Da América sempre tivemos os mais diversos cineastas, as
imagens e sons mais experimentais, os planos libertadores e acusadores, a
tradição acérrima. No meio do turbilhão galopante, dos paradoxos e das
contradições fundadoras, ainda hoje prevalece entre poucos uma moral de levar
uma verdade até às últimas consequências, de meter um sistema em cheque, de
clarificar o intolerável. O que sempre retirou o tapete ao simplismo e à moralzinha
foi o factor pedra no sapato, o império a ser melindrado pelo Zé Ninguém,
pelo idiota, o vagabundo de Chaplin ou o gelo de Keaton, um Forrest Gump ou o
advogado alcoólico, alguém numa sombra, uns ridículos idealistas lúcidos, perfeitamente
desprovidos de poder ou de imagem social, que a um dado momento e num certo
lugar não aguentam mais e decidem saber para lá do que politicamente é
aceitável.
Como numa família ou num verdadeiro espírito de equipa há
gestos e tomadas de posição recorrentes, a que não se pode escapar caso se
queira perseguir essa certa verdade até aos confins, e um cineasta genuíno de
Hollywood ou das suas margens, sem segundas intenções nem ambígua ironia, inevitavelmente
e mesmo que resista irá apropriar-se à sua maneira de certas posições escritas
numa tábua como a dos mandamentos: entre outros, o esventrado naturalismo
revelador do nosso sistema social no “The Crowd” de King Vidor; as entradas e
saídas de casa provadas todas as guerras do Ethan Edwards / Ulisses em “The
Searchers” de John Ford; essa dupla atormentada por cheiros de veracidade e de
não-aceitação de controlo privado e global no “All the President's Men” de Alan
J. Pakula, abrindo caminho ao Oliver Stone de “JFK”, superação e reinvenção da
gramática Hollywoodiana em favor da crucial pergunta de uma nação.
Todd Haynes, conhecido como um grande artista do cinema
americano independente e criativo, nunca tendo feito nada que não revelasse
consciência, paixão e bom coração, decidiu que chegara a hora e atirou-se
veementemente para esses lados do sangue, suor e lágrimas (e possivelmente
também merda, a sujidade de merda que acarreta toda a exposição pública deste
tipo) dessa dura linhagem. “Dark Waters” é um filme carregado e manchado por
diversos cancros, doença figadeira, vesículas podres, mentiras podres, dentes
podres, fábricas horrendas expostas cruamente pela fria máquina de filmar que
mesmo assim parece provida do eufemismo, cinzentismo imperdoável, testículos de
vaca e de homens corrompidos, um meio orgânico, complexo e dinâmico regido pelo
veneno que sempre interessou a Haynes em diversas formas, atingindo aqui o
máximo de delírio, porque realista. Vistas e tocadas estas visões, águas a
feder do rio Styx, círculos contemporâneos do Inferno, fica-se pronto para a
porrada.
Os azuis, esverdeados e arrefecimentos básicos da fotografia
do genial e sempre denso Ed Lachman pintam e correm tudo a horrendo
plastificado de sacos de hipermercado incinerados, não caindo no entanto numa
tautologia da redundância pois todos os enquadramentos procuram gizar o
percurso do humano imerso na pocilga e, acto contínuo, perscrutar uma
resistência, uma orientação, uma salvação. Todo o mundo natural surge em
colapso na iminência de um cataclismo, de uma pandemia, do Apocalipse, mas como
disse Faulkner no seu discurso Nobel, falta ainda surgir um derradeiro grito do
homem. “Dark Waters” é o filme mais degradante de Haynes, e está ao lado dos
seus melhores. Quanto mais feio, mais justo, para aspirar a ser superiormente
belo, forçando diversos raios verdes nos derradeiros crepúsculos e prometendo
ainda mais um capítulo, mais uma oportunidade, mais um possível abraço, mais um
semelhante acordado.
É preciso procurar dentro, ou no olhar, ou na postura arqueada
mas sempre recta do espantoso advogado de Mark Ruffalo, procurar nas palavras e
nos gestos cortantes como catanas afiadas do espantoso camponês que o procura, esse
tremendo coração dos grandes individualistas descarados que sempre redimiram e
salvaram a América, o seu cinema, a sua História, sendo irmãos de toda e
qualquer humanidade que importa. Também como em “The Insider” de Michael Mann
trata-se de enfrentar o mal abstracto (liberalismo em todo o espectro,
corporativismo sobre-humano, globalização diabólica) dando em troca a casa e a
família, a sanidade e a carreira.
Acho que Haynes quis fazer este filme pois logo no início de
um processo ambiental e de vida e morte que se iria arrastar nos tribunais e na
praça pública por largos anos, um agricultor sem grande instrução primária diz
ao super-advogado interessado mas ainda aparelhado que, face ao grande sistema
- incluindo nisso os seus escritórios de defesa, os seus tribunais, a sua
justiça oficiosa, os seus cientistas, a sua imagem social composta - só a
protecção mútua entre os que estão fora desses grandes círculos mediáticos, ou
seja, os comuns, os cacos colados a raiva e a amor, pode levar a uma salvação.
Face ao ajuntamento e à fusão imbatível desse tumor, resta a
obsessão protelada de uma cura que não permite o descanso e o deixa andar,
um individualismo com milhares às costas, uma ousadia destruidora que mesmo na
data do juízo final ou às portas do céu há-de valer alguma coisa, nem que seja
o renovar da teimosia e da consciência de que alguém se preocupa. Tal como a
curva dramática da esposa do advogado tão solitário, tão acompanhado, que vai da
ascendente linha contínua do medo até ao vórtice do companheirismo
incondicional. Alguém tem de ir renovando a pedra no sapato, mesmo à custa da
vida privada ou de filmes aparentemente feios, à custa do que for.
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