"Sério Fernandes - O Mestre da Escola do Porto" é o título da obra da autoria de Rui Garrido que explora a original e controversa obra do realizador Sério Fernandes. Pretexto para uma conversa com o cineasta José Oliveira. Cinema, puro e duro.
Lembras-te do dia em que conheceste o Sério Fernandes? Quais as impressões iniciais?
Eu ouvi rumores, ideias e opiniões sobre o Sério muito tempo antes de começar a ter aulas com ele e, por isso, eu e muitos da nossa turma já íamos com ideias predefinidas de quem ele era. Pessoalmente, fiquei muito receoso de essas aulas serem uma grande perda de tempo e as primeiras impressões não me tranquilizaram de forma alguma. Eu tinha uma ideia muito fixa do que deveria ser uma aula de realização e o que o Sério queria ensinar não era de todo o que eu estava à espera. Para ter uma ideia de como é uma primeira aula do Sério, partilho um excerto do Programa:
«Aos alunos de Realização da Escola Superior Artística do Porto, é preciso fazer sentir que toda a descida em si mesmos é simultaneamente uma ascensão, uma assumpção, uma visão do verdadeiro exterior. O grande objectivo é pôr o aluno de Realização na posse consciente dos seus poderes mágicos ditos artísticos. «Consequentemente a disciplina de Realização, aqui sinónimo de Criação, é Arte Cinematográfica, a Grande Arte do Silêncio, como o Desenho, a Pintura e a Fotografia.
«Na cultura ocidental, a síntese da Criação Artística remete-nos para a Grécia Clássica, Pré-Socrática, onde o Coro é a essência da Tragédia. Assim na disciplina de Realização o objectivo primordial e artístico é a reconstituição do Coro Trágico do Drama Clássico Grego, que no início era só o Coro e nada mais que o Coro.»
Eu também fui aluno do Sério e, na minha turma, muitos eram fascinados pelas suas ideias e outros o contrário. Como se deu a tua turma?
Aconteceu exactamente o mesmo, mas aconteceu de uma forma tão extrema que acabou por ser um ponto de ruptura para a escola, o Sério e os alunos. Esta grande clivagem é fruto de imensos factores, mas para mim o principal foram as mudanças culturais e sociais que alteraram a forma como as pessoas entendem o que é o cinema, o que é uma faculdade e como é que se ensina cinema. As respostas de muitos alunos a estas perguntas eram extremamente diferentes das do Sério e, por isso, havia uma grande dificuldade em chegar a um compromisso, apesar das várias tentativas do Sério. Estes momentos de choque foram momentos catalisadores para mim. Foi aí que nasceu a necessidade de compreender melhor o Sério e de documentar esse processo.
O que tens a dizer sobre a noção de “Quadro Artístico Cinematográfico” assim como o Sério o entende? Foi útil para ti?
Foi extremamente útil. Gosto muito da ideia de síntese que o Sério tem do Quadro Artístico Cinematográfico, onde tenta colocar tudo que pretende mostrar num único plano de um minuto. Criativamente, é uma ideia desbloqueadora que me permitiu, pessoalmente, começar a executar ideias que ainda não estavam bem formadas, em vez de as planificar até à morte. Aliás, o próprio documentário nasce de uma forma muito espontânea e sem muita planificação. Penso que isso só aconteceu porque tinha acabado de passar por todo o processo de criação de um filme da Escola do Porto.
O Sério aceitou imediatamente a ideia de ser filmado por ti ou foi um processo mais demorado?
Andei durante alguns meses a pensar se deveria ou não avançar com a ideia e decidi avançar depois de uma sessão especial do MIFEC, o festival da escola, onde passaram o filme “Chico Fininho”, do Sério. Foi uma sessão para homenagear o Sério e o seu trabalho, mas o mais impressionante foi o facto de a sala estar completamente cheia de ex-alunos e docentes. Nunca tinha visto uma sessão do MIFEC com tanta gente e isso fez-me ver que, apesar de ser uma figura controversa enquanto professor no meu ano, o Sério tinha uma grande capacidade para mobilizar as pessoas, quem o conhecia verdadeiramente gostava muito dele. Depois dessa sessão perguntei-lhe, num átrio ainda cheio de pessoas, se podia fazer um documentário sobre ele. Ele aceitou imediatamente, sem pensar duas vezes. Acho que na altura ele pensou que só se tratava de uma entrevista e pouco mais. Eu próprio não sabia bem o que é que ia fazer, por isso até o posso ter induzido em erro. Lembro-me perfeitamente, passadas umas semanas, depois de filmar, de ele me perguntar quanto tempo teria o filme. Eu respondi que não sabia, que podiam ser dez minutos, vinte ou mesmo uma hora. Ele respondeu-me, decididamente, que dez minutos era muito pouco e que uma hora seria melhor.
Tiveste um apoio do ICA para a pós-produção, o que permitiu também uma maior circulação do filme, muito por causa da produtora The Stone and The Plot. Terias lutado à mesma para o acabar bem e o mostrares, se não tivesses tido esse apoio?
De uma maneira ou de outra, eu tinha que acabar o filme. Por respeito ao Sério, ao Jorge (que filmou sem pedir nada em troca), a todos os outros que me ajudaram, por todo o trabalho que tivemos e por saber que, se não o fizesse, todos aqueles filmes que o Sério tinha guardado em cassetes e dvds iriam eventualmente desaparecer. Dito isto, se não fosse o Daniel, o futuro do filme seria completamente diferente. Nunca teria tido a possibilidade de digitalizar partes do “Chico Fininho”, nunca teria feito uma pós-produção em condições e, garantidamente, o filme nunca teria tido a distribuição que merecia. Teria, inevitavelmente, o mesmo destino que muitos dos arquivos que documentou, acabando num disco rígido até o tempo o destruir. Felizmente isso não aconteceu e hoje podemos dizer que, graças ao trabalho da The Stone and The Plot e do Daniel, uma parte de Sério Fernandes, das suas obras e das obras dos seus alunos, está devidamente salvaguardada do esquecimento de uma forma muito mais duradoura.
Consideras-te parte daquilo a que o Sério chamava (e chama, espero) a «Escola do Porto»?
Apesar de não aparecerem no filme, cheguei a fazer algumas entrevistas a ex-alunos e amigos do Sério e fiz-lhes várias perguntas sobre a Escola do Porto. O que percebi com estas entrevistas é que a Escola do Porto tem uma definição bastante livre, que é interpretada de diferentes formas pelos diferentes alunos. Para mim, a Escola do Porto é principalmente um espaço seguro de criação artística. Serve para os alunos se libertarem de quaisquer pretensões, anseios ou egos e se entregarem totalmente a alguma forma de criação, seja esta cinema, pintura, escultura, teatro ou fotografia. No cinema, o conceito de quadro serve depois para unir estas artes e artistas, o coro, à volta de uma única obra com autoria partilhada. Para mim, a Escola do Porto é um modelo de criação opositor ao modelo culturalmente estabelecido, onde os artistas de certa forma são obrigados a individualizar-se e a competir entre eles. Eu subscrevo totalmente esta oposição e essa forma de ver o mundo, por isso também me considero parte da Escola do Porto.
Por José Oliveira
Artigo originalmente publicado aqui: https://novo.jornaldofundao.pt/cinema/encontros-cinematograficos-do-fundao-encontro-com-rui-garrido?fbclid=IwAR118OhHzFKTCCTIPkZn3GBv9-Kd1TQ5UABfVSd-V89hmV8i9rM47xgDgaY
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