That Cold Day in the Park, Robert Altman, 1969
Logo um ano depois de Robert
Altman ter sido despedido do seu primeiro filme feito para cinema –
no meio de dois machões, James Caan e Robert Duvall e o sonho da
conquista lunar e da competição my penis is bigger than yours –
por causa de sobrepor diálogos
e tentar fazer coisas nunca antes tentadas em cinema num “Countdown”
que podia ter sido muito melhor, o cineasta por tantos considerado
outro machão sem par fechou-se com uma mulher no seu mundinho, e
quando a largava numa narrativa gelada mas carregada das mantas da
música das revelações primeiras da infância, era só para obter
ainda mais reflexos dela. Só
uma dica aparte para quem quiser tirar um curso de direcção de
fotografia de borla: László Kovács, o mestre dos road-movies,
ilumina e desperta cada partícula (interior que resplandece para
nós) desse mundinho pequenino que é a casa das bonecas assombrada
de Frances em constante epifania (existe outra filmada retoricamente
dessa forma para vermos o contraste entre o real e o simulacro); tal
como no “Brewster McCloud” posterior o igualmente genial Jordan
Cronenweth e Lamar Boren reteram do chão e de toda a atmosfera
viscosa cada ruga e cada fedor de metano dos sonhos do petróleo
americano e das ilusões supremas em plano-sequência.
Há
muitos muitos anos um jovem inconsciente fez a sua primeira grande
viagem sem família, acompanhado pelos colegas de turma do nono ano
português, todos eles finalistas e meios à deriva numa insularidade
atordoante. A ilha em causa e a sua humidade ainda puxavam mais à
transgressão ansiada, mesmo que não se saiba bem porquê e sem
obrigações quase todos tivessem ido ver “La vita è bella” de
Roberto Begnini”, fonte de purificação. Houve naturalmente
perseguições inacabáveis nas ruas entre locais e continentais,
espreitadelas nos duches femininos e jogo da bola, mas sobretudo uma
primeira noite acordada com muito barulho, algumas garrafas e saltos
na cama. Como fazíamos parte de um colégio de uma certa ordem
religiosa, um colégio de freiras,
veio a primeira das nossas acompanhantes meter ordem no galinheiro,
uma freira alta, espadaúda, feia e arrepiantemente masculina, aquela
que ensaiava connosco as músicas para a missa - “poe tua
mão na mão do meu senhor da galileia”
- e era a existência exemplar; espetou sem dó nem piedade uma
estalada ao melhor amigo do jovem inconsciente e tudo acabou num
milésimo. Sem saber o que fazer, já cada um no seu poleiro, cama
desfeita, entra mansamente a nossa segunda acompanhante,
completamente oposta à primeira, a quarentona loira, ousada no
cigarro e no andar e no decote, olhar selvagem de doce, aquela
senhora a quem dizíamos meia dúzia de palavras entre o corar e que
só estaria no colégio por causa de boas famílias ou da
inteligência irrefutável. Fez a cama ao rapaz, possantemente e
delicadamente que até dói, disse “para esquecer”, deu ou
pareceu que deu uma carícia, e deu boa noite. Tinha de ser tão
longe de casa e de modo tão estranho que a religião livre da
bondade me fazia a apresentação, me entregava a ficha de inscrição
e a recolhia assinada.
“That Cold Day in
the Park” é esse tal filme que poderia ser muito simples se as
regras do nosso jogo não tivessem sido tão viciadas, no qual uma
mulher sozinha numa grande casa sem propósito percebe que pode
convidar para ela um jovem que foi vendo à chuva todo o dia não
santo das suas janelas. Começa muito simples, muito franco, a câmara
singela a seguir os bons sentimentos e o filtro do silêncio a
envolver tudo. Ela quer fazer bem ainda sem saber porquê, ele faz-se
de mudo e lembra um animalzinho. E de repente parece que estamos numa
versão muda e com a psicologia desse período do cinema do “L'Enfant
sauvage” de Truffaut. Mas como a mulher continua a falar, e a
falar..., e o jovem tem uma segunda vida que ela desconhece, essa
atmosfera abstracta, vacilante, carregada de desfoques e de falta de
nitidez, de atalhos errados e de traçados desnecessários,
dessincronias não planeadas, começa a desprender-se dos medos que
vamos conhecendo à mulher, dos seus traumas, da sua teia confusa, do
seu nojo, e da sua ausência de idade. O que estava a ser tão puro,
lentamente, fica viciado sem domínio. Existe um instante fulcral,
ela a despir-se toda – sem tirar uma única peça de roupa – para
ele, mas no lugar dele só aparece a sua imemorial boneca já
desmembrada. Se ele lá estivesse e escutasse talvez tudo pudesse
encaminhar-se diferentemente e ao ministério do silêncio se
juntasse umas harpas da harmonia. Mas as sombras, os cristais
cegantes, a ínvia naturalidade das coisas e dos percursos conduziram
a esse instante e tudo convergiu para a torção final nos infernos
dos inocentes. Como quando se pensa que um segundo a mais ou a menos
teria evitado a hecatombe. Altman é um dos grandes cineastas do
não-linear, da recusa da atracção molecular e da sintonia, da
refutação das regras quânticas que nos unem e nos separam
aplicadas à alma - toca a perfeição e a condenação, não acaba a
experiência com um relatório definitivo a passar álcool nas mãos:
é o plano final de horror e compaixão.
Se a
professora à primeira vista não-exemplar, mas só à primeira, não
calhasse passar pelo quarto do jovem inconsciente... Se a freira
tivesse vencido e convencido para regressar em breves e infinitos
futuros... Se... Se tudo se tivesse passado ao contrário e o dístico
das aparências obliterasse a catedral da verdade, talvez,
porventura, uma faca final como aquela de “That Cold Day in the
Park” tivesse adensado mais um pouco o silêncio da perdição
inconsciente.
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