Heroes for Sale é um filme puramente americano, ou seja, universal. Realizado por um duro, vivido e sabido realizador, William A. Wellman, (jovem rebelde, aviador na primeira Guerra Mundial, camionista, pioneiro cinematográfico), comprime o tempo, o espaço e as ideologias para libertar a persistência e os arrasos das paixões. Uma narrativa de trocas: o herói trocado pelo cobarde na guerra inicial, a fama trocada pela humilhação no regresso dos heróis, os comunismos trocados pelos capitalismos, e, no final, para resumir: a mais pura caridade servida pela clandestinidade, numa aproximação sanguínea a The Grapes of Wrath (John Steinbeck ou John Ford). As histórias de amores são particularmente totais, unas e complementares: o filho que quer ser como o pai que foi herói incógnito e continua a sê-lo na sombra; a mulher jovem e a mais velha que são uma apenas e produzem as mesmas ondas sensíveis no herói, uma continuará a outra e a outra antecederá tudo; o bondoso servente da cafetaria que une todas estas personagens (pessoas, antes de tudo) para lá da trama da ficção e do tempo e do documentário, chegando à resistência do ontem e do agora pelos valores mais básicos e universais. Mas o mais violento, pois trata-se da revelação (epifania) e ternura (perdição) do movimento cinético das luzes e sombras e fantasmagoria concreta, é essa câmara de filmar ao nível do desenrolar destas vidas e da História, ao nível do olhar subjectivo destas pessoas comuns e dos passeios de todos os dias e com uma amplitude e respiração agregadora do cosmos e do tempo/espaço circular; a liberdade e o tremor da primeira câmara que alguma vez passou pelo mundo, antes das leis, vigilante e selvagem. A velha escala dos planos e da planificação Hollywoodiana, sim, mas igualmente um fluxo que já é puramente sequencial no seu varrimento aterrador que não classifica ordem de grandezas (plano sequência puro, sem consciência nem linguística castradora, assim existencial). A totalidade do universo – das guerras ao desabrochar do sorriso da criança e as ideologias corrompidas – e o corriqueiro fragmento - um namorisco à dona do estabelecimento - que é a tábua de salvação diária. William A. Wellman, liberto ainda ou mordido nos calcanhares pelo código Hayes e queimado pela vida, agarra no pó das passadas diárias o pó da via láctea. Heroes for Sale é o presente puríssimo.
Sydney Pollack disse acerca de Bobby Deerfield que era o seu filme mais europeu. Ambientado de início no mundo das corridas de carros, com um Al Pacino que tem pinta de muita coisa mas não de corredor de Fórmula 1 (condição contrária ao actors studio de Pacino), e com uma história de amor que se vai inventar sob o signo do patético para evoluir para o trágico e acabar na perfeição, é uma das obras mais inclassificáveis dos anos setenta americanos, pois tudo vai planar na rede existencialista da morte muito para lá ou cá de espartilhos narrativos europeus ou americanos. Talvez por ter como ténue base um romance de Erich Maria Remarque – o F. Scott Fitzgerald europeu – de nome Heaven Has No Favorites, que poderia ser a sinopse poética do filme, e por o tempo – Remarque e Fitzgerald aglutinados – ser a matéria de fulcro, a figura de estilo primordial surja indefinida no combate entre a paisagem deslizante – travellings de filigrana – e o grande-plano, que tanto nos leva para os terrenos funestos de Philippe Garrel como para a metafísica de Ingmar Bergman. Mas tal como a protagonista feminina (Marthe Keller como a morte só permite que com ela se flerte assim uma única vez, apenas uma; ainda bem que Pollock teve a coragem de não aceitar o “assédio” de Catherine Deneuve, que poderia puxar o sexo para primeiro plano) que tem a vida contada por meses, dias ou horas, também o vício de «só correr» e da perfeição mecânica da personagem de Pacino, criam um elã estelar de pronúncio e de suspiro de morte, nesses cortes abruptos e assustadores dos dois caixões que vemos sem palavras, até à aceitação e aragem final em paralítico da fotografia que distende e consuma esse encontra para as sendas da eternidade. A montagem e enlevo funesto trabalham a dilatação normalmente associada à sensibilidade europeia ao mesmo tempo que se emparelha com o laconismo americano – Pacino corre apenas, sem pensar porquê, porque sim; e Pollack, um dos mais complexos parceiros de dança da Morte em partes soterradas de uma filmografia também ela complexa e mais inteligente do que a superfície, olha para a presença da corrupção e da podridão do corpo com a mesma frontalidade do Thomas Mann de The Magic Mountain, aguentando a sua e a sensibilidade do protagonista em ponto de colisão com as calmas e as premonições sempre fugidias da hora derradeira - Bobby Deerfield retira, como a morte, o tapete a convenções e a mecanismos certos, tal como o corredor continuará a lutar contra a mecânica do acidente. Sob a condição da morte – ele, ela, eles, - é o mais triste e o mais bonito dos contos convocados pela hora imprevista e indestrinçável das paixões e das finitudes, e a mais bela metáfora de todo esse inominável é o carro parado transportado pelo comboio: a velocidade em reflexão. A fotografia final, a velocidade congelada, os balões de ar quente dos sonhos de criança - Bobby Deerfield é uma balada ao poderio do efémero, absolutamente triste e absolutamente alegre; furado e pacificado por motores a roncar, óleo e borracha e platonismos planantes, é um dos pináculos do sublime singelo de Pollack e de alguns seus pares talvez humildes demais para pensarem nisso (Mulligan… Pakula… ?).
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