O SENTIDO
DA AMIZADE
Paz, como seu antecessor, Guerra, e como o antecessor deste, Longe, é um filme simples, cujo título
nos aponta o caminho, isto quer dizer o sentido que o filme adquire assim que
tudo se fez e se foi.
O que se fez: por
onde se andou, por onde se parou; o quanto se continuou, o quanto se renunciou
para se continuar. Quando Paz começa,
temos a sensação de que as personagens – José Lopes e Rui Carvalho – já andaram
muito, já estiveram em muitos lugares, mas ainda não pertencem ao presente do filme, à trama de imagens e
sons que o filme de fato nos apresentará.
Na fronteira da alvorada a sombra de um homem se projeta sobre uma lapide; em
seguida dois homens brindam e bebem sozinhos, num espaço que parece ocupar o
limiar entre o nosso mundo e o seu além.
O que se foi: as
lembranças, os lugares, as viagens; o que se compartilhou, o que nos aproximou,
o que nos separou; os caminhos deixados para trás, os caminhos que foram feitos
até o fim, os descaminhos. Uma tarde na esplanada dos Amigos do Minho, as mesas
e as cadeiras já postas, as garrafas de vinho abertas, um amigo arranhando as
cordas do violão e os outros o acompanhando com as canções – essas coisas de
que não se fala, essas coisas as quais apenas se vive e às quais nos apegamos, e
que talvez mais tarde nos lembramos com a vontade de revivê-las ou a certeza de
que foram bem vividas.
É curioso: a atmosfera dessas cenas, a circulação das falas, das
canções, a sombra convidativa das videiras e o sol que resplandece na esplanada
dos Amigos do Minho, a camaradagem, os sentimentos, o tempo que leva para todas
essas coisas se consolidarem e se propagarem como o próprio ar que circula ali
no alto da Freguesia de Anjos, a presença real
disso tudo encarna a proposta do filme e nos faz esquecer (em outras palavras,
nos faz aceitar) que a paz, como a guerra, é aquilo que se estabelece quando se
sabe que o que está longe assim permanecerá e o que está próximo se avizinha
cada vez mais.
O que se
avizinha, o que permanece próximo, o que se carrega no peito: a amizade, à qual
os antigos combatentes, novamente reunidos, dedicam algumas loas. A amizade
que, diferente do afeto, se consubstancia quanto mais o laço que une uma pessoa
à outra é recrudescido, justamente, pela passagem do tempo. Uma coisa que
sobrevive aos homens que tiveram a fortuna de experimentá-la e aos tempos, isto
quer dizer todos os tempos, os de guerra e os de paz, os que se avizinham e os
que se apagam. Uma coisa que retorna e que pode ser retomada a qualquer
momento, em qualquer lugar, sob qualquer disposição (penso na segunda parte do
filme, quando Zé Lopes “regressa” aos Amigos do Minho), e que na sua plenitude
assume a forma não de um “eterno retorno”, mas de um retorno eterno aos lugares
e sítios em que a vida se irradiou no seu grau máximo de brutalidade, ou de
serenidade.
Paz, epílogo de uma
trilogia constituída em torno de uma personagem e um ator sublime, é o fruto da
obstinada paciência de dois realizadores, José Oliveira e Marta Ramos. Suas
lentes capturam os instantes despretensiosos da vida como grandes luxos
coletivos, e é dessa forma que seus filmes reencontram o Homem, através da
saudosa figura de José Lopes, na sua eterna busca por repouso e acolhimento.
Nada mais coerente, portanto, que o capítulo final dessa jornada seja uma
compilação minuciosa de todos os sentidos anexos da palavra “paz”: refletindo sobre
o significado e a importância existencial do armistício, ou mais simplesmente
do espairecimento daqueles que tiveram que lutar
pelas próprias vidas em algum ponto de
suas existências, o filme se torna a narrativa de uma existência que se volta,
nos seus últimos instantes, à harmonia, à união, e conseqüentemente ao sentido
mais profundo do contato com o outro, que nada mais é que o sentido mais
verdadeiro da amizade.
Bruno Andrade
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