José Oliveira
Maio de 2020
I, Panorâmicas descritivas,
reveladoras, planos-americanos.
Esplanada em plena Rua do Saco, vista
para o Largo do Mastro e para o pátio infantil, final de tarde, sol
translúcido, harmonioso, rasante algures, conciliador, pólen primaveril como
neve a ciciar nos rostos de alguns, no acaso. Quatro mesas ocupadas. Um casal a
ler, a comer gelados, a beber café. Dois nepaleses conversadores, imperiais
geladas nas mãos. Três mulheres, uma com um calipo sabor a cola, dos seus
trinta anos, outra a fumar e a beber imperial gelada, saia preta curta e top
branco apertado, cabelo comprido e complexamente enroscado, é a mais nova, de
vinte e poucos anos, e a mais velha, nos sessenta, com um gelado de chocolate,
atenta, ouvinte, contemplativa. Na mesa junto à porta, uma mescla de seis
pessoas, homens e mulheres na casa dos trinta e dos quarenta, quase todos
possantes, gordos, consolados, de calções e saias vulgares, veraneantes, sem
nenhum traço distinto aparente. Para um lado e para outro anda o dono do
estabelecimento, limpa o açúcar desperdiçado de uma mesa, retira as beatas de
um cinzeiro, entrega atabalhoadamente uma imperial estupidamente gelada e a
esbordar. Retira a máscara cirúrgica logo que sai para a esplanada, coloca-a assim
que pode quando acede ao interior. Sobre o plano elevado da faixa de rodagem um
autocarro da Carris desfila vagarosamente na direcção do Largo do Mastro, rastejante,
rumo à paragem, oferecendo a combustão negra de gases e químicos às fossas
nasais, bocas e olhares dos frequentadores da esplanada, pára na paragem
fazendo tempo, com o motor ligado. O condutor sai com a máscara cirúrgica no
queixo, dirige-se ao café, desinfecta as mãos com desinfetante cutâneo à base
de álcool etílico 70%. colocado no
portal, pede pela casa de banho. Repentinamente, surge uma bicicleta, um fato
de treino da seleção portuguesa de futebol em cima dela, um cachecol da
selecção portuguesa de futebol a cobrir um rosto magro, carregado de crateras,
avermelhado, que se destapa assim que o veículo é encostado junto à tasca,
pousa a mochila preta, carregada, claramente remendada por agrafos gigantes e
toscos, espreguiça-se, chama pelo dono que está dentro, pede uma taça de tinto.
O dono assoma vagarosamente, diz que ele tem de usar máscara para entrar, que
tenha calma, que fale baixo que ele não é surdo, e que só lhe serve a taça
nessas condições, e lá fora. Não uso dessa merda, não uso mesmo, foda-se,
quarentenas, quarentenas…, eu cá só se for quarentonas, essas amando-lhes uma
pinadela, agora máscaras, nem pensar, não mesmo, a máscara vai ser o copinho de
tinto… mata tudo, à foda-se, tudo com medo de morrer, olha, você vai durar para
sempre, vai ficar cá para colecção, não morre aquela que está ali a passar,
toda equipada, à foda-se, uns dias dizem que temos de usar essa merda, outros
dias já não, um dia a merda do vírus fica colado nesta mesa, outro dia nunca na
vida, devem ganhar bem com essa merda, e pensar que somos burrinhos, só veem
fumaça. O homem da selecção portuguesa continua nesta ladainha, saca uma nota
de cinco euros remendada do bolso, alisa-a, estica-a, o dono abana a cabeça,
diz valha-te deus, volta a entrar. A mochila aterra com estrépito numa cadeira,
como que se desmonta, de dentro sai uma embalagem de vinho maduro tinto
tetra-pack Bernardes, um pão grande de Mafra embrulhado num saco castanho, uma
lata de azeitonas pretas, uma gamela e uma pá de alisar cimento, ele volta a
meter tudo para dentro, retira do fundo umas calças elásticas pretas para
mulher, leva-as contra o sol, estica-as, a taça de vinho e o troco chegam, ele
pousa-as na mesa, bebe do copo, deixando cair uma porção considerável,
tremelicando. Este caralho é sempre o mesmo, não se preocupem, conheço-o há
vinte anos. Ainda mais inesperado do que a chegada do homem da selecção
portuguesa são os latires caninos, os dentes rangentes, os gemidos, esgares
graves, agudos, dementes, dois animais que se digladiam no centro da faixa de
rodagem, levantando alcatrão ainda fresco colado ao pólen puro. Um cão
gigantesco, acastanhado, focinho pontiagudo, ameaçador, outro de metade do
tamanho daquele, branco, alvo, mas igualmente enervado, não reconciliado,
picado. O dono do cão pequeno tem pulso firme, afasta-o, afaga-o, leva-o contra
o seu peito. O dono do cão grande não pode com ele, berra-lhe, desmancha-se
para o chão, desprotegido, meio tonto, meio pateta, à roda com a fita que
prende o bicho à coleira, um saco de plástico junta-se entre ele e o cão grande
que não larga o cão pequeno, o rosto arranha-se no chão, os óculos também se
arranham, dois indianos e uma portuguesa juntam-se para ver o estranho
acontecimento, poeira densa, barulho de coisas a roçarem. As coisas acalmam-se,
um dono já em cada lado do passeio, o dono do cão pequeno prende o seu animal a
um banco e vai tirar satisfações ao dono do cão grande. Sotaque de Leste
Europeu, aparência de Leste Europeu, talvez ucraniano?, possante, vinte e picos
anos, musculado, ar temível, t-shirt Olympique de Marseille Ultras, diz ao
homem mais velho e careca que é obrigatório açaime num cão desse porte. O outro
arranja uma justificação sobre a cor, algo incompreensível, sem sentido. Falam
em inglês tosco. O jovem de leste pede-lhe doze vezes o número de telemóvel, para
o caso do seu cão ter ficado ferido. Insistência, ar contrafeito, ar medroso,
troca de números. O homem da selecção portuguesa junta-se a eles e diz que um
cão daquele porte tem de ter açaime, o dono careca não gosta e declara que cada
um deve meter-se na sua vida, o jovem de leste diz que o homem da selecção
portuguesa tem razão e que ele compreendeu perfeitamente o seu português. O homem
da selecção portuguesa diz ainda que cães não é para ele, que não limpa merda
de ninguém. Um para cada lado, o homem da selecção portuguesa afaga o seu
cabelo comprido, bem penteado, risco ao meio, afia ainda mais o seu olhar de
lince, dois berlindes faiscantes acima do nariz comprido e aguçado, dirige-se
para a sua mesa, acaba a taça, pousa-a estrondosamente, pede outra. O dono
afirma que lhe traz outra na condição de se portar bem. O homem da selecção
portuguesa pega nas calças elásticas e tenta vendê-las a uma senhora da mesa
mais frequentada, a senhora possante olha para elas, estica uma das pernas,
ergue-as ao sol, chega à conclusão de que nunca aquilo lhe servirá. Mas compre,
para a sua filha, para a sua mão, dois euros não é dinheiro. A taça de tinto é
assente na mesa, nada feito, não há negócio. A mesa da senhora e das jovens
levanta-se, as pernas da mais nova reflectem a lívida brancura ao sol rasante
algures, fala como uma matraca pelo telemóvel, o homem da selecção portuguesa
declama que assim vale a pena ver umas pernas, a mulher dos seus trinta anos,
vestido apertado, diz-lhe que tenha juízo, que acabe com aquela treta, o homem
da selecção portuguesa responde que elas têm de manter a distância de segurança
de dois metros para com ele, que isso está previsto na lei, e continuam a
discussão, como num jogo de ténis, devoluções para trás e para a frente, a viela
lateral a separar as facções, como uma espécie de rede de não agressão, a mais
nova a dar mais importância ao matraquear por telemóvel do que ao resto, até o
dono gritar acabou, até as mulheres virarem costas, recalcitrantes, a mais nova
indiferente. O dono pede-lhe novamente para ele se portar bem, pois senão perde
clientes, ninguém quer ir a um lugar para lhe moerem a cabeça. Senhor Zé, o
senhor conhece-me, é com todo o respeito, as raparigas nem máscara tinham. Tudo
se acalma momentaneamente, o homem da selecção portuguesa recebe um telefonema
e começa a gritar que está perto do Paço da Rainha e que o encontro é lá daqui
a meia horinha. Os nepaleses levantam-se, atravessam a rua, entram na
biblioteca de São Lázaro. A dupla de leitores mantém-se impassível, um livro de
Nelson Algren, outro de Fernando Assis Pacheco. O dono interrompe essa dupla,
pergunta se está tudo bem, diz-lhes que aquele moço tem problemas, mas que é
bom moço, não é mau de todo, há muito pior, por aí, disfarçados, e que o papel
dele é como o dos árbitros da bola, ingrato. O dono do cão grande passa sozinho
para cima, direcção largo do mastro, de telefone em punho, ainda a bufar. O
homem da selecção portuguesa mete as calças elásticas na mala, desliga a
chamada, diz até amanhã se deus quiser a toda a gente, diz desculpem qualquer
coisinha, diz que não tem medo do corona, só tem medo dos idiotas, trepa
elegantemente para cima da bicicleta, arranca, de mochila às costas, uma
rabanada de vento traz mais uma camada de pólen, um autocarro furibundo ronca
novamente na curva adjacente.
II, Panorâmicas lentas, planos
inteiros, laterais.
Campo dos Mártires da Pátria, meio
dia, sol quase a pino, sem crostas, queimante. Barulho esfuziante,
entorpecedor, planante, estupefaciente, crianças, patos, galinhas, perus, pais,
mescla de complicada destrinça. Para Oeste, três arrumadores aguardam a sua
vez, clamantes por uma viatura que estacione em frente ao Goethe-Institut
Portugal – Lisboa. Um nos seus quarenta anos, cabelo curto, raro, calças e
camisa cinzas, puídas, sem marca, com máscara cirúrgica no queixo. O mais
velho, nos cinquentas, de rabo de cavalo brilhante e esbranquiçado, pelo meio
das costas, forte, camisola dos Lakers tradicional, dourado já amarelado,
número trinta e dois, Magic Johnson, lavado, resplandecente, olhar meigo,
canino, sem máscara comunitária. E o mais novo, nos trintas, rabo de cavalo
preto, calças de ganga Levis originais, t-shirt branca sem marca, máscara
cirúrgica na cabeça, coberta de café e queimadura de tabaco, a fumar um
cigarro. Não falam, perfilados, concentrados, em trabalho. Muitos corredores,
muitas brincadeiras, meia dúzia de piqueniques, o chapinhar no lago, um sol de
ananases. O arrumador mais novo sai da linha de trabalho, entra numa lateral do
jardim, o cigarro curto ainda cesso, abre a braguilha, desce a máscara
cirúrgica, fica algures entre a boca e o queixo, mija furiosamente sobre uma
planta com aspecto de couve achatada, sacode o órgão genital, fecha a braguilha,
corre para um carro que está prestes a estacionar, ajeita a máscara cirúrgica,
realiza gestos geométricos com as mãos, diz assim, a direito, está bom, está
bom, dona, prostra-se junto da porta, o cigarro nas últimas, resistente, uma
mulher de meia-idade, de branco, calças brancas, blusa azul, sai da viatura,
entrega uma moeda ao ajudante. A mulher atrapalha-se, fecha o carro com as
chaves, abre-o, retira um telemóvel e um pequeno saco, fecha-o, pressiona o
comando duas vezes, vai caminhando no passeio para os lados da Mú - Gelato
Italiano e da sua fila de cinco metros, passa a mão pelo cabelo e pelo suor da
testa, saca um gel desinfetante, limpa as mãos, o telemóvel, o saco, o rosto.
Obrigadinha, minha senhora, passe um bom dia.
III, Planos inteiros, frontais, de
conjunto, grande profundidade de campo, desfoque interdito.
Largo do Mastro, onze da noite,
temperatura amena, a parca luz eléctrica misturada à lua descoberta, a fazer o que
pode. Andaram a cortar cabeças e narizes lá em África, a matar pretos nossos,
mas tão fodidos, vocês não têm memória, nem passado. Vocês brancos estão
fodidos. Atenção, é diferente dos Estados Unidos da América, Portugal é
diferente dos Estados Unidos da América, porque eles têm uma coisa diferente,
os Estados Unidos da América têm competitividade, são competitivos, vocês
brancos daqui não, os Portugueses não têm passado, nem memória, nem são
competitivos. Cortaram as nossas cabeças, narizes, e fugiram para aqui,
olhem-me nos olhos, vocês um dia vão-se foder todos, acreditem que se vão
foder. Ninguém sabe quais as suas origens. Não papo grupos. Acreditem que se
vão foder. Assentados no chão estão uma rapariga e um rapaz, a rapariga a beber
cidra, a fumar, o rapaz a beber cerveja de garrafa média, no banco ao lado,
outra rapariga, outro rapaz, a beberem cerveja de garrafa média, o rapaz a
fumar, todos eles brancos, todos a olharem para o fantasma negro surgido
subitamente da noite e do silêncio. Na fonte central, três raparigas, a
conversarem, indiferentes, todas elas brancas, jovens, leves. Fantasma de
carnagem suada, sulcada, olhos esgazeados, também pretos pretos, vestimenta
esfarrapada, preta, vermelha, amarela, sapatilhas tipo Converse All Star,
contrabandeadas, estraçalhadas. Nas costas vários sacos escuros que ele não
deixa ver bem, cobertores a espreitarem, invólucro de prata parecido com os
sacos para mortos dos médicos forenses, a brilhar, a incomodar, cartões de
caixote, agrafados, pendentes com fita-cola acastanhada, garrafas de água,
pacotes de vinho, plásticos. Tão fodidos, não existe competitividade, alguém me
arranja um cigarro? O rapaz do chão responde que não fuma, o rapaz do banco
oferece-lhe tabaco de enrolar, mortalhas, filtros. Na loja de conveniência do
lado saem três miúdos com litrosas, visivelmente alegres. O fantasma negro
abana a cabeça, volta-se, desaparece na noite, silencioso, sem olhar para trás.
IV, Campos, contra-campos, gerais,
aproximados, larga duração, nunca grande-plano.
Rua dos Anjos, tempo indecidido,
nuvens altas, espessas, prenhas, corrente com estranho cheiro a maresia, brisa
morna, um pouco electrizante, horizonte avermelhado, ameaçador. Restaurante
Sol-Rio, trancado a cadeado, poeirento, montra tapada com cortinados
improvisados, pendentes, várias folhas com dois meses coladas com avisos aos
clientes, vamos estar fechados uma semana por causa de questões de saúde. O
vento, talvez sul, faz levantar contra a vidraça e contra o toldo folhas de
jornais esvoaçantes, sacas plásticas, entulho, pó. O caixote do lixo do lado
direito da entrada treme, vazio, a feder a piriscas húmidas. As bandeiras portuguesas
de tamanhos vários colocadas em diversas janelas agitam-se. Do outro lado da
rua, à sombra, assentado na borda ocre de um prédio impessoal, um homem de
setenta anos, baixo, forte e mirrado ao mesmo tempo, cabelo branco puxado para
trás à força de brilhantina, óculos de sol estilo aviador originais, camisa
branca com finas riscas verdes, notoriamente lavada, calças pretas de corte
delicado, recto, sapatos clássicos pretos, cabisbaixo, mão na testa a
proteger-se de alguma coisa aparentemente invisível, apaziguado, convencido. A
seu lado, um balde branco, meio cheio, com uma pasta gordurenta de banha de
porco, uma colher de pau espetada no meio, em tensão. De quando em vez, de modo
praticamente impercetível, abana a cabeça. De quando em vez, um saco, um
jornal, ou simples poeira, perpassa-lhe o rosto, ele pisca os olhos. Nos
ouvidos arranham-lhe antigos sons e palavreado, como cócegas, escuta taxistas,
varredores, trolhas, mulheres da vida, doutores, estudantes, hippies, punks,
amigos, proxenetas, géneros e raças que ele nunca saberá. Em frente ao restaurante passa uma rapariga, talvez
nova, camisola preta de mangas cavas com a frase Travailler pour Manger!,
calções brancos curtos, esfiapados, cabelo preto apanhado, magríssima, rosto
chupado, de idade difícil de adivinhar. Senhor Manuel, ei, senhor Manuel,
acorde, quando é que abre o restaurante, hoje é segunda não é? O homem do outro
lado da rua abana notoriamente a cabeça, tira os óculos, desempena um pouco as
dobradiças das costas, fala pausadamente, não muito alto, com boa dicção, Acho
que nunca mais, rapariga, talvez nunca mais.
#
“O pouco dinheiro de que dispunha
destinava-se quase exclusivamente ao tabaco e ao álcool, com vantagem para a
bebida. A sua preferência não se devia à necessidade de afogar qualquer
preocupação ou fase de desânimo, estados de espírito que raramente conhecia,
pelo menos em consciência. Fazia-o apenas porque, enquanto emborcava as
bebidas, não se achava inactivo. Encontrava-se desempregado e nada mais tinha
para fazer.”
[Publicado originalmente na rubrica Sala de Projeção do site da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema: http://saladeprojecao.cinemateca.pt/casas-queimadas-ii-notas-para-futuros-filmes/]
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