sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

I guess I'll be learning.

 

«Não tens o direito de te desinteressares»

Deuteronómio Bíblico


Longe da Capital e da indústria audiovisual, A Serra é a nova novela da SIC. A ideia, como todas as ideias que fogem dos grandes centros urbanos e dos espartilhos formais e económicos a elas associadas, é boa, mas o resultado do primeiro episódio é absolutamente banal, provando que a religião do audiovisual atropela tudo em todo o lado, perto ou longe das modas, humilhando os usos e os costumes, matando a fidelidade e as pessoas de carne e osso, para construir bonecos. Aniquila ainda qualquer resquício ou princípio de romanesco clássico (e o moderno, tempos dilatados ou incomunicabilidade, nem sombras), para acreditar no inacreditável dos acontecimentos e dos nexos obtusos que permitam encaixotar no bombástico episódio inaugural a aventura (a escalada perigosa na serra), os jogos de poder vários (as famílias capitalistas que vieram de longe e tudo espezinham) e obviamente o amor impossível entre o menino rico e a menina pobre que se vai tornando mais bela logo que o amor e o pretendido sexo acontecem no anticlímax; sim, porque para fixar os espectadores conquistados pela poderosa campanha publicitária, o ridículo ainda vai matar o que restava na derradeira cena de assassinato absolutamente improvável: dificílima de acreditar pela precipitação da arquitetura do guião, e totalmente falhada na sua execução puramente dramática (e mesmo técnica). O resto são os drones a tentarem cativar e amplificar a imaginação, a balada musical melosa para cada situação melosa e a sopa sonora cheia de arranhões para a tensão, as trovoadas e as tempestades de plástico (por computador), as caricaturas gerais (Maria João Abreu, a eterna Lucinda de Médico de Família é particularmente grotesca)  das personagens e figurantes – dos casacos “serranos” que a maioria veste até ao pão e queijo que quase todos fazem, passando pelos gritos da padeira até aos sotaques lisboetas a macaquearem as Beiras, nesses trejeitos a emularem os “parolos” com o mínimo de choque possível para não se ofender ninguém e para a Junta de freguesia ou a Câmara municipal que paga uma parte da novela ficar satisfeita, etc. Evidentemente, já é perfeitamente normal (novíssimo normal) que seja proibido fumar ou beber a sério na “caixinha” que certa vez mudou o mundo e a noção de Bem e de Mal é uma coisa tão estanque e limpa como a falta de lixo nas ruelas e nos becos.  Mas, tão grave como, a cena de amor (no fundo, não-amor, e jamais sexo) que parecendo não o ser é pornográfica e falsa, pois será ela a alimentar todo o imaginário romântico e “feel good…” da temporada auspiciosa, aconchegando-nos no quentinho do aquecimento central junto ao plasma de ultra-definição rumo ao Confinamento perfeito. Cena que é apoteose e dínamo para a crença de que tudo aquilo poderá ser possível a cada qual que ouse ser disruptivo (ou qualquer outra palavra gratuita do novo vocabulário dos proactivos e dos totalmente sãos: fora da caixa?, resilientes?);  cena que nos mente na promessa vácua (porque as formas televisivas  e as fórmulas, a verdade humanista e logo os sentimentos são nulos) de que tudo ficará bem e passará. E José Mata e Júlia Palha nem têm qualquer culpa neste rolo compressor de espezinhamento de autenticidade, como não têm culpa outros bons atores que por lá cirandam à cata de um qualquer lado genuíno, pois tudo está morto à nascença numa escrita criativa e numa falta de visão de mundo que celebra os seus limites estreitos em qualquer escritório citadino com a ajuda do célebre “googlar” que serve para todo o composto, para todo este jogo de marionetas desvitalizadas que sentem todos os órgãos vitais arrancados a frio e a ignorância.  A Serra, mais do que falsa televisão a carburar, é a total irresponsabilidade humana, ainda antes de se falar na cultura, na arte ou das concessões necessárias da indústria.




Na contramão de todo este falso brilho encontra-se um filme americano de 2018 que justamente tem encontrado um culto secreto que funciona como o próprio tema, ou cerne, da empreitada: tentar resgatar um certo humanismo de uma prole que parece realmente em vias de extinção. Para isso o realizador S. Craig Zahler teve de se afastar das grandes “majors” e montar uma complexa co-produção entre mais de dez entidades produtoras, conquistar o auxílio de um Mel Gibson desnudado, ferido e na ternura dos sessenta e de um Vince Vaughn em super-contenção. Uma prole, dizia, que é ela mesma super-intrincada, contraditória, que pratica o bem e o mal e que certas vezes ou vezes demais está para além dele, sem jamais o ponto de vista do filme dizer que uma coisa ou uma ação está certa e outra está errada. E como para estas coisas é preciso coragem e compromisso, então Dragged Across Concrete dura mais de duas horas e meia, sendo edificado em grandes blocos que tomam todo o tempo que necessitam, blocos de tempo e de duração que comportam entre os vinte e os quarenta minutos nos núcleos mais graves – e a cena da recém-mãe que trabalha num banco, introduzida fora de contexto e de fora para dentro da narrativa, é uma invenção de sentido que vai acrescentando camadas e definições sucessivas de carácter e moralidade (sobretudo aos espetadores), fazendo lembrar girandolas diabólicas de Sidney Lumet ou de Hou Hsiao-Hsien, isto é: a culpa e a abjeção, a pertinência e a chantagem sobre o espetador e o entorno (marido, colegas) dessa personagem, fazem parte do caos e do ruído do mundo pós-clássico, pós-claro - os leões e a selva e a selvajaria já não estão nos lugares certos... - mundo agora em que a narração ela mesma e o contador de histórias já têm consciência dessas corrupções e assim mesmo trabalham com elas para as poderem criticar dentro do seu sistema de finalidade leal - por contraste, os dois policias e o seu modo de operar e logo de narrar são perfeitamente claros e produtivos; portanto, o oposto da diversão de Quentin Tarantino e do nojo de  The Usual Suspects de Bryan Singer. Sem caricaturas a não ser que os retratados as sejam, sem realismo em segunda-mão ou maquiagem materialista ou sentimental, todos os heróis são anti-heróis, como todos os vilões são anti-vilões, colhidos e mantidos presas de uma lama e de uma sujidade (argamassa mortal, concreto) que os ultrapassa e os faz redimensionar e perspetivar os problemas e as soluções constantemente, dependendo do inaceitável e do inacreditável que presenceiam a cada instante do girar do nosso mundo dubiamente regrado: seja o polícia de Gibson a tecer desiludido as considerações de ter sido suspenso porque não tratou com bons modos a captura de uns traficantes de droga que iriam destruir incontáveis jovens e crianças, seja o ex-presidiário que abre o filme, todo ele coração de ouro e de causas belas - que irá mesmo no epilogo oferecer à família do defunto agente de Gibson aquilo por que ele arriscou tudo fatalmente -  a ceder à carnificina mais hedionda que permita que o seu irmão aleijado e a viver em terra queimada possa concretizar os seus sonhos improváveis. Tal como em Clint Eastwood, certos meios permitem forjar os fins mais impossíveis pois mais desejáveis, e fechando os olhos e o coração durante o instante macabro – necessário ou abjeto?, necessário porque abjeto? – acredita-se na possibilidade de reconstruir as fundações de uma sociedade podre. Utopia ou ação necessária pela perdição indesculpável, S. Craig Zahler ousa um épico sobre essa podridão do sistema em vários sentidos: económico, humanista, racista… e nesse sentido a cena em que um assaltante de uma banal loja de provisões descarrega friamente uma metralhadora num pobre empregado indefeso, com as imagens e a reportagem sensacionalista do castigo ao polícia de Gibson e ao seu companheiro a encherem de som e de fúria caladas o espaço, é capital. Nesse quadro cerrado temos o mal e o seu antídoto imprestável, a violência aleatória e as forças da ordem – o bem – no mesmo comprimento de onda, estagnados num pântano ético e moral que da loucura individual à imprensa já tudo normalizou. Cena a um mesmo tempo prática na sua escalada de imoralidade, e teórica nessa dialética produtiva impraticável. Mas talvez seja a responsabilidade de S. Craig Zahler que faça a diferença e que funcione como antitóxico perfeito para a novela da SIC: temos seres imperfeitos e envelhecidos como Gibson, racistas e também preocupados com o semelhante mesmo quando já olham a morte, que fumam e bebem de uma maneira já hoje proibida no audiovisual, moralmente dúbios e redutores e que estão sempre contra as modas e o saudável, e mesmo assim ou por isso mesmo o trabalho do cinema tem que ser total. Total porque disponibiliza o tempo todo que for preciso para tentar entender estas personagens que existem pois existem pessoas assim no mundo, fora do cinema. E o cinema que existe em Dragged Across Concrete é visceral e de uma envergadura que faz jus à complexidade dos sentimentos: cada enquadramento, cada movimento dentro dele, cada desenho de luz, cada som e cada corte de montagem existem pois há um motivo existencial para essa redefinição no mundo, adaptando constantemente a argamassa formal ao meio em questão. Portanto, o suposto clímax espetacular de um blockbuster renegado à nascença volve-se anti-blockbuster e de um arrastamento dolente, cheio de patético, carniçada e porcalhada, ou seja, perfeitamente realista. Que tanto se possa falar nas soluções duras e económicas do cinema da série-b americano (duro como Siegel, vetorizado como Carpenter, ambiguamente torcido como o Cop de James B. Harris, feitura correta da série Lethal Weapon), como da amplitude, respiração e espectro sentimental de David W. Griffith, só prova da responsabilidade e da grandeza em causa. Estreou discretamente em Portugal no final de 2019 mas continuará a ser falado nos próximos anos entre quem esteve atento ou o irá descobrir.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

William A. Wellman, Sydney Pollack: Tempo para Amar Tempo para Morrer

 


Heroes for Sale é um filme puramente americano, ou seja, universal. Realizado por um duro, vivido e sabido realizador, William A. Wellman, (jovem rebelde, aviador na primeira Guerra Mundial, camionista, pioneiro cinematográfico), comprime o tempo, o espaço e as ideologias para libertar a persistência e os arrasos das paixões. Uma narrativa de trocas: o herói trocado pelo cobarde na guerra inicial, a fama trocada pela humilhação no regresso dos heróis, os comunismos trocados pelos capitalismos, e, no final, para resumir: a mais pura caridade servida pela clandestinidade, numa aproximação sanguínea a The Grapes of Wrath (John Steinbeck ou John Ford). As histórias de amores são particularmente totais, unas e complementares: o filho que quer ser como o pai que foi herói incógnito e continua a sê-lo na sombra; a mulher jovem e a mais velha que são uma apenas e produzem as mesmas ondas sensíveis no herói, uma continuará a outra e a outra antecederá tudo; o bondoso servente da cafetaria que une todas estas personagens (pessoas, antes de tudo) para lá da trama da ficção e do tempo e do documentário, chegando à resistência do ontem e do agora pelos valores mais básicos e universais. Mas o mais violento, pois trata-se da revelação (epifania) e ternura (perdição) do movimento cinético das luzes e sombras e fantasmagoria concreta, é essa câmara de filmar ao nível do desenrolar destas vidas e da História, ao nível do olhar subjectivo destas pessoas comuns e dos passeios de todos os dias e com uma amplitude e respiração agregadora do cosmos e do tempo/espaço circular; a liberdade e o tremor da primeira câmara que alguma vez passou pelo mundo, antes das leis, vigilante e selvagem. A velha escala dos planos e da planificação Hollywoodiana, sim, mas igualmente um fluxo que já é puramente sequencial no seu varrimento aterrador que não classifica ordem de grandezas (plano sequência puro, sem consciência nem linguística castradora, assim existencial). A totalidade do universo – das guerras ao desabrochar do sorriso da criança e as ideologias corrompidas – e o corriqueiro fragmento - um namorisco à dona do estabelecimento - que é a tábua de salvação diária. William A. Wellman, liberto ainda ou mordido nos calcanhares pelo código Hayes e queimado pela vida, agarra no pó das passadas diárias o pó da via láctea. Heroes for Sale é o presente puríssimo.



«Six weeks later, Lillian dies. It is described as a peaceful moment, as if even the landscape had stopped breathing.», da sinopse do livro Heaven Has No Favorites.

Sydney Pollack disse acerca de Bobby Deerfield que era o seu filme mais europeu. Ambientado de início no mundo das corridas de carros, com um Al Pacino que tem pinta de muita coisa mas não de corredor de Fórmula 1 (condição contrária ao actors studio de Pacino), e com uma história de amor que se vai inventar sob o signo do patético para evoluir para o trágico e acabar na perfeição, é uma das obras mais inclassificáveis dos anos setenta americanos, pois tudo vai planar na rede existencialista da morte muito para lá ou cá de espartilhos narrativos europeus ou americanos. Talvez por ter como ténue base um romance de Erich Maria Remarque – o F. Scott Fitzgerald europeu – de nome Heaven Has No Favorites, que poderia ser a sinopse poética do filme, e por o tempo – Remarque e Fitzgerald aglutinados – ser a matéria de fulcro, a figura de estilo primordial surja indefinida no combate entre a paisagem deslizante – travellings de filigrana – e o grande-plano, que tanto nos leva para os terrenos funestos de Philippe Garrel como para a metafísica de Ingmar Bergman. Mas tal como a protagonista feminina (Marthe Keller como a morte só permite que com ela se flerte assim uma única vez, apenas uma; ainda bem que Pollock teve a coragem de não aceitar o “assédio” de Catherine Deneuve, que poderia puxar o sexo para primeiro plano) que tem a vida contada por meses, dias ou horas, também o vício de «só correr» e da perfeição mecânica da personagem de Pacino, criam um elã estelar de pronúncio e de suspiro de morte, nesses cortes abruptos e assustadores dos dois caixões que vemos sem palavras, até à aceitação e aragem final em paralítico da fotografia que distende e consuma esse encontra para as sendas da eternidade. A montagem e enlevo funesto trabalham a dilatação normalmente associada à sensibilidade europeia ao mesmo tempo que se emparelha com o laconismo americano – Pacino corre apenas, sem pensar porquê, porque sim; e Pollack, um dos mais complexos parceiros de dança da Morte em partes soterradas de uma filmografia também ela complexa e mais inteligente do que a superfície, olha para a presença da corrupção e da podridão do corpo com a mesma frontalidade do Thomas Mann de The Magic Mountain, aguentando a sua e a sensibilidade do protagonista em ponto de colisão com as calmas e as premonições sempre fugidias da hora derradeira -  Bobby Deerfield retira, como a morte, o tapete a convenções e a mecanismos certos, tal como o corredor continuará a lutar contra a mecânica do acidente. Sob a condição da morte – ele, ela, eles, - é o mais triste e o mais bonito dos contos convocados pela hora imprevista e indestrinçável das paixões e das finitudes, e a mais bela metáfora de todo esse inominável é o carro parado transportado pelo comboio: a velocidade em reflexão. A fotografia final, a velocidade congelada, os balões de ar quente dos sonhos de criança - Bobby Deerfield é uma balada ao poderio do efémero, absolutamente triste e absolutamente alegre; furado e pacificado por motores a roncar, óleo e borracha e platonismos planantes, é um dos pináculos do sublime singelo de Pollack e de alguns seus pares talvez humildes demais para pensarem nisso (Mulligan… Pakula… ?).