quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

para o Clint




“Richard Jewell” não é o mesmo Clint de sempre e é o mesmo Clint de sempre. Nostálico e duríssimo. Nunca como agora uma introdução foi tão amadora (no sentido dos home movies), tão documental de uma época (os anos 90), com os hits em voga (a Macarena dos Los Del Río a transmitir-se às duas plateias, dentro e fora da tela), a abertura dos Jogos Olímpicos centenários, Muhammad Ali em mito e em carne viva, um movimento dançante onde o corpo extraordinário de Paul Walter Hauser impõe uma gravidade bamboleante e uma inteireza obviamente angelical que o torna semelhante do nativo americano de Adam Beach em “Flags of Our Fathers”. E toda esta leve introdução que nos leva à explosão da bomba e ao drama é um bloco inteiro por sim, um filme inteiro.

Mas já dentro desse bloco se imiscui o outro filme, que é o mesmo, “Richard Jewell” é uma crónica dos bons sentimentos, uma entrada no vórtice da vida adulta, um álbum familiar inconfessável, uma VHS pelo olhar de um mestre clássico do cinema que entende a vida e os problemas modernos (da imprensa aos feminismos) como ninguém.

A verdade é que agora estamos de fronte das lídimas auras ameaçadas de um Leo McCarey (a mãe de "My Son John", o par de "Make Way for Tomorrow"), com a ambiguidade não do olhar de Clint mas do fora-de-campo a ensombrar tudo. Da oferta da nota («dou-te esta nota para não te tornares um monstro», agora que vais ter com as feras, é o subtexto) pelo firme advogado de Sam Rockwell que desta vez é o Clint por interposta pessoa e o habitual anjo protector de quase todos os seus filmes até à relação com a Mãe – no tugúrio inaceitável a pequena zanga com ele e a reconciliação, quando ela lhe diz que não o pode proteger dessa vez pois não conhece esses problemas, e ele responde que quem vai fazer esse papel (sujo e limpo) agora é ele – vive-se o mais radical dos pactos com o necessário extremismo do bem que é preciso aplicar a uma sociedade com as regras e os sentimentos já virados do contrário e assim legislados.

Extremismo do bem que em muitos outros momentos – de “Pale Rider” a “Unforgiven” – pode incluir violência necessária, justiça salomónica e piso do risco moral mas que aqui é pura confiança – com a Mãe, desde o berço; com o advogado desde que o empregado de limpeza lhe fornece os chocolates diários e joga com ele Máquinas Arcade.

Ambiguidade que inclui também os visados, desde o arsenal de armas de Jewell até à extraordinária saga da jornalista que de puta se torna Maria Madalena redentora – caos e pontas de argumento que não se resolvem como não se resolvem as pontas do estilhaçado mundo pós-clássico das transgressões úteis à reposição original do que podem ser os bons sentimentos (o chocolate, os sorrisos por nada, a severidade para com os estudantes e o corpo dado à bomba).

O mesmo Clint de sempre, dos homens que fazem o seu trabalho, longe dos brilhos da fama e do heroísmo, casualidades comuns em que o heroísmo é intrínseco para o deleite do universo perfurante e aleatório do show business do espectáculo e do show business político com P capital (passe redundância). “Richard Jewell” é o mais simples dos contos, das narrativas, dos dramas, das formas: a verdade desde sempre esteve lá, a trama narrativa é a nossa perene vergonha para confundir as coisas: a reunião com o FBI em que eles nada têm para julgar, nem os taparueres que com certeza a Mãe usava para o lanche do filho nos tempos da escola. Um diário clássico sujo pelo degredo do sucesso e da parangona a qualquer custo.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

2019: filmes, livros, música



- Vitalina Varela, Pedro Costa

Num banal aeroporto, Vitalina Varela surge de rompante como a mais bela aparição da história do cinema. Os braços dos semelhantes da mais bela comitiva da história acolhem-na e
repelem-na. Uma cruzada doce onde os céus e a terra se vão curvando e iluminando perante a persistência e as palavras de Vitalina e do padre Ventura. Primeiro: «o medo também entra no céu», segundo: «se existe amor, a coisa tem de ir para a frente». No escuro e na treva, acatando os fantasmas, a ilusão e a humilhação, o temor vai-se tornando, a par e por causa da construção paciente, redentora e sem margem para outra coisa de Pedro Costa, no caminho do sagrado. A devastadora chuva de pedras do Êxodo volve-se a argamassa suprema. Até à Juventude em Marcha, rumo à destruição e a uma nova revolução, outra e outra vez, do plano final.

- The Mule, Clint Eastwood

https://raging-b.blogspot.com/2019/02/the-mule-clint-eastwood-2018-averdade.html

- Ad Astra, James Gray

https://raging-b.blogspot.com/2019/09/ad-astra-de-james-gray-2019.html

- The Irishman, Martin Scorsese

Nas palavras de Frederico Lourenço A Ilíada é um «canto de sangue e lágrimas, em que os próprios deuses são feridos e os cavalos do maior herói choram». Frank Sheeran, no extraordinário romance factual e surreal de Charles Brandt ou no poema épico de Scorsese é um cidadão normal que se decide confessar quando vê escancarados os portões da morte, uma testemunha do seu século e aquilo a que se chama comummente um “artista”, aqui, um contador de histórias fabuloso, como nas tascas. Assim, toda a narrativa americana do século passado e toda a sua poesia e despoesia efabulatória do real e do comum surgem já indestrinçáveis, trabalho da memória e da maquinação infernal da modernidade e da pós-modernidade (medias, expiação, bomba atómica, guerra fria, vigilância, redes sociais). Numa lentidão e numa cadência que contemplam o verso e o reverso dos factos, da História e do oficioso, para ver se entendemos alguma coisa da salgalhada e dos fratricídios em que nos metemos, como na meia hora final em que a personagem de De Niro procura entender-se e falar com a morte. Ou então apenas a moral de Jimmy Hoffa, que é a outra "grande" moral a que fomos desembocar no grande pântano: «Apenas faço o que eles me fazem a mim, só que pior». Eles, Canto de sangue e de lágrimas.

- Amazing Grace, Alan Elliott, Sydney Pollack

Alma mater, a mãe que alimenta ou nutre. A pátria das emoções. A verdade da fé. O cinema foi inventado para Aretha Franklin e os seus arcanjos planarem. Talvez por isso os deuses tenham resguardado esta obra divina, por tanto tempo longe dos terráqueos e das suas misérias. Até que resolveram oferecê-la, talvez como mais uma tentativa para nos abrirem os olhos. Assim o esperamos, mais uma vez.

- Ford v Ferrari, James Mangold

«Faz aquilo que gostas e não trabalharás um dia na tua vida». O ex-piloto e engenheiro Carroll Shelby e o piloto “suicida” Ken Miles são uma e a mesma pessoa e ambos são constituídos pelo  mesmo material do cinema americano. Produtos das duas modernidades ambíguas do século XX: o Cinema e a Guerra. Como no cinema dessa nação, todas as ilusões valem tudo, é preciso alcança-las a qualquer custo, usando todo o arsenal físico e cerebral como um só veículo, vislumbrando e agarrando uma nova situação, porventura o impossível - «I’m a reacher, not a preacher, not a teacher», é o testamento de Michael Cimino. Meninos treinados na guerra que depois, alguns, como eles, queimaram o seu dia-a-dia e as relações pessoais para irem para o seu campo de batalha, aqui as pistas de corrida, as leis da física, a burocracia e as artimanhas para eles incompreensíveis do poder. «Vais dizer que não fazes uma coisa, ou porque é perigosa, ou porque te queres afastar dela, pois é talvez demasiado cegante ou irresistível, mas sabes que a vais fazer, daqui a um segundo ou daqui a dez anos». O responso da obsessão. Hustlers, amantes, desenrascados, corações de ouro, um pouco patetas da normalidade.  E depois, tragédia ou bênção, o filho à espreita, que é um semelhante deles, e que vai andar à porrada com o seu melhor amigo, com a amada a vê-los esfarraparem-se, impassível, sabendo que virá ao de cima o amor puro e cristalino. Filho que também não terá um pé-de-meia e será irresponsável pois gastará tudo no essencial. James Mangold é um dos últimos humanistas, ou seja, um dos últimos radicais.

- Il traditore, Marco Bellocchio

Um épico sobre a ascensão e a queda, a fidelidade e a ruptura, a pressão e o absoluto. Mas sobretudo como o maior dos personagens “bigger than life” se pode reverter - como por magia ou com toda a naturalidade - carne e osso perante a simples amizade, o simples companheirismo, o regresso ao parque da infância vista toda a conspurcação adulta. Marco Bellocchio encena o maior dos aparatos cénicos, teatrais e audiovisuais – pois trata-se do grande circo - e atinge os sussurros, o jogo do sisudo e das partilhas juvenis, a irmandade absoluta, as nuances mínimas do Cinema ele mesmo. Ao lado de Rio Bravo de Hawks.

- Dolemite Is My Name, Craig Brewer

A candura do Rudy de Eddie Murphy pode ser igual à candura de Charlie Chaplin, de Ed Wood, de 2Pac ou até dos grandes cineastas (ou músicos) trabalhadores do digital do século XXI, esses raros que perderam as estribeiras do razoável e forçam nas 24 horas diárias o desconhecido à procura de uma nova verdade e de uma nova justiça. Devemos tudo a cada Dolemite.

- Rambo: Last Blood, Adrian Grunberg / Creed II, Steven Caple Jr.

https://raging-b.blogspot.com/2019/12/for-sly.html

https://raging-b.blogspot.com/2019/01/creed-2-steven-caple-jr.html

- Dolor y gloria, Pedro Almodóvar

A revelação e a confissão pedem sempre silêncio. É a crença recuperada de Pedro Almodóvar.

Descobertas:

- Quatro filmes curtos de Felix E. Feist (The Devil Thumbs a Ride, The Threat, The Man Who Cheated Himself, Tomorrow Is Another Day)

A série-b americana, a sua presença do real e a pressão formal (grandes depressões e os pistões a rodarem e a explodirem no interior dos planos cinematográficos) a comunicarem com o existencialismo e a filigrana de Antonioni (os céus a pesarem sobre a terra e sobre as resoluções humanas, o vento a caminhar na mesma direcção e baralhando tudo, a perdição e a aceitação ou não dessa condição perene).

Livros:

- Despachos, de Michael Herr (tradução de Paulo Faria)

- Como um pedaço de terra virgem, Virgínia Dias

Um bocadinho qualquer, que é tudo, virgem: «Conheço os varejadores, as azeitoneiras, os almocreves, o semeador, o ceifeiro, a mondadeira, gente de cujo gesto mágico brota o pão».

Discos:

- Thanks for the Dance, Leonard Cohen

- Ghosteen, Nick Cave

(na foto: Virgínia Dias no filme Além das Pontes de Pierre-Marie Goulet)