«Dentre todas as qualidades, todas as invenções, todas as carências (essas que os filmes inteligentes convertem em fartura de possibilidades, soluções originais, estímulos pródigos, provindos da contingência e da chance única) que eu imaginava que um primeiro longa da Marta e do Zé (foi realizado antes do Conselhos da noite, mas lançado depois) poderia ter, uma que eu certamente não esperava encontrar era o retorno do humanismo epistolar e insubmisso (insubmisso a "velhas mistificações e novas demagogias", a revoluções passageiras e valores defasados), o humanismo sui generis do cinema italiano dos anos 1970. Eu não esperava me deparar, em um filme português realizado nos últimos anos da década passada, com aquele tom recapitulativo, aquela emanação de outonos passados que marca os grandes filmes que Risi, Monicelli, Bolognini e Scola realizaram na última grande década do cinema popular italiano (e, antes de tudo, é de cinema popular, como praticamente já não se faz mais, que devemos falar a propósito de Guerra).
Se nos primeiros minutos ainda é possível cogitar um cruzamento entre Jerry Schatzberg e Manuel Mozos, ao menos nessa tendência de permitir que a espontaneidade do ator se expresse pelos seus gestos mais corriqueiros, aqueles que compartilham com quem está do outro lado da tela, é absolutamente impossível a partir do momento em que o filme desloca a maior parte da sua ação para cenas externas não pensar - seja pela natureza da personagem interpretada pelo Zé Lopes, seja pela riqueza e a abertura da estrutura do filme em relação às deambulações dessa personagem, pelas quais não apenas a personagem como a narrativa vão lentamente se acertando e se definindo - em Profumo di donna, Anima persa, La stanza del vescovo e Fantasma d'amore. Da parte dos atores, a mesma vontade de contemplar o mundo enquanto se é parte dele, enquanto se vive o que ele tem a oferecer; da parte da direção, a mesma vontade de permanecer com o foco naquilo que está o tempo todo em movimento (interior ou exterior), e que dessa forma determina o próprio movimento da direção, a qual reproduz aquilo que permanece, que fica desse movimento (se for para chamar de alguma coisa, que se chame isso, e não outra coisa qualquer, de realismo).
Uma coisa que o filme faz, porém (e que os filmes italianos que mencionei não faziam, ou não fizeram, porque não precisavam fazer), uma coisa que coloca Guerra na mesma constelação de alguns filmes realizados por João César Monteiro e Pedro Costa: Marta Ramos e José Oliveira reúnem algumas pessoas, alguns rostos, alguns olhares (todos inesquecíveis - penso na Dulce Pascoal, desde já a Jane Darwell da trupe dos Zés Oliveira e Lopes, no semblante do Pelejão de soslaio, cumprimentando o Zé Lopes na entrada do bar noturno, ou na risada muda do Daniel Pereira após Zé Lopes imitar o som de um apito militar), e reúnem também lugares, ações e visões que essas pessoas terão de atravessar, desempenhar ou testemunhar, mas não se trata em momento algum de quaisquer pessoas, rostos, olhares, lugares, ações etc. É isso o que faz com que José e Marta se integrem à linha de frente do cinema contemporâneo, a única realmente digna de consideração enquanto tal: eles sabem, como JCM soube desde muito cedo, como Costa soube desde que foi a Fontainhas, que o cinema já não se encontra por toda parte, nem muito menos em qualquer lugar, que as "boas novas" que correm por aí - "o cinema também está nos reality shows, no TikTok, nas séries, no mais recente filme do tarefeiro despersonalizado da Netflix, no virtual, na transmissão das olimpíadas, no vídeo com mais views no Youtube da semana passada, nos games, e é falta de generosidade achar o contrário" - não passam de mentiras, de falsos produtos, de falsas promessas, de falsa moeda, e que por isso o trabalho de seleção das pessoas, dos lugares, das ações em torno das quais uma narrativa se formará, uma câmera se deslocará, nossa atenção se destinará deve ser, como nos tempos do mudo, como nos primórdios do cinema, como mais tarde com Dwoskin, Warhol, Fassbinder, Oliveira, o mais parcimonioso e escrupuloso possível. Pois o cinema, como as pessoas retratadas neste filme, cada vez mais se esconde, ou acaba escondido pela velocidade estúpida que querem impingir à sua existência (as estreias sob holofotes, a consagração nos palcos das premiações, a garantia de uma boa circulação comercial, nacional e internacional, até o início da próxima temporada em que todo esse circo recomeçará do zero), e se assim se esconde é preciso cada vez mais dispensar esforços à parte do trabalho que consiste em convencê-lo a sair do seu escondedouro para novamente estar entre os seus, transitando livremente entre as ruas, respirando o ar da noite até reencontrar velhos conhecidos no Indanoite é uma criança (magníficos planos na steadicam, admiráveis momentos de cinema que eu já não pensava mais ser possíveis em meio a todas as burocracias das film comissions e todos os cronogramas penosos dos filmes produzidos via editais). Essas pessoas, a intimidade que liga cada uma, a cumplicidade que as liga todas, a força que Zé Lopes lhes concede em cada cena e que elas lhe retribuem a todo momento: é disso, e só disso, que trata Guerra, e é essa, a cada novo vínculo engendrado, a única guerra em curso, aquela que repercute o choque de cada momento de ainda estar vivo. Aquilo que, em outros tempos, caracterizaria um filme especial, hoje é o que caracteriza um filme excepcional. Guerra é, sem sombra de dúvida, um dos poucos filmes excepcionais desses últimos anos.
Uns parágrafos acima eu falei de "cinema popular", agora a pouco de filme excepcional. Paradoxo: aquilo que representa à perfeição "o cinema do meio" que James Gray lamenta não existir mais, um filme que eu poderia mostrar aos meus sobrinhos e aos meus pais, só pode existir hoje às margens. Um filme simplíssimo, que parte do que há de mais inerente na realidade para lentamente ambicionar uma vontade de cinema que, por uma vez, se justifica e se consolida tão-somente pela força da visão que a sustenta (o plano que acompanha Zé Lopes deambulando pela noite lisboense, a meio caminho entre De Palma e o Bolognini de La giornata balorda), é justamente o filme que mais dificuldades encontrará para ser devidamente lançado e devidamente conhecido dentro do sistema atual. Esse "cinema do meio", aquele que supostamente deveria ligar João César Monteiro a Dino Risi, Pedro Costa a James Gray, existe e vive, a despeito de todas as disposições e de todas as forças que trabalham vigorosamente contra ele. Existe, e felizmente é um filme como Guerra que segura a sua tocha hoje.»
Bruno Andrade
(na imagem: José Lopes e Artur Lopes)
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