quinta-feira, 2 de janeiro de 2020
2019: filmes, livros, música
- Vitalina Varela, Pedro Costa
Num banal aeroporto, Vitalina Varela surge de rompante como a mais bela aparição da história do cinema. Os braços dos semelhantes da mais bela comitiva da história acolhem-na e
repelem-na. Uma cruzada doce onde os céus e a terra se vão curvando e iluminando perante a persistência e as palavras de Vitalina e do padre Ventura. Primeiro: «o medo também entra no céu», segundo: «se existe amor, a coisa tem de ir para a frente». No escuro e na treva, acatando os fantasmas, a ilusão e a humilhação, o temor vai-se tornando, a par e por causa da construção paciente, redentora e sem margem para outra coisa de Pedro Costa, no caminho do sagrado. A devastadora chuva de pedras do Êxodo volve-se a argamassa suprema. Até à Juventude em Marcha, rumo à destruição e a uma nova revolução, outra e outra vez, do plano final.
- The Mule, Clint Eastwood
https://raging-b.blogspot.com/2019/02/the-mule-clint-eastwood-2018-averdade.html
- Ad Astra, James Gray
https://raging-b.blogspot.com/2019/09/ad-astra-de-james-gray-2019.html
- The Irishman, Martin Scorsese
Nas palavras de Frederico Lourenço A Ilíada é um «canto de sangue e lágrimas, em que os próprios deuses são feridos e os cavalos do maior herói choram». Frank Sheeran, no extraordinário romance factual e surreal de Charles Brandt ou no poema épico de Scorsese é um cidadão normal que se decide confessar quando vê escancarados os portões da morte, uma testemunha do seu século e aquilo a que se chama comummente um “artista”, aqui, um contador de histórias fabuloso, como nas tascas. Assim, toda a narrativa americana do século passado e toda a sua poesia e despoesia efabulatória do real e do comum surgem já indestrinçáveis, trabalho da memória e da maquinação infernal da modernidade e da pós-modernidade (medias, expiação, bomba atómica, guerra fria, vigilância, redes sociais). Numa lentidão e numa cadência que contemplam o verso e o reverso dos factos, da História e do oficioso, para ver se entendemos alguma coisa da salgalhada e dos fratricídios em que nos metemos, como na meia hora final em que a personagem de De Niro procura entender-se e falar com a morte. Ou então apenas a moral de Jimmy Hoffa, que é a outra "grande" moral a que fomos desembocar no grande pântano: «Apenas faço o que eles me fazem a mim, só que pior». Eles, Canto de sangue e de lágrimas.
- Amazing Grace, Alan Elliott, Sydney Pollack
Alma mater, a mãe que alimenta ou nutre. A pátria das emoções. A verdade da fé. O cinema foi inventado para Aretha Franklin e os seus arcanjos planarem. Talvez por isso os deuses tenham resguardado esta obra divina, por tanto tempo longe dos terráqueos e das suas misérias. Até que resolveram oferecê-la, talvez como mais uma tentativa para nos abrirem os olhos. Assim o esperamos, mais uma vez.
- Ford v Ferrari, James Mangold
«Faz aquilo que gostas e não trabalharás um dia na tua vida». O ex-piloto e engenheiro Carroll Shelby e o piloto “suicida” Ken Miles são uma e a mesma pessoa e ambos são constituídos pelo mesmo material do cinema americano. Produtos das duas modernidades ambíguas do século XX: o Cinema e a Guerra. Como no cinema dessa nação, todas as ilusões valem tudo, é preciso alcança-las a qualquer custo, usando todo o arsenal físico e cerebral como um só veículo, vislumbrando e agarrando uma nova situação, porventura o impossível - «I’m a reacher, not a preacher, not a teacher», é o testamento de Michael Cimino. Meninos treinados na guerra que depois, alguns, como eles, queimaram o seu dia-a-dia e as relações pessoais para irem para o seu campo de batalha, aqui as pistas de corrida, as leis da física, a burocracia e as artimanhas para eles incompreensíveis do poder. «Vais dizer que não fazes uma coisa, ou porque é perigosa, ou porque te queres afastar dela, pois é talvez demasiado cegante ou irresistível, mas sabes que a vais fazer, daqui a um segundo ou daqui a dez anos». O responso da obsessão. Hustlers, amantes, desenrascados, corações de ouro, um pouco patetas da normalidade. E depois, tragédia ou bênção, o filho à espreita, que é um semelhante deles, e que vai andar à porrada com o seu melhor amigo, com a amada a vê-los esfarraparem-se, impassível, sabendo que virá ao de cima o amor puro e cristalino. Filho que também não terá um pé-de-meia e será irresponsável pois gastará tudo no essencial. James Mangold é um dos últimos humanistas, ou seja, um dos últimos radicais.
- Il traditore, Marco Bellocchio
Um épico sobre a ascensão e a queda, a fidelidade e a ruptura, a pressão e o absoluto. Mas sobretudo como o maior dos personagens “bigger than life” se pode reverter - como por magia ou com toda a naturalidade - carne e osso perante a simples amizade, o simples companheirismo, o regresso ao parque da infância vista toda a conspurcação adulta. Marco Bellocchio encena o maior dos aparatos cénicos, teatrais e audiovisuais – pois trata-se do grande circo - e atinge os sussurros, o jogo do sisudo e das partilhas juvenis, a irmandade absoluta, as nuances mínimas do Cinema ele mesmo. Ao lado de Rio Bravo de Hawks.
- Dolemite Is My Name, Craig Brewer
A candura do Rudy de Eddie Murphy pode ser igual à candura de Charlie Chaplin, de Ed Wood, de 2Pac ou até dos grandes cineastas (ou músicos) trabalhadores do digital do século XXI, esses raros que perderam as estribeiras do razoável e forçam nas 24 horas diárias o desconhecido à procura de uma nova verdade e de uma nova justiça. Devemos tudo a cada Dolemite.
- Rambo: Last Blood, Adrian Grunberg / Creed II, Steven Caple Jr.
https://raging-b.blogspot.com/2019/12/for-sly.html
https://raging-b.blogspot.com/2019/01/creed-2-steven-caple-jr.html
- Dolor y gloria, Pedro Almodóvar
A revelação e a confissão pedem sempre silêncio. É a crença recuperada de Pedro Almodóvar.
Descobertas:
- Quatro filmes curtos de Felix E. Feist (The Devil Thumbs a Ride, The Threat, The Man Who Cheated Himself, Tomorrow Is Another Day)
A série-b americana, a sua presença do real e a pressão formal (grandes depressões e os pistões a rodarem e a explodirem no interior dos planos cinematográficos) a comunicarem com o existencialismo e a filigrana de Antonioni (os céus a pesarem sobre a terra e sobre as resoluções humanas, o vento a caminhar na mesma direcção e baralhando tudo, a perdição e a aceitação ou não dessa condição perene).
Livros:
- Despachos, de Michael Herr (tradução de Paulo Faria)
- Como um pedaço de terra virgem, Virgínia Dias
Um bocadinho qualquer, que é tudo, virgem: «Conheço os varejadores, as azeitoneiras, os almocreves, o semeador, o ceifeiro, a mondadeira, gente de cujo gesto mágico brota o pão».
Discos:
- Thanks for the Dance, Leonard Cohen
- Ghosteen, Nick Cave
(na foto: Virgínia Dias no filme Além das Pontes de Pierre-Marie Goulet)
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