“Richard Jewell” não é o mesmo Clint de sempre e é o mesmo
Clint de sempre. Nostálico e duríssimo. Nunca como agora uma introdução foi tão
amadora (no sentido dos home movies), tão documental de uma época (os
anos 90), com os hits em voga (a Macarena dos Los Del Río a transmitir-se às
duas plateias, dentro e fora da tela), a abertura dos Jogos Olímpicos
centenários, Muhammad Ali em mito e em carne viva, um movimento dançante onde o
corpo extraordinário de Paul Walter Hauser impõe uma gravidade bamboleante e
uma inteireza obviamente angelical que o torna semelhante do nativo americano
de Adam Beach em “Flags of Our Fathers”. E toda esta leve introdução que nos
leva à explosão da bomba e ao drama é um bloco inteiro por sim, um filme
inteiro.
Mas já dentro desse bloco se imiscui o outro filme, que é o
mesmo, “Richard Jewell” é uma crónica dos bons sentimentos, uma entrada no
vórtice da vida adulta, um álbum familiar inconfessável, uma VHS pelo olhar de
um mestre clássico do cinema que entende a vida e os problemas modernos (da
imprensa aos feminismos) como ninguém.
A verdade é que agora estamos de fronte das lídimas auras ameaçadas de
um Leo McCarey (a mãe de "My Son John", o par de "Make Way for Tomorrow"), com a ambiguidade não do olhar de Clint mas do fora-de-campo a
ensombrar tudo. Da oferta da nota («dou-te esta nota para não te tornares um
monstro», agora que vais ter com as feras, é o subtexto) pelo firme advogado de
Sam Rockwell que desta vez é o Clint por interposta pessoa e o habitual anjo
protector de quase todos os seus filmes até à relação com a Mãe – no tugúrio
inaceitável a pequena zanga com ele e a reconciliação, quando ela lhe diz que
não o pode proteger dessa vez pois não conhece esses problemas, e ele responde
que quem vai fazer esse papel (sujo e limpo) agora é ele – vive-se o mais
radical dos pactos com o necessário extremismo do bem que é preciso aplicar a
uma sociedade com as regras e os sentimentos já virados do contrário e assim
legislados.
Extremismo do bem que em muitos outros momentos – de “Pale
Rider” a “Unforgiven” – pode incluir violência necessária, justiça salomónica e
piso do risco moral mas que aqui é pura confiança – com a Mãe, desde o berço;
com o advogado desde que o empregado de limpeza lhe fornece os chocolates
diários e joga com ele Máquinas Arcade.
Ambiguidade que inclui também os visados, desde o arsenal de
armas de Jewell até à extraordinária saga da jornalista que de puta se torna Maria
Madalena redentora – caos e pontas de argumento que não se resolvem como não se
resolvem as pontas do estilhaçado mundo pós-clássico das transgressões úteis à
reposição original do que podem ser os bons sentimentos (o chocolate, os
sorrisos por nada, a severidade para com os estudantes e o corpo dado à bomba).
O mesmo Clint de sempre, dos homens que fazem o seu
trabalho, longe dos brilhos da fama e do heroísmo, casualidades comuns em que o
heroísmo é intrínseco para o deleite do universo perfurante e aleatório do show
business do espectáculo e do show business político com P capital (passe redundância).
“Richard Jewell” é o mais simples dos contos, das narrativas, dos dramas, das
formas: a verdade desde sempre esteve lá, a trama narrativa é a nossa perene
vergonha para confundir as coisas: a reunião com o FBI em que eles nada têm
para julgar, nem os taparueres que com certeza a Mãe usava para o lanche do
filho nos tempos da escola. Um diário clássico sujo pelo degredo do sucesso e
da parangona a qualquer custo.