segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Giovanni Comodo sobre PAZ

 


Entre ruínas, contar, cantar

Paz, de José Oliveira e Marta Ramos


Poderiam dizer que Paz é um filme sobre escombros feito de escombros. Escombros que resultaram de uma guerra desastrosa e silenciada, a Guerra Colonial Portuguesa. E escombros enquanto material fílmico reutilizado proveniente dos arquivos da mídia portuguesa desta guerra e das filmagens das obras anteriores dos diretores José Oliveira e Marta Ramos — Guerra (2020) especialmente. Entretanto, em seus 25 minutos Paz revela-se como totalmente novo, como as flores que brotam das ruínas e devolvem-nas à vida, transformadas.

Em Guerra — exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do ano passado —, Oliveira e Ramos desafiaram o tabu português que relegou ao silêncio a Guerra Colonial Portuguesa e seus veteranos — na sua maioria, homens simples do interior do país convocados pelo regime ditatorial do Estado Novo em suas últimas tentativas de manutenção de força e poder político no país e no continente africano. O filme acompanhava Manuel, um veterano da guerra, em uma Lisboa dos tempos atuais. Sem encontrar um lugar para si e tomado por um passado cujos fantasmas esbarrava em cada passeio, ele buscava a paz e a encontrava apenas com seu descanso final. Manuel foi vivido por José Lopes, em uma performance de entrega absoluta e em uma parceria estreita com os realizadores — foi de Zé Lopes a iniciativa e o desejo de fazer o filme, que não viu estrear, devido ao seu falecimento no final de 2019.

Guerra não era apenas extraordinário por conta de sua coragem com os temas abordados, mas também pelas suas escolhas formais enquanto misturava passado e presente, monólogos e diálogos partidos, sem nunca abdicar da emoção — palavra tão evitada no cinema atual.

Enquanto o filme anterior era centrado na figura de Zé Lopes e na Via Crúcis de Manuel, Paz consegue revisitar e dar novo sentido às inquietações da dupla de realizadores: trata-se de um filme em que cada pessoa que surge na tela é também protagonista. Revemos os veteranos da guerra do filme anterior (todos não-atores e veteranos de fato), com mais tempo para passarmos em sua companhia — e é isto o que interessa a Oliveira e Ramos, que possamos ver e ouvir estas pessoas. E lá estão eles, para dar seu testemunho da abertura de trilhas (o motivo de as “picadas” terem esse nome), do que carregavam nos bolsos consigo, das discussões com os superiores, da leitura de cartas destinadas a seus familiares, das canções que gostavam. Nenhum momento é banal: em todos, tomamos contato com seus rostos, sotaques, histórias. Contra o esquecimento, o apagamento, a morte.

Que Oliveira e Ramos não tenham se contentado com o filme anterior e tenham decidido dedicar um novo trabalho a estas pessoas é mais uma prova de seu compromisso com elas. O cinema pode vencer a morte, de certa forma. Alguns dos homens que vemos ali já nos deixaram: além de Zé Lopes, Nelson Gonçalves (que canta as duas canções ao final do filme e a quem o trabalho é dedicado). Quantos mais ainda podemos ouvir? Paz é também um convite, para não desperdiçarmos mais nenhum instante.

“Ouçam o que tem para dizer o homem que está em silêncio” diz a abertura do filme, pouco antes de sermos tomados por imagens de arquivo da guerra e da imagem de um túmulo e uma sombra. Paz faz o processo de dar voz a estas sombras — inclusive ao material de arquivo, tomado por um novo processo de som pelo filme, agora repovoado por máquinas, choros, chamas e sinos, em um esforço estupendo e minucioso — para que elas possam caminhar conosco. A coletividade está no centro deste novo filme: é trazer estas pessoas e suas histórias para perto e também de reinserir a Guerra Colonial Portuguesa na História, inclusive com os créditos finais, que mostram os mísseis cortando os céus da Palestina. A guerra continua entre nós presente — mas também a paz pode estar.

Marta Ramos certa vez disse que cinema é amor e pudor, destacando o último. Ambos funcionam como vetores intimamente ligados que moldam seus filmes todos: há sempre um enorme respeito pela integridade das pessoas que filmam — todos não-atores, seus amigos. É um cinema realizado com poucos recursos e enorme garra e inventividade, fruto da união destas pessoas e de grande resistência.

A carta lida em voz alta em Guerra retorna aqui, ainda mais forte: “procura a felicidade que ela deve existir”. A nós, cabe procurar sem cessar. Ela está entre nós e floresce no cinema de Oliveira e Ramos, entre os escombros.

Artigo originalmente publicado aqui: https://estadodaarte.estadao.com.br/paz-ruinas-oliveira-ramos-comodo/?fbclid=IwAR15CdXPX2dYSE9xe9s51w2o-MFXZGhbt0Yw-PhPmdo-3OTZCzr6cBjThTc

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Bruno Andrade sobre PAZ

 


O SENTIDO DA AMIZADE

 

Paz, como seu antecessor, Guerra, e como o antecessor deste, Longe, é um filme simples, cujo título nos aponta o caminho, isto quer dizer o sentido que o filme adquire assim que tudo se fez e se foi.

O que se fez: por onde se andou, por onde se parou; o quanto se continuou, o quanto se renunciou para se continuar. Quando Paz começa, temos a sensação de que as personagens – José Lopes e Rui Carvalho – já andaram muito, já estiveram em muitos lugares, mas ainda não pertencem ao presente do filme, à trama de imagens e sons que o filme de fato nos apresentará. Na fronteira da alvorada a sombra de um homem se projeta sobre uma lapide; em seguida dois homens brindam e bebem sozinhos, num espaço que parece ocupar o limiar entre o nosso mundo e o seu além.

O que se foi: as lembranças, os lugares, as viagens; o que se compartilhou, o que nos aproximou, o que nos separou; os caminhos deixados para trás, os caminhos que foram feitos até o fim, os descaminhos. Uma tarde na esplanada dos Amigos do Minho, as mesas e as cadeiras já postas, as garrafas de vinho abertas, um amigo arranhando as cordas do violão e os outros o acompanhando com as canções – essas coisas de que não se fala, essas coisas as quais apenas se vive e às quais nos apegamos, e que talvez mais tarde nos lembramos com a vontade de revivê-las ou a certeza de que foram bem vividas.

É curioso: a atmosfera dessas cenas, a circulação das falas, das canções, a sombra convidativa das videiras e o sol que resplandece na esplanada dos Amigos do Minho, a camaradagem, os sentimentos, o tempo que leva para todas essas coisas se consolidarem e se propagarem como o próprio ar que circula ali no alto da Freguesia de Anjos, a presença real disso tudo encarna a proposta do filme e nos faz esquecer (em outras palavras, nos faz aceitar) que a paz, como a guerra, é aquilo que se estabelece quando se sabe que o que está longe assim permanecerá e o que está próximo se avizinha cada vez mais.

O que se avizinha, o que permanece próximo, o que se carrega no peito: a amizade, à qual os antigos combatentes, novamente reunidos, dedicam algumas loas. A amizade que, diferente do afeto, se consubstancia quanto mais o laço que une uma pessoa à outra é recrudescido, justamente, pela passagem do tempo. Uma coisa que sobrevive aos homens que tiveram a fortuna de experimentá-la e aos tempos, isto quer dizer todos os tempos, os de guerra e os de paz, os que se avizinham e os que se apagam. Uma coisa que retorna e que pode ser retomada a qualquer momento, em qualquer lugar, sob qualquer disposição (penso na segunda parte do filme, quando Zé Lopes “regressa” aos Amigos do Minho), e que na sua plenitude assume a forma não de um “eterno retorno”, mas de um retorno eterno aos lugares e sítios em que a vida se irradiou no seu grau máximo de brutalidade, ou de serenidade.  

Paz, epílogo de uma trilogia constituída em torno de uma personagem e um ator sublime, é o fruto da obstinada paciência de dois realizadores, José Oliveira e Marta Ramos. Suas lentes capturam os instantes despretensiosos da vida como grandes luxos coletivos, e é dessa forma que seus filmes reencontram o Homem, através da saudosa figura de José Lopes, na sua eterna busca por repouso e acolhimento. Nada mais coerente, portanto, que o capítulo final dessa jornada seja uma compilação minuciosa de todos os sentidos anexos da palavra “paz”: refletindo sobre o significado e a importância existencial do armistício, ou mais simplesmente do espairecimento daqueles que tiveram que lutar pelas próprias vidas em algum ponto de suas existências, o filme se torna a narrativa de uma existência que se volta, nos seus últimos instantes, à harmonia, à união, e conseqüentemente ao sentido mais profundo do contato com o outro, que nada mais é que o sentido mais verdadeiro da amizade.

Bruno Andrade