terça-feira, 16 de junho de 2020

CASAS QUEIMADAS - Notas para futuros filmes III




José Oliveira
Junho de 2020



I, Planos à altura da situação, tentar a distância certa (exteriores). Simples campo-contra campo (interior da carrinha).

Bairro em Alvalade, lusco-fusco inapelável, atmosfera sufocante, veículos de alta cilindrada, Mercedes, Jaguar, BMW, vivendas espaçosas, jardins aritméticos, matriz asséptica. A brigada nocturna carrega a carrinha, sacos com duas sandes, refeições quentes na prata, peças de roupa variadas, jantar e ceia garantidos, vestuário possível. Máscaras comunitárias, luvas descartáveis, um voluntário usa sempre, outro nunca usa, dois usam conforme. Um homem do desporto, dois estudantes, um desempregado. Na rota impressa num tablet, as residências mais inóspitas à face do planeta terra. Sem comentários. Pelos Olivais velhos, duas paragens. Na primeira, o freguês habitual não aparece, no lugar vago apenas uma embalagem tetra-pack de vinho maduro tinto Lidl, um cobertor acobreado, a comida intacta do dia anterior. Na segunda, uma longa descida desde a estrada sossegada ladeada de vivendas germinadas até a um jardim encafuado, típico de tarefas de escuteiro, um senhor de barbas brancas, sem muito cabelo, desgrenhado e carregado de pauzinhos das árvores, casa de cartões junto a um casebre de guarda, mudo, com gestos entre a aflição existencial e a impossibilidade de explicação de coisa alguma. Um par de quilómetros e de curvas e contracurvas em fuga para a frente, duas casas abandonadas, grafitadas, ocupadas, número oitenta e quatro, de onde saem uns braços e uns farrapos agradecidos, juvenis, numa matriz desolada a cores garridas. No quarto ponto, Lidl de Xabregas, ruínas de alguma coisa antiga, de alguma habitação ou fabriqueta, chama-se, berra-se, Alguém aí?, boa-noite, alguém aí?, temos refeição quente, hoje é quente. Aparentemente, nada. Vinte metros à frente, numa paragem de autocarro, um senhor dos seus sessenta anos, explica que conhece muita gente da instituição, conta das saudades, cumprimenta o velho amigo voluntário que se voluntariou pela primeira vez, inicia uma ladainha cifrada, vários minutos, ininterruptos, vísceros.  Seguidamente, ainda em Xabregas, um carreiro, metade terra-batida, metade empedrado, fragoso, bravio, sem data, conduz aos abismos do cemitério do Alto de São João, que paira em silhueta nos altos, as campas alinhadas como sentinelas inconfessáveis contra um firmamento ainda resistente, os ciprestes já como que adormecidos, repousados, noite de completo breu estranhamente luzidio, dois voluntários transportam o cesto da comida, um à frente e outro atrás, alinhados, como quem transporta um caixão, o terceiro, na frente, topa o caminha, na rectaguarda, o último deles, tactea melindrosamente. Distinguem-se várias tendas, variada alvenaria, ora tosca, ora limada, aviários sem bicharia, grutas ecoantes, secas, o resto é um nublado dos mais diversos materiais e combinações. O supervisor chama, Aí alguém?, amigos, não querem comer nada, então, já de barriguinha cheia?, aparecem ou quê? Levanta-se um vulto negro, magro, depois outro, mais velho, de pensos nos joelhos, Boa-noite, hoje somos seis. Contam-se refeições. Seis?, mas já têm novos inquilinos outra vez, é? De cada vez é sempre mais um, sim senhor. Vou pousar aqui mas não deixe cair, veja lá, não posso arranjar mais porque está tudo contado, depois não temos para os outros. Seis pacotes para as mãos, as refeições quentes em cima de uma estaca de madeira instável, sorrisos cúmplices, agradecidos, talvez um pouco tímidos. Próximo ponto, falhado. Um número quarenta e quatro apenas conduz ao cemitério judaico, nem vivalma. Na estação do Oriente, metade da carga aliviada. Três voluntários na rectaguarda, em organização, em contagem, um a entregar em mãos, a dizer bom-apetite. Refugiados, meninas estilo dread, uma velhinha magra de cabelos branco-mítico a pedir roupa e informações do espaço de apoio, aleijados, doentes, tosses, estômagos a doer,  drogados, esfarrapados, surrados, cancerosos, uma numerosa família com um rapaz de dez anos, gordinho, camisa do Benfica, que deixa tombar imediatamente a refeição quente, Não dá para outra?, deixei escorregar sem querer. Não, se não, não chega para todos, faltam muitos pontos. Correrias na última da hora, salvações na última da hora, já depois da hora, nos descontos, uns com sorte ainda, outros a correrem atrás da carrinha, falhanços, braços caídos. Parque das nações, três em frente ao Altice Arena, meia idade, brancos, praticamente indiferenciáveis, agradecidos, encolhidos, outro em falta, Talvez tenha ido mijar, deixe a comida aí, por favor, eu informo, é bom moço. E um espaço estranhamente vago, austero, com uma prata da comida quente de ontem ainda intacta. Na carrinha, um ciclista estafeta da Glovo estaciona, Não tem comida?, é apoio, certo? Eu preciso de comida também, esta merda de empresa não paga um caralho. O saco das sandes é oferecido, e logo recusado. Caralho, recusando comida, é?, não quero a merda das sandes, quero comida quente. Olhares suspeitos, sem solução. Não dão, recusando comida, puta que pariu. Segunda paragem do Parque das Nações, várias filas de cartões colados, formando cubos-casas, num dos últimos, uma mulher dos trinta anos, parece uma menina, bem-parecida, cabelos castanhos longos, penteados, sorriso ténue, fala do tempo e da ventania, do acaso e da esperança, um casal de travestis com barba de três dias, primeiramente só um, Fala lá carago, ainda ontem me chateei porque não acreditaram que somos duas, anda, levanta-te. Chegam, a correr, cambaleantes, os atrasados da estação do Oriente, um deles pede mais uma sandes para o pequeno almoço, pedido recusado, resposta aceite, Eu percebo amigo, já cá não está quem falou, evidentemente que se pudessem vocês ofereciam outra, qual é a dúvida, e afasta-se sorridente com a sua mala de rodas estilo aviador, impecável, em direcção a nenhum aeroporto. Antes da partida, ainda um sem-abrigo recente, inglês, prudente, simpático. A carrinha rola, rola. Zona marginal, Av. Infante D. Henrique a Sta Apolónia Cais da Pedra, manobras intrincadas de acesso, imediações da discoteca LuxFrágil. Meia dúzia de tendas frágeis, atadas com molas, pregos, abraçadeiras finas, carcomidas, uma putrefacta, encostadas a caixas de electricidade com anúncios de festas canceladas, postes de iluminação toscos. Numa das barracas, um casal, pedem água, Não é possível, só comida, hoje não foi possível garrafas de água. Outro pede uma camisa, Talvez seja possível, já vou procurar. Numa tenda improvisada a tecido variegado, um jovem ainda, trinta e tal anos, dentes corroídos, olheiras carregadas, Olhe, o meu amigo daqui, você sabe quem é, aqui o vizinho, foi para um hostel e eu não, como é qué isto?, tem algum jeito, éramos inseparáveis... Incompreensão, falta de resposta assertiva, Vamos tentar saber alguma coisa. Na tenda final, esverdeada, desmaiada, junto à porta de entrada da discoteca, entesada com molas, a frase escrita Jesus Ama Os Pecadores, a borrona preta. Uma mão sai de dentro dela, esquiva, uma fracção de segundo, cortante, Obrigado. Segue-se em frente, até ao próximo viaduto, Mesmo ao lado onde aqui atrasado largaram um bebé num caixote do lixo, foi um destes quem o descobriu. Para cima de vinte habitações, tendas, cartões, plásticos, cobertores, perímetros inventados, cercados, colheres de sopa niqueladas, cantis vazios, gorros de todos os feitios, rádios forjados, baterias desenrascadas, cuecas, peúgas, graxa para sapatos, secadores de cabelo, pentes tortos, pentes impecáveis, espuma para a barba, lâminas, sabonetes, detergente Omo, escovas de dentes, mata-moscas, chaves de fendas, broxas, diluente, quinquilharia indistinguível, ferruginosa, nada. Uns levantam-se e vão à carrinha, casais na tenda suplicam água, dormentes profundos, um deles que não quer nada, resoluto, a ruminar de solidão, outro em volta, a falar animadamente ao telemóvel, num para-cá-e-para-lá de fala-barato típico, fato de treino branco, Adidas, cabelo e aspecto cuidado, a percorrer os becos forjados pelos quais ninguém reza, na noite ali cavernosa. No fosso da linha de vagões, vários objectos pousados, pendentes, recônditos, mini-rádios, mini-garrafas de whisky, headphones, temperatura irrespirável, electrificada, quase nuclear, frio interior. Estação Ferroviária de Lisboa-Santa Apolónia, bondade, só bondade, um senhor de sessenta anos que não pode andar, sentado num cartão, operado várias vezes antes da pandemia, espécie de incontinência urinária, Tenho de mudar o saco de quatro em quatro horas. Vá entregar àquele amigo que não anda, por favor, ou levo eu, e do outro lado da estrada está uma família nova, passem por lá, se puderem. Na Ribeira das Naus desce-se ao fundo de um oceano clamante de água, martelado a pedrinhas, enfarinhado, lúgubre e heróico, duas refeições a alguém invisível. Ainda em torno de uma esplanada outrora só para estrangeiros, dois jovens barbudos com tendas relativamente novas. Várias voltas ao Rossio, um suicida do Terreiro do Paço que se mete na frente da carrinha, desesperado, fora de rota. Dois dormintes perfeitamente em baixo da porta do Teatro Nacional de São Carlos, só cobertores e farrapos coloridos, em fiapos, precários, os mais austeros de todos, a razia. Estação do Rossio, várias construções inauditas, futuristas, barrocas, artilhadas, desenrascadas, espaçadas. Numa delas, vazia, vários compêndios em língua chinesa, uns em cima de outros, quase simétricos. Ninguém, mas de repente, alguém, novo, fresco, O que eu precisava era de uns cobertores, lençóis, roupa de cama, dá para marcar aí? Acenos de cabeça, Vamos tentar. Obrigado, eu percebo perfeitamente se não der para trazer. Tem aí peúgas e slips, que bom, isso é sempre preciso, eu prefiro slips aos boxers, muito mais suaves. Metam aí as refeições que eu distribuo, são quatro a contar comigo, ali no parapeito, deus vos abençoe. Estou aqui há três dias mas quero dar um jeito a isto, portanto se der para me trazerem uma vassourinha também agradeço, só ontem contei as beatas e parei nas cento e vinte, mas pretendo tornar isto catita, arrumadinho, boa noite e obrigadinho. Sé de Lisboa, porta incomensurável, um acordado, outro a dormir, e uma estória contada pelo supervisor passada nesse lugar. Alguém, há uns tempos, que saiu da casa de saúde nesse dia, e o morador habitual. Vocês prometeram-me umas sapatilhas, onde estão?, não vos perdoo cabrões. Tentativas de socos, insultos, entre-ajudas, fuga. Mas não admito humilhações, estou cá para ajudar e não para me rebaixar, se tivesse de ser partia-lhe os cornos. Costumamos comer uma bifana ali no Rossio, na primeiro de Dezembro, mas por causa desta coisa está tudo fechado, chegamos a casa pela uma da matina e matamos o bicho. Faltam duas paragens. A família do outro lado da Estação Ferroviária de Lisboa-Santa Apolónia, perto do rio, meia-idade, perfeitamente normal, apaixonada, abraçada, com sede. E a última, entre a fábrica da Nacional desde 1849 e os Silos Portuários. Como numa picada, como numa guerra, atravessa-se, passo a passo, pelo meio de duas filas de vagões de mercadorias, enferrujados, poirentos, quase orgânicos, expressionistas, pés bem assentes nos trilhos, Ajuda alimentar, boa noite, alguém aí? Languidamente, olhando à direita e à esquerda, ajustando o olhar no escuro, o ouvido no silêncio, verificando e perscrutando o canto mais esconso, o buraco mais denso. Um elemento pula vagão acima, tenta uma panorâmica geral, chama, nada. Para lá dos vagões, um descampado, árido, ervas, areia, duas tendas gigantescas, arrebentadas, pendentes, aparentemente nenhuma alma humana dentro, nenhum corpo humano, nenhuma réplica, muitos gatos, gordos, escanzelados, peludos, carecas, velhos, doentes, esfomeados. O supervisor avista um vulto ao fundo da tenda, sombreado, opaco, algo a suspirar microscopicamente, diz-lhe que tem a comida junto a ele. Nenhuma resposta humana, nenhum avatar, nenhuma raça, nenhum credo, apenas miares e choros, sem idioma. Pula-se os vagões, um atalho, outro. A Brigada nocturna regressa a um bairro de Alvalade, luminoso, chamativo, calmo. Cumprem-se os rituais de fecho de missão. Nenhum eco pairante de consumição, nenhum sinal pairante de suplício, uma calma de morte.

II, Ponto de vista do carro. Simples movimentos descritivos.

Alameda Dom Afonso Henriques, uma hora da madrugada, passadeira do lado do Hotel AS Lisboa, calor frio. Uma jovem de trinta anos, calças brancas de hospital, camisa branca de hospital, chinelos descartáveis de hospital, touca branca transparente de hospital ao pescoço, fita de triagem de hospital no pulso, adesivo de soro descolado nas veias do pulso. Pára junto à passadeira, descalça os chinelos descartáveis de hospital, vira-se ao contrário, atravessa a passadeira ao para trás, lentamente, olhar em frente às arrecuas, sorridente, despida. Pára novamente, na placa central divisória, um carro pára também, apesar de estar o sinal verde. Estás bem?, precisas de ajuda, não devias fazer isso, sabias? A menina sorri ao condutor, Muito obrigado pela informação, se o diz, eu acredito, vou estar atenta, e responsável. A menina atravessa a outra faixa, passa pelo meio de um bando de jovens, indistintos, indiferentes. Como quem ensina o caminho ao diabo, diziam os antigos. O carro arranca, hesitante.

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«No entanto, segundo fazia notar o secretário-geral da Federação do Trabalho, os negócios resistiam a novas quebras de actividade.
Autoconfiança para os sem-cheta e apoio governamental para os que já tinham mais do que aquilo que podiam gastar, esse era o plano. No entanto, os bancos dos jardins estavam húmidos todas as manhãs, quer chovesse quer não; e era possível uma pessoa fartar-se, mesmo que fosse de bananas.»

A Walk on The Wild Side, de Nelson Algreen (tradução: António Borga e Salvato Telles de Menezes)

segunda-feira, 8 de junho de 2020

CASAS QUEIMADAS - Notas para futuros filmes II




José Oliveira
Maio de 2020


I, Panorâmicas descritivas, reveladoras, planos-americanos.

Esplanada em plena Rua do Saco, vista para o Largo do Mastro e para o pátio infantil, final de tarde, sol translúcido, harmonioso, rasante algures, conciliador, pólen primaveril como neve a ciciar nos rostos de alguns, no acaso. Quatro mesas ocupadas. Um casal a ler, a comer gelados, a beber café. Dois nepaleses conversadores, imperiais geladas nas mãos. Três mulheres, uma com um calipo sabor a cola, dos seus trinta anos, outra a fumar e a beber imperial gelada, saia preta curta e top branco apertado, cabelo comprido e complexamente enroscado, é a mais nova, de vinte e poucos anos, e a mais velha, nos sessenta, com um gelado de chocolate, atenta, ouvinte, contemplativa. Na mesa junto à porta, uma mescla de seis pessoas, homens e mulheres na casa dos trinta e dos quarenta, quase todos possantes, gordos, consolados, de calções e saias vulgares, veraneantes, sem nenhum traço distinto aparente. Para um lado e para outro anda o dono do estabelecimento, limpa o açúcar desperdiçado de uma mesa, retira as beatas de um cinzeiro, entrega atabalhoadamente uma imperial estupidamente gelada e a esbordar. Retira a máscara cirúrgica logo que sai para a esplanada, coloca-a assim que pode quando acede ao interior. Sobre o plano elevado da faixa de rodagem um autocarro da Carris desfila vagarosamente na direcção do Largo do Mastro, rastejante, rumo à paragem, oferecendo a combustão negra de gases e químicos às fossas nasais, bocas e olhares dos frequentadores da esplanada, pára na paragem fazendo tempo, com o motor ligado. O condutor sai com a máscara cirúrgica no queixo, dirige-se ao café, desinfecta as mãos com desinfetante cutâneo à base de álcool etílico 70%.  colocado no portal, pede pela casa de banho. Repentinamente, surge uma bicicleta, um fato de treino da seleção portuguesa de futebol em cima dela, um cachecol da selecção portuguesa de futebol a cobrir um rosto magro, carregado de crateras, avermelhado, que se destapa assim que o veículo é encostado junto à tasca, pousa a mochila preta, carregada, claramente remendada por agrafos gigantes e toscos, espreguiça-se, chama pelo dono que está dentro, pede uma taça de tinto. O dono assoma vagarosamente, diz que ele tem de usar máscara para entrar, que tenha calma, que fale baixo que ele não é surdo, e que só lhe serve a taça nessas condições, e lá fora. Não uso dessa merda, não uso mesmo, foda-se, quarentenas, quarentenas…, eu cá só se for quarentonas, essas amando-lhes uma pinadela, agora máscaras, nem pensar, não mesmo, a máscara vai ser o copinho de tinto… mata tudo, à foda-se, tudo com medo de morrer, olha, você vai durar para sempre, vai ficar cá para colecção, não morre aquela que está ali a passar, toda equipada, à foda-se, uns dias dizem que temos de usar essa merda, outros dias já não, um dia a merda do vírus fica colado nesta mesa, outro dia nunca na vida, devem ganhar bem com essa merda, e pensar que somos burrinhos, só veem fumaça. O homem da selecção portuguesa continua nesta ladainha, saca uma nota de cinco euros remendada do bolso, alisa-a, estica-a, o dono abana a cabeça, diz valha-te deus, volta a entrar. A mochila aterra com estrépito numa cadeira, como que se desmonta, de dentro sai uma embalagem de vinho maduro tinto tetra-pack Bernardes, um pão grande de Mafra embrulhado num saco castanho, uma lata de azeitonas pretas, uma gamela e uma pá de alisar cimento, ele volta a meter tudo para dentro, retira do fundo umas calças elásticas pretas para mulher, leva-as contra o sol, estica-as, a taça de vinho e o troco chegam, ele pousa-as na mesa, bebe do copo, deixando cair uma porção considerável, tremelicando. Este caralho é sempre o mesmo, não se preocupem, conheço-o há vinte anos. Ainda mais inesperado do que a chegada do homem da selecção portuguesa são os latires caninos, os dentes rangentes, os gemidos, esgares graves, agudos, dementes, dois animais que se digladiam no centro da faixa de rodagem, levantando alcatrão ainda fresco colado ao pólen puro. Um cão gigantesco, acastanhado, focinho pontiagudo, ameaçador, outro de metade do tamanho daquele, branco, alvo, mas igualmente enervado, não reconciliado, picado. O dono do cão pequeno tem pulso firme, afasta-o, afaga-o, leva-o contra o seu peito. O dono do cão grande não pode com ele, berra-lhe, desmancha-se para o chão, desprotegido, meio tonto, meio pateta, à roda com a fita que prende o bicho à coleira, um saco de plástico junta-se entre ele e o cão grande que não larga o cão pequeno, o rosto arranha-se no chão, os óculos também se arranham, dois indianos e uma portuguesa juntam-se para ver o estranho acontecimento, poeira densa, barulho de coisas a roçarem. As coisas acalmam-se, um dono já em cada lado do passeio, o dono do cão pequeno prende o seu animal a um banco e vai tirar satisfações ao dono do cão grande. Sotaque de Leste Europeu, aparência de Leste Europeu, talvez ucraniano?, possante, vinte e picos anos, musculado, ar temível, t-shirt Olympique de Marseille Ultras, diz ao homem mais velho e careca que é obrigatório açaime num cão desse porte. O outro arranja uma justificação sobre a cor, algo incompreensível, sem sentido. Falam em inglês tosco. O jovem de leste pede-lhe doze vezes o número de telemóvel, para o caso do seu cão ter ficado ferido. Insistência, ar contrafeito, ar medroso, troca de números. O homem da selecção portuguesa junta-se a eles e diz que um cão daquele porte tem de ter açaime, o dono careca não gosta e declara que cada um deve meter-se na sua vida, o jovem de leste diz que o homem da selecção portuguesa tem razão e que ele compreendeu perfeitamente o seu português. O homem da selecção portuguesa diz ainda que cães não é para ele, que não limpa merda de ninguém. Um para cada lado, o homem da selecção portuguesa afaga o seu cabelo comprido, bem penteado, risco ao meio, afia ainda mais o seu olhar de lince, dois berlindes faiscantes acima do nariz comprido e aguçado, dirige-se para a sua mesa, acaba a taça, pousa-a estrondosamente, pede outra. O dono afirma que lhe traz outra na condição de se portar bem. O homem da selecção portuguesa pega nas calças elásticas e tenta vendê-las a uma senhora da mesa mais frequentada, a senhora possante olha para elas, estica uma das pernas, ergue-as ao sol, chega à conclusão de que nunca aquilo lhe servirá. Mas compre, para a sua filha, para a sua mão, dois euros não é dinheiro. A taça de tinto é assente na mesa, nada feito, não há negócio. A mesa da senhora e das jovens levanta-se, as pernas da mais nova reflectem a lívida brancura ao sol rasante algures, fala como uma matraca pelo telemóvel, o homem da selecção portuguesa declama que assim vale a pena ver umas pernas, a mulher dos seus trinta anos, vestido apertado, diz-lhe que tenha juízo, que acabe com aquela treta, o homem da selecção portuguesa responde que elas têm de manter a distância de segurança de dois metros para com ele, que isso está previsto na lei, e continuam a discussão, como num jogo de ténis, devoluções para trás e para a frente, a viela lateral a separar as facções, como uma espécie de rede de não agressão, a mais nova a dar mais importância ao matraquear por telemóvel do que ao resto, até o dono gritar acabou, até as mulheres virarem costas, recalcitrantes, a mais nova indiferente. O dono pede-lhe novamente para ele se portar bem, pois senão perde clientes, ninguém quer ir a um lugar para lhe moerem a cabeça. Senhor Zé, o senhor conhece-me, é com todo o respeito, as raparigas nem máscara tinham. Tudo se acalma momentaneamente, o homem da selecção portuguesa recebe um telefonema e começa a gritar que está perto do Paço da Rainha e que o encontro é lá daqui a meia horinha. Os nepaleses levantam-se, atravessam a rua, entram na biblioteca de São Lázaro. A dupla de leitores mantém-se impassível, um livro de Nelson Algren, outro de Fernando Assis Pacheco. O dono interrompe essa dupla, pergunta se está tudo bem, diz-lhes que aquele moço tem problemas, mas que é bom moço, não é mau de todo, há muito pior, por aí, disfarçados, e que o papel dele é como o dos árbitros da bola, ingrato. O dono do cão grande passa sozinho para cima, direcção largo do mastro, de telefone em punho, ainda a bufar. O homem da selecção portuguesa mete as calças elásticas na mala, desliga a chamada, diz até amanhã se deus quiser a toda a gente, diz desculpem qualquer coisinha, diz que não tem medo do corona, só tem medo dos idiotas, trepa elegantemente para cima da bicicleta, arranca, de mochila às costas, uma rabanada de vento traz mais uma camada de pólen, um autocarro furibundo ronca novamente na curva adjacente. 

II, Panorâmicas lentas, planos inteiros, laterais.

Campo dos Mártires da Pátria, meio dia, sol quase a pino, sem crostas, queimante. Barulho esfuziante, entorpecedor, planante, estupefaciente, crianças, patos, galinhas, perus, pais, mescla de complicada destrinça. Para Oeste, três arrumadores aguardam a sua vez, clamantes por uma viatura que estacione em frente ao Goethe-Institut Portugal – Lisboa. Um nos seus quarenta anos, cabelo curto, raro, calças e camisa cinzas, puídas, sem marca, com máscara cirúrgica no queixo. O mais velho, nos cinquentas, de rabo de cavalo brilhante e esbranquiçado, pelo meio das costas, forte, camisola dos Lakers tradicional, dourado já amarelado, número trinta e dois, Magic Johnson, lavado, resplandecente, olhar meigo, canino, sem máscara comunitária. E o mais novo, nos trintas, rabo de cavalo preto, calças de ganga Levis originais, t-shirt branca sem marca, máscara cirúrgica na cabeça, coberta de café e queimadura de tabaco, a fumar um cigarro. Não falam, perfilados, concentrados, em trabalho. Muitos corredores, muitas brincadeiras, meia dúzia de piqueniques, o chapinhar no lago, um sol de ananases. O arrumador mais novo sai da linha de trabalho, entra numa lateral do jardim, o cigarro curto ainda cesso, abre a braguilha, desce a máscara cirúrgica, fica algures entre a boca e o queixo, mija furiosamente sobre uma planta com aspecto de couve achatada, sacode o órgão genital, fecha a braguilha, corre para um carro que está prestes a estacionar, ajeita a máscara cirúrgica, realiza gestos geométricos com as mãos, diz assim, a direito, está bom, está bom, dona, prostra-se junto da porta, o cigarro nas últimas, resistente, uma mulher de meia-idade, de branco, calças brancas, blusa azul, sai da viatura, entrega uma moeda ao ajudante. A mulher atrapalha-se, fecha o carro com as chaves, abre-o, retira um telemóvel e um pequeno saco, fecha-o, pressiona o comando duas vezes, vai caminhando no passeio para os lados da Mú - Gelato Italiano e da sua fila de cinco metros, passa a mão pelo cabelo e pelo suor da testa, saca um gel desinfetante, limpa as mãos, o telemóvel, o saco, o rosto. Obrigadinha, minha senhora, passe um bom dia.

III, Planos inteiros, frontais, de conjunto, grande profundidade de campo, desfoque interdito.

Largo do Mastro, onze da noite, temperatura amena, a parca luz eléctrica misturada à lua descoberta, a fazer o que pode. Andaram a cortar cabeças e narizes lá em África, a matar pretos nossos, mas tão fodidos, vocês não têm memória, nem passado. Vocês brancos estão fodidos. Atenção, é diferente dos Estados Unidos da América, Portugal é diferente dos Estados Unidos da América, porque eles têm uma coisa diferente, os Estados Unidos da América têm competitividade, são competitivos, vocês brancos daqui não, os Portugueses não têm passado, nem memória, nem são competitivos. Cortaram as nossas cabeças, narizes, e fugiram para aqui, olhem-me nos olhos, vocês um dia vão-se foder todos, acreditem que se vão foder. Ninguém sabe quais as suas origens. Não papo grupos. Acreditem que se vão foder. Assentados no chão estão uma rapariga e um rapaz, a rapariga a beber cidra, a fumar, o rapaz a beber cerveja de garrafa média, no banco ao lado, outra rapariga, outro rapaz, a beberem cerveja de garrafa média, o rapaz a fumar, todos eles brancos, todos a olharem para o fantasma negro surgido subitamente da noite e do silêncio. Na fonte central, três raparigas, a conversarem, indiferentes, todas elas brancas, jovens, leves. Fantasma de carnagem suada, sulcada, olhos esgazeados, também pretos pretos, vestimenta esfarrapada, preta, vermelha, amarela, sapatilhas tipo Converse All Star, contrabandeadas, estraçalhadas. Nas costas vários sacos escuros que ele não deixa ver bem, cobertores a espreitarem, invólucro de prata parecido com os sacos para mortos dos médicos forenses, a brilhar, a incomodar, cartões de caixote, agrafados, pendentes com fita-cola acastanhada, garrafas de água, pacotes de vinho, plásticos. Tão fodidos, não existe competitividade, alguém me arranja um cigarro? O rapaz do chão responde que não fuma, o rapaz do banco oferece-lhe tabaco de enrolar, mortalhas, filtros. Na loja de conveniência do lado saem três miúdos com litrosas, visivelmente alegres. O fantasma negro abana a cabeça, volta-se, desaparece na noite, silencioso, sem olhar para trás.

IV, Campos, contra-campos, gerais, aproximados, larga duração, nunca grande-plano.

Rua dos Anjos, tempo indecidido, nuvens altas, espessas, prenhas, corrente com estranho cheiro a maresia, brisa morna, um pouco electrizante, horizonte avermelhado, ameaçador. Restaurante Sol-Rio, trancado a cadeado, poeirento, montra tapada com cortinados improvisados, pendentes, várias folhas com dois meses coladas com avisos aos clientes, vamos estar fechados uma semana por causa de questões de saúde. O vento, talvez sul, faz levantar contra a vidraça e contra o toldo folhas de jornais esvoaçantes, sacas plásticas, entulho, pó. O caixote do lixo do lado direito da entrada treme, vazio, a feder a piriscas húmidas. As bandeiras portuguesas de tamanhos vários colocadas em diversas janelas agitam-se. Do outro lado da rua, à sombra, assentado na borda ocre de um prédio impessoal, um homem de setenta anos, baixo, forte e mirrado ao mesmo tempo, cabelo branco puxado para trás à força de brilhantina, óculos de sol estilo aviador originais, camisa branca com finas riscas verdes, notoriamente lavada, calças pretas de corte delicado, recto, sapatos clássicos pretos, cabisbaixo, mão na testa a proteger-se de alguma coisa aparentemente invisível, apaziguado, convencido. A seu lado, um balde branco, meio cheio, com uma pasta gordurenta de banha de porco, uma colher de pau espetada no meio, em tensão. De quando em vez, de modo praticamente impercetível, abana a cabeça. De quando em vez, um saco, um jornal, ou simples poeira, perpassa-lhe o rosto, ele pisca os olhos. Nos ouvidos arranham-lhe antigos sons e palavreado, como cócegas, escuta taxistas, varredores, trolhas, mulheres da vida, doutores, estudantes, hippies, punks, amigos, proxenetas, géneros e raças que ele nunca saberá.  Em frente ao restaurante passa uma rapariga, talvez nova, camisola preta de mangas cavas com a frase Travailler pour Manger!, calções brancos curtos, esfiapados, cabelo preto apanhado, magríssima, rosto chupado, de idade difícil de adivinhar. Senhor Manuel, ei, senhor Manuel, acorde, quando é que abre o restaurante, hoje é segunda não é? O homem do outro lado da rua abana notoriamente a cabeça, tira os óculos, desempena um pouco as dobradiças das costas, fala pausadamente, não muito alto, com boa dicção, Acho que nunca mais, rapariga, talvez nunca mais.

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“O pouco dinheiro de que dispunha destinava-se quase exclusivamente ao tabaco e ao álcool, com vantagem para a bebida. A sua preferência não se devia à necessidade de afogar qualquer preocupação ou fase de desânimo, estados de espírito que raramente conhecia, pelo menos em consciência. Fazia-o apenas porque, enquanto emborcava as bebidas, não se achava inactivo. Encontrava-se desempregado e nada mais tinha para fazer.”

 David Goodis, “Brigada Nocturna” (Colecção Xis, Editorial Minerva)


[Publicado originalmente na rubrica Sala de Projeção do site da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema: http://saladeprojecao.cinemateca.pt/casas-queimadas-ii-notas-para-futuros-filmes/]