrado nas aulas
de Filosofia ou até mesmo nas de Educação e cidadania, como
exemplo de superação, do hereditário, da possibilidade de
concretização dos sonhos mesmo nos locais mais cinzentos, enfim,
para dizer aos alunos perdidos que o crime não compensa; mas não é
por aí que se chega a algo de especial. Se formos ao “cinema” e
à “convenção crítica” também não vamos muito lá, pois Jeff
Pollack, o realizador, foi um dos criadores do “The Fresh Prince of
Bel Air” e de outras séries e filmes que não o vão meter nos
anais nem proporcionar retrospectivas, nem na pequena história,
porventura; por outro lado estamos a planetas da dramaturgia cósmica
emplacada num court de Spike Lee; e há quem diga que foi só mais um
veículo para Tupac Shakur e para mais uma banda-sonora de éxito e
tal... produto ou mercadoria para amamentar mil e um top de qualquer Billboard...
Mas vamos a três momentos, sem
desconto de tempo: no berço, o movimento de câmara (panorâmica,
senhor professor?) que apanha Michael Jordan suspenso no espaço
sideral, brilhante como a primeira estrela cadente na noite
inaugural, passa pela desarrumação do jovem artista e encontra a
estrela do momento pronta a render, acabando tudo enquadrado na
catadura do samurai Pat Ewing (salvou-nos tanto como Barkley e Rodman
nos libertaram), inclusive o Pump Pump de Snoop Dogg e Dre – todos
os anos de 90, as fitas de celulóide a desenrolarem-se e a
justificarem a sua razão de ser, e a rima para a posterior projecção
e cantoria quimérica e realista de “Shaft”, carga sem
metafísica.
Segundo andamento, no caminho, rasgando
o ar do tempo e do espaço, contra o cronometro: quando a estrela do
momento humilha o vagabundo que poderia ter sido alguém e este é
“salvo” pelo que quis ser ninguém; no epicentro das ilusões
perdidas, fica clara a questão da facilidade do presente em relação
à memória, o despachar com um chuto-no-rabo ao invés de ganhar
tempo com o legado, o que fazer com o grande momento que já passou e
que não ficou nos livros, e como isso é igual aos erros que as
grandes nações e chefes cometem ciclicamente, chegando os
genocídios e as guerras; e, claro, fala dos grandes que só o foram
fugazmente pois preferiram, e certos, pois são eles a decidir, o seu
“vício” que para eles é a felicidade mais do que todo o ouro e
compromisso da fama – um Belarmino Fragoso ou um José Egas dos
Santos Branco (a.k.a Zequinha), jogador da bola que passou por clubes
como Setúbal ou Porto, hoje trintão e finalizada a carreira, que
arrancou um cartão vermelho das mãos de um árbitro, irradiado mil
vezes. Cena em que se percebe a irremediabilidade do “agora” em
gravidade inusitada, o milésimo de segundo a levantar a espada
ameaçando o eterno, ainda mais porque não se chama a atenção para
tal, é só uma luta de egos.
Por último, já no cesto, passando o
aro, contando: depois da vedeta cair na realidade não porque lhe
aumentaram o número e a qualidade das garinas mas porque trataram
abaixo de cão o seu amigo de infância; passado o confronto com os
fantasmas de outrora e estendida a rampa da redenção a cada qual,
depois de mais um bailado comum em que o fogo-de-artifício da
maquineta e da montagem e dos filtros poderiam ter brilhado mas
ficaram no banco, um “last minute rescue” à força toda, cosendo
as pontas soltas, as esquadrias e simetrias, bem como o punch
perfeito para a conclusão da aula benemérita. Mas... fundo mas...
como num afundanço... o que acontece para cá do televisor
(sequência final do palco do bairro à transmissão televisiva) foi
a trajectória da bola que traçou o movimento do filme: a
aprendizagem, ou crescimento, ou meter-se na linha certa, enfim, não
cometer passos, é sempre fintar, sem o desprezar, esse prenúncio de
morte; é enfrentá-lo, mesmo que seja um Tupac (ou um The Notorious
B.I.G.) símbolo irónico de todas as misérias e pulsões do
instante.
Quase nada, domingo de tarde, e precioso.
p.s: já que se anda por estas redondezas, “Straight Outta Compton” de 2015 é bem justo e muito bom; pelo fundo em causa ainda não deu para estrear em muitos países, como o nosso, nem nas cinematecas, muito menos para imprimir dossiers culturais, mas talvez seja só pela forma que é bom e justo, o resto vive inseparavelmente nisso, como tudo que importa; feito em plano-sequência (beats erguendo um enorme corpo orgânico que pode acarretar com tudo) com um grande Coppola, sem efeitos ou loops de transição fácil ou de reconciliação provocada só por truques e mercantilismos de plot, segue pessoas e situações como se pertencessem aos anos de Bathsheba ou numa Síria de agora, ao lado e nunca picando ou usando de superioridade cinematográfica; muito mais próximo de um Dj Kronic do que dos discípulos de um Vibe, de Zeca Afonso do que António Zambujo, é uma peça para um tempo e para uma profecia que ainda tem tudo para oferecer. E F. Gary Gray, desde o magnetismo com que apanhou o terreno convulso da face e as ondas carregadas da voz de Sam Jackson em “The Negotiator”, com certeza nunca quis enganar alguém.
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