«Não tens o direito de te
desinteressares»
Deuteronómio Bíblico
Longe da Capital e da indústria audiovisual, A Serra é a nova novela da SIC. A ideia, como todas as ideias que fogem dos grandes centros urbanos e dos espartilhos formais e económicos a elas associadas, é boa, mas o resultado do primeiro episódio é absolutamente banal, provando que a religião do audiovisual atropela tudo em todo o lado, perto ou longe das modas, humilhando os usos e os costumes, matando a fidelidade e as pessoas de carne e osso, para construir bonecos. Aniquila ainda qualquer resquício ou princípio de romanesco clássico (e o moderno, tempos dilatados ou incomunicabilidade, nem sombras), para acreditar no inacreditável dos acontecimentos e dos nexos obtusos que permitam encaixotar no bombástico episódio inaugural a aventura (a escalada perigosa na serra), os jogos de poder vários (as famílias capitalistas que vieram de longe e tudo espezinham) e obviamente o amor impossível entre o menino rico e a menina pobre que se vai tornando mais bela logo que o amor e o pretendido sexo acontecem no anticlímax; sim, porque para fixar os espectadores conquistados pela poderosa campanha publicitária, o ridículo ainda vai matar o que restava na derradeira cena de assassinato absolutamente improvável: dificílima de acreditar pela precipitação da arquitetura do guião, e totalmente falhada na sua execução puramente dramática (e mesmo técnica). O resto são os drones a tentarem cativar e amplificar a imaginação, a balada musical melosa para cada situação melosa e a sopa sonora cheia de arranhões para a tensão, as trovoadas e as tempestades de plástico (por computador), as caricaturas gerais (Maria João Abreu, a eterna Lucinda de Médico de Família é particularmente grotesca) das personagens e figurantes – dos casacos “serranos” que a maioria veste até ao pão e queijo que quase todos fazem, passando pelos gritos da padeira até aos sotaques lisboetas a macaquearem as Beiras, nesses trejeitos a emularem os “parolos” com o mínimo de choque possível para não se ofender ninguém e para a Junta de freguesia ou a Câmara municipal que paga uma parte da novela ficar satisfeita, etc. Evidentemente, já é perfeitamente normal (novíssimo normal) que seja proibido fumar ou beber a sério na “caixinha” que certa vez mudou o mundo e a noção de Bem e de Mal é uma coisa tão estanque e limpa como a falta de lixo nas ruelas e nos becos. Mas, tão grave como, a cena de amor (no fundo, não-amor, e jamais sexo) que parecendo não o ser é pornográfica e falsa, pois será ela a alimentar todo o imaginário romântico e “feel good…” da temporada auspiciosa, aconchegando-nos no quentinho do aquecimento central junto ao plasma de ultra-definição rumo ao Confinamento perfeito. Cena que é apoteose e dínamo para a crença de que tudo aquilo poderá ser possível a cada qual que ouse ser disruptivo (ou qualquer outra palavra gratuita do novo vocabulário dos proactivos e dos totalmente sãos: fora da caixa?, resilientes?); cena que nos mente na promessa vácua (porque as formas televisivas e as fórmulas, a verdade humanista e logo os sentimentos são nulos) de que tudo ficará bem e passará. E José Mata e Júlia Palha nem têm qualquer culpa neste rolo compressor de espezinhamento de autenticidade, como não têm culpa outros bons atores que por lá cirandam à cata de um qualquer lado genuíno, pois tudo está morto à nascença numa escrita criativa e numa falta de visão de mundo que celebra os seus limites estreitos em qualquer escritório citadino com a ajuda do célebre “googlar” que serve para todo o composto, para todo este jogo de marionetas desvitalizadas que sentem todos os órgãos vitais arrancados a frio e a ignorância. A Serra, mais do que falsa televisão a carburar, é a total irresponsabilidade humana, ainda antes de se falar na cultura, na arte ou das concessões necessárias da indústria.
Na contramão de todo este falso brilho encontra-se um filme americano de 2018 que justamente tem encontrado um culto secreto que funciona como o próprio tema, ou cerne, da empreitada: tentar resgatar um certo humanismo de uma prole que parece realmente em vias de extinção. Para isso o realizador S. Craig Zahler teve de se afastar das grandes “majors” e montar uma complexa co-produção entre mais de dez entidades produtoras, conquistar o auxílio de um Mel Gibson desnudado, ferido e na ternura dos sessenta e de um Vince Vaughn em super-contenção. Uma prole, dizia, que é ela mesma super-intrincada, contraditória, que pratica o bem e o mal e que certas vezes ou vezes demais está para além dele, sem jamais o ponto de vista do filme dizer que uma coisa ou uma ação está certa e outra está errada. E como para estas coisas é preciso coragem e compromisso, então Dragged Across Concrete dura mais de duas horas e meia, sendo edificado em grandes blocos que tomam todo o tempo que necessitam, blocos de tempo e de duração que comportam entre os vinte e os quarenta minutos nos núcleos mais graves – e a cena da recém-mãe que trabalha num banco, introduzida fora de contexto e de fora para dentro da narrativa, é uma invenção de sentido que vai acrescentando camadas e definições sucessivas de carácter e moralidade (sobretudo aos espetadores), fazendo lembrar girandolas diabólicas de Sidney Lumet ou de Hou Hsiao-Hsien, isto é: a culpa e a abjeção, a pertinência e a chantagem sobre o espetador e o entorno (marido, colegas) dessa personagem, fazem parte do caos e do ruído do mundo pós-clássico, pós-claro - os leões e a selva e a selvajaria já não estão nos lugares certos... - mundo agora em que a narração ela mesma e o contador de histórias já têm consciência dessas corrupções e assim mesmo trabalham com elas para as poderem criticar dentro do seu sistema de finalidade leal - por contraste, os dois policias e o seu modo de operar e logo de narrar são perfeitamente claros e produtivos; portanto, o oposto da diversão de Quentin Tarantino e do nojo de The Usual Suspects de Bryan Singer. Sem caricaturas a não ser que os retratados as sejam, sem realismo em segunda-mão ou maquiagem materialista ou sentimental, todos os heróis são anti-heróis, como todos os vilões são anti-vilões, colhidos e mantidos presas de uma lama e de uma sujidade (argamassa mortal, concreto) que os ultrapassa e os faz redimensionar e perspetivar os problemas e as soluções constantemente, dependendo do inaceitável e do inacreditável que presenceiam a cada instante do girar do nosso mundo dubiamente regrado: seja o polícia de Gibson a tecer desiludido as considerações de ter sido suspenso porque não tratou com bons modos a captura de uns traficantes de droga que iriam destruir incontáveis jovens e crianças, seja o ex-presidiário que abre o filme, todo ele coração de ouro e de causas belas - que irá mesmo no epilogo oferecer à família do defunto agente de Gibson aquilo por que ele arriscou tudo fatalmente - a ceder à carnificina mais hedionda que permita que o seu irmão aleijado e a viver em terra queimada possa concretizar os seus sonhos improváveis. Tal como em Clint Eastwood, certos meios permitem forjar os fins mais impossíveis pois mais desejáveis, e fechando os olhos e o coração durante o instante macabro – necessário ou abjeto?, necessário porque abjeto? – acredita-se na possibilidade de reconstruir as fundações de uma sociedade podre. Utopia ou ação necessária pela perdição indesculpável, S. Craig Zahler ousa um épico sobre essa podridão do sistema em vários sentidos: económico, humanista, racista… e nesse sentido a cena em que um assaltante de uma banal loja de provisões descarrega friamente uma metralhadora num pobre empregado indefeso, com as imagens e a reportagem sensacionalista do castigo ao polícia de Gibson e ao seu companheiro a encherem de som e de fúria caladas o espaço, é capital. Nesse quadro cerrado temos o mal e o seu antídoto imprestável, a violência aleatória e as forças da ordem – o bem – no mesmo comprimento de onda, estagnados num pântano ético e moral que da loucura individual à imprensa já tudo normalizou. Cena a um mesmo tempo prática na sua escalada de imoralidade, e teórica nessa dialética produtiva impraticável. Mas talvez seja a responsabilidade de S. Craig Zahler que faça a diferença e que funcione como antitóxico perfeito para a novela da SIC: temos seres imperfeitos e envelhecidos como Gibson, racistas e também preocupados com o semelhante mesmo quando já olham a morte, que fumam e bebem de uma maneira já hoje proibida no audiovisual, moralmente dúbios e redutores e que estão sempre contra as modas e o saudável, e mesmo assim ou por isso mesmo o trabalho do cinema tem que ser total. Total porque disponibiliza o tempo todo que for preciso para tentar entender estas personagens que existem pois existem pessoas assim no mundo, fora do cinema. E o cinema que existe em Dragged Across Concrete é visceral e de uma envergadura que faz jus à complexidade dos sentimentos: cada enquadramento, cada movimento dentro dele, cada desenho de luz, cada som e cada corte de montagem existem pois há um motivo existencial para essa redefinição no mundo, adaptando constantemente a argamassa formal ao meio em questão. Portanto, o suposto clímax espetacular de um blockbuster renegado à nascença volve-se anti-blockbuster e de um arrastamento dolente, cheio de patético, carniçada e porcalhada, ou seja, perfeitamente realista. Que tanto se possa falar nas soluções duras e económicas do cinema da série-b americano (duro como Siegel, vetorizado como Carpenter, ambiguamente torcido como o Cop de James B. Harris, feitura correta da série Lethal Weapon), como da amplitude, respiração e espectro sentimental de David W. Griffith, só prova da responsabilidade e da grandeza em causa. Estreou discretamente em Portugal no final de 2019 mas continuará a ser falado nos próximos anos entre quem esteve atento ou o irá descobrir.