terça-feira, 30 de abril de 2019

Encontros Cinematográficos do Fundão 2019



Cinema no Fundão: Encontro com Hugo Pereira por José Oliveira

(já agora, Hugo, os adjectivos "moderno e proactivo", que odeio, foram utilizados como pura ironia, um abraço)


José Oliveira: Olá Hugo. O Mário convidou-me para te apresentar nos “Encontros Cinematográficos” do Fundão, a propósito dos poemas do Bukowski que tu traduziste e dos filmes que daí nasceram. Não sei muito bem como o fazer em termos formais… Como sugeres que te trate: escritor? tradutor? realizador? outra coisa qualquer? Como organizas o malfadado C.V., que está cada vez mais moderno e proactivo?
Hugo Pereira: Olá Zé. Trata-me por Hugo, sem formalidades. O C.V. é uma formalidade para os estranhos, que vou acertando à medida que os empregos ou os projectos passam, mas só porque ou quando me é pedido. Talvez só seja útil para candidaturas a empregos ou a fundos. Eu só vou actualizando o dos empregos. De qualquer forma, nem esse sei se me parece muito moderno ou proactivo, que são adjectivos que raramente uso ou com que me preocupo. As ideias e os projectos escritos ou filmados vão surgindo com o tempo e as vontades, mas tenho sempre a forte sensação de cada um ser o primeiro e o último (como acontece com os amores, talvez). Quando chegar realmente ao último, espero estar preparado para aceitar isso com naturalidade.
J.O.: Já agora, e tendo também eu cometido o mesmo delito, estou com curiosidade de saber como tomaste a decisão de regressar à tua terra natal para estudar Cinema aqui há uns anos?
H.P.: Regressei à Covilhã, pela primeira vez depois de deixar a Beira Baixa, em 2010. Estava cansado da vida moinha em Lisboa e queria voltar a embaralhá-la e a estudar, a aprender e a criar, depois de anos de quotidiano repetitivo e embrutecedor nos vários empregos. Tentei estudar Cinema (é a este delito que te referes, talvez? Porque talvez seja mesmo um delito ir estudá-lo em vez de ir logo fazê-lo…) porque me interessou aprender e fazer e conhecer gente que também tivesse essa curiosidade, essa paixão, e que não soubesse bem ainda o que fazer com ela. Também porque, em Cinema, a UBI era e continua a ser a única alternativa, no ensino público superior, ao conservatório na Amadora. E porque as aulas, os professores, os colegas, a cidade, a paisagem das beiras me serviram de motor para filmar, bem ou mal, mais ou menos. No fundo, juntei o útil ao agradável, aliei a vida ao desejo, sendo que o útil era para mim trocar de vida e de cidade, e o prazer foi ter o tempo e a cabeça para conseguir nem que tivesse sido apenas um minuto bem filmado.
J.O.: E como é de Bukowski que se trata, qual foi a coisa mais sagrada ou “desagrada” que com ele aprendeste ou desaprendeste?
H.P.: Pergunta imensa… Comecei a ler Bukowski com uns 16 ou 17 anos. A sua sensibilidade e arte na escrita e na vida mudaram-me por completo. Deram-me e ainda me dão força. Deram-me também a crença de que vida e arte se ligam naturalmente por um cordão umbilical, e deram-me a louca ingenuidade de acreditar que uma pode transformar e pode mesmo melhorar a outra. E talvez pela primeira vez deixei de me sentir tão sozinho. Para a criação de outro homem que viveu a anos e milhas de distância ter esse efeito tão vivo em nós, é preciso uma força poderosíssima, que é, no fundo, a força que pode ter a Arte.
J.O.: Achas que faz falta um Bukowski no panorama “tuga” literário ou existe mas não entra nos “cocktails” privados?
H.P.: Quase todos os livros que tenho dele em inglês dizem nas orelhas ou na contracapa que Bukowski se tornou num dos autores mais imitados de sempre. Quando ele começou a ser famoso, acusaram-no também de imitar outros, o que o tempo provou ser dor de cotovelo. Bukowski pode parecer fácil de imitar na vida e na arte mas é inimitável, precisamente por essa sua ligação umbilical assumidíssima entre a sua vida e a sua arte. Na vida porque homens com desespero que faz inchar os tomates ao invés de os reduzir a cinzas são raros, porque ou falta ou se abafa esse desespero ou não se tem a coragem de o olhar de frente e agarrá-lo pelos cornos – como ele escreveu e traduzi, «qualquer preguiçoso dá um bom perdedor». E na escrita, porque é preciso ter-se depois a arte de moldar esse desespero como barro – como ele tão bem fez à sua máquina de escrever: «é/preciso/muito/desespero/descontentamento/e/desilusão/para/escrever/alguns/bons/poemas.» Uma prova disto é precisamente a sua poesia. Talvez o seu estilo na prosa se consiga aparentemente imitar, mas quando vemos esse estilo depuradíssimo na forma do poema, entendemos que, como ele diz neste poema “poesia”, «não é para todos/nem/escrevê-/los/nem mesmo/lê-/-los». Talvez possamos dizer isso mesmo da sua matéria, do seu barro, que era a sua vida, que foram as suas vivências – não é para todos, nem escrevê-las, nem mesmo vivê-las. O Português é uma belíssima língua para se viver, se brincar e se cantar. O panorama tuga literário sempre teve grandes poetas e penso que continua a ter. Já na prosa, parece-me que vivemos num Século das Trevas… O que realmente faz falta são homens e mulheres mais livres e com mais tomates, em Portugal e em todo o lado. Havendo-os, a boa escrita – a que nos dá uma sova, nos deixa marcados, nos transfigura e mesmo ao mundo – seguir-se-lhes-á.
J.O.: Falaremos dos tais filmes no Fundão, mas para finalizar esta mini-entrevista como quiseres, o que raio quer para ti dizer “A Sul de Nenhum Norte”?
H.P.: “A Sul de Nenhum Norte”  o título de uma fabulosa antologia de contos de Bukowski publicada em 1973 – quer para mim dizer, traduzido em bom português, “à nora”, “aos caídos” – expressão terrível que sempre ouvi muito na Beira Baixa. É, acho, a condição inicial e final de todos nós, as coordenadas de todos nós, quer queiramos assumir isso, quer não: ontem, hoje, na Beira, em Lisboa, em Los Angeles, no Planeta Terra. É a condição do Ray Milland/Don Birnam, no “The Lost Weekend” do Billy Wilder – “Farrapo Humano”, em Português. Reza a lenda que este era o único filme de que Bukowski realmente gostava. Parece que ele achava o cinema falso e aborrecido…

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BUKOWSKI EM PORTUGAL
Numa das milhentas histórias que Sério Fernandes, o realizador e inventor da Escola do Porto, conta, existe uma que o coloca na senda dos grandes tarefeiros da série-b americana que trabalharam na sombra do cinema clássico de ponta. Antes de se tornar um dos mais radicais criadores de que há memória, esfolava-se ele para uma agência de publicidade, e uma famosa marca de whiskey encomendou-lhe um anúncio que se esperava bombástico. Mas ora, e como sempre, o dinheiro estava escasso, e Sério não queria dispensar as origens e as paisagens do famoso “chá da Escócia”, resolveu filmar as colinas da cidade da Maia, mas filmá-las bem, como diria Manoel de Oliveira. O resto, que incluía colocar o afamado Grouse da tal marca nas colinas da Maia recorrendo aos efeitos especiais mais avançados da época (anos 70?), seria peanuts em comparação com a maestria e a fascinação filmofânica do artista (roubando palavras a Carlos Melo Ferreira). Quando a grande produção ficou concluída, os patrões, ou os chamados clientes, ficaram de boca aberta na projecção, afirmando que só o grande Sério Fernandes era capaz de filmar assim na Escócia e com tão baixo orçamento. Ninguém se descoseu e Sério afirmou em jeito de estucada final: «Escócia, evidentemente».

Num dos filmes que faz parte do projecto levado a cabo por Hugo Pereira em que este encomendou a amigos pequenas obras cinematográficas (ou não) baseadas nas sublimes traduções que ele mesmo fez dos poemas de Charles Bukowski, e que nenhuma editora ousou publicar, Marta Ramos (numa rodagem a que eu assisti), transformou a zona Lisboeta dos Anjos em Nova Orleães, num processo milagroso e com o mesmo condão das varinhas mágicas das fadas análogo ao do citado Sério Fernandes. Num poema precisamente chamado jovem em Nova Orleães, os becos abissais do Regueirão dos Anjos ganham subitamente a temperatura queimante e a negra patine imemorial e a cair de velha da mítica cidade do estado do Luisiana – vide Midnight in the Garden of Good and Evil, de Clint Eastwood, e digam, se tiverem coragem, que se trata de um remake; os feios e infernais graffitis tomam as vezes das árvores de ramagens e cabelos descabelados e demoníacos que lançam as suas garras aos desprevenidos como se saltassem dos caldeirões de Dante; até surgir a Igreja dos Anjos, filmada em muitas horas diferentes e em pinceladas de luz diversas, do lusco-fusco à noite cava, transfigurando-se o que aparentemente possuí uma arquitectura limpa e com linhas e superfícies lisas, simples e bem definidas, num exemplar inenarrável da capital gótica americana, com pontadas dirigidas aos céus, olhos desconfiados, mil profusões sórdidas do pormenor aparentemente mais insignificante.

«New Orleans didn’t need goth clubs. It was a goth club. Being a city of freaks, we didn’t have any natural predators.», escreveu alguém sobre um festival gótico sulista em NO, e pode ser o ponto de partida, de incompreensível, e de verdadeiramente mágico para os melhores vídeos que Hugo Pereira, o escritor, tradutor e realizador, entre outros ofícios, conseguiu propocionar a quem admirava. É pelo poder da palavra, de Bukowski mas também da narração de Hugo Pereira, dessa atmosfera criada e oferecida entre a poesis do poeta e a sensibilidade do tradutor e do orador, que cede a possibilidade a todos os pesadelos e a todas as ternuras essenciais sem as quais nos tornaríamos em estátuas inúteis. Por isso é um projecto ganho, com esse acrescento em relação a um possível livro bem acabado, ecoando os lugares e as simbologias mais distantes e dispares na visceral e tantas vezes cândida música de Charles Bukowski, o maldito. Nos grandes momentos, na jaula e na liberdade última do filme de Marta Ramos, nas várias janelas e espelhos fabuláticos de o velho apostador de cavalos, do próprio Hugo, no cemitério de Ancoras de poesia, por Vanessa Duarte, que é filmado na nossa calina Sulista mas que só pode ter sido filmado numa colina do Sudoeste americano, tudo, da palavra à pronúncia, da harmonia à cisão, se penetra, interpenetra, casa, cola, divorcia, amaldiçoa e contradiz na negra sombra ou na claridade cegante. Sem se saber como nem porquê, como na genuína poesia que só diz a verdade.

José Oliveira, Março de 2019

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