O que significa ainda
hoje no cinema americano esse tão propalado classicismo que depois de D. W.
Griffith lhe ter estabelecido as regras nas primeiras décadas da existência de
Hollywood se tornou chavão do cinema de Henry King ou William Wyler, George
Cukor ou Leo McCarey? Ainda agora na estreia de Cry Macho se voltou a
falar de Clint Eastwood como o último dos clássicos e o seu instinto, rapidez
de execução, invisibilidade de estilo e emoção foram amplamente vistos como os
últimos pregos no caixão desse modo de fazer antigo e, segundo muitos, prático.
E o que significaram os temperamentais Nicholas Ray ou Elia Kazan, Samuel
Fuller ou Sam Peckinpah, homens que dentro do sistema não aguentaram as suas
bordas e regras e o implodiram e estilhaçaram interna e externamente, muitos
deles ganhando fama de fora-da-lei? E pondo de parte Eastwood, que cresceu na
grande depressão e atravessou todas essas convulsões da indústria, que sentido
faz ainda hoje rotularmos de clássico um cineasta que de quando em quando
utiliza com intensidade as vantagens do Campo/contracampo, a velha escala de
planos que vai permitir uma aproximação e revelação lenta ao grande plano e aos
olhos como espelho da alma na envolvência do homem com o meio e a natureza, e
logo, a tal câmara de filmar à altura do homem e dos sentimentos?
James Gray, para nos
ficarmos pelo mais celebrado classicista da nossa era, está deste modo em
sintonia com Alan Dwan, um pioneiro de Hollywood que foi evoluindo (ou
evoluindo sem evolução, como diria Manoel de Oliveira acerca deste assunto) até
fazer o seu filme final – o esplendoroso, rudimentar e assustadoramente moderno
Most Dangerous Man Alive, de 1961 – já na década de todos os perigos da
nação e do cinema americano? Estas questões não são de pouca monta e poderão
ser iluminadas no monumental ciclo que a Cinemateca Portuguesa inaugura agora
sobre este colosso. Colosso no sentido absoluto, um pioneiro que conservou uma
fidelidade aos desígnios vários da máquina industrial cinematográfica também
ela absoluta, uma personalidade que conservando sempre o seu lado de artífice
luminoso (o lado de alvenaria, se quisermos ir para a metáfora do filme
enquanto casa) uniu o pioneirismo ao primitivismo (artístico mas também
antropológico) para manter um modo de fazer límpido e incorruptível às épocas,
às guerras e pós-guerras, às modas e tendências, à pressão do box-office tal
como ao nicho do rótulo independente ou rebelde. Podemos dizer que Alan Dwan
utilizou sempre os seus instrumentos de cineasta, que não foram parcos mas
foram sempre utilizados com completa economia e precisão, para ver com
frontalidade e limpidez os eventos tratados pelo guião que aceitou fazer.
Em The good bad Man,
ou em The Half-Breed, ambos de 1916, relativamente iniciais tendo em
conta que as primeiras entradas na sua filmografia sempre em reconstrução datam
de 1911, o ponto de vista da câmara de Dwan e as chamadas fotos de rodagem captadas
para fins de publicidade ou de mais amplo arquivo, confundem-se, ou melhor,
comportam o mesmo peso de dramaturgia, de frontalidade e de modelação (da luz,
do corpo, dos brilhos das texturas e dos olhares), sendo que da imobilidade
fotográfica se passará para a imagem movente do cinema num acto de realismo que
dispensa uma transcendência outra sempre associada à “magia do cinema”. Um acto
de realismo que é uma fé na impossibilidade de separar os fundamentos da
realidade mais percetível dos fundamentos e utilidade do cinema. A perceção é a
mãe da deceção, diria Roman Polanski nos anos sessenta, portanto Dwan, neste
sentido um clássico sem dúvidas do olhar, busca sempre a objetividade. Alguns
comentadores aproximaram este tipo de realidade da “existência platônica” e
logo do campo ampliado do Platonismo, mas para ficarmos numa compreensão mais
sucinta vale a pena recorrer a uma citação de Jacques Lourcelles a propósito do
realismo em Dwan e, mais do que isso, da impossibilidade do cinema desligado da
relação umbilical com o real. Citando Oscar Wilde, em The Rise of Historical
Criticism, a aproximação a Dwan é a seguinte: «Deveríamos poder dizer de
uma pintura não que ela é bem pintada, mas que não é pintada.»
Sands of Iwo Jima fechou
os anos quarenta, e não querendo parafrasear a asserção de Francis Ford Coppola
em relação a Apocalipse Now, mas todo o oposto, não temos um filme de
guerra, não temos o espetáculo da guerra, temos sim a complexa guerra como é
possível reconstituí-la. Coppola referia-se muito mais a toda a envolvência
demencial da produção e da loucura a ela associada que passou do fora-de-campo
para a tela, enquanto em Dwan temos todos os elementos que podem compor a
ficção – da verosimilhança dos atores à funcionalidade e reconhecimento dos
cenários e dos elementos – trabalhados e capturados pelo senso mais direto e
intenso do lado documental que a grande Hollywood nunca dispensou. Documentário
e ficção, eis uma das dicotomias que normalmente são de conflito para muitos
cineastas mas que para Dwan se volve constantemente, silenciosamente, harmonia
e resolução, questão indispensável e indestrinçável. Nesse filme John Wayne
fuma descansadamente no turbilhão do caos final de Sands of Iwo Jima, em
pleno inferno onde se ousa colocar uma bandeira no topo do mundo que ali é o
Monte Suribachi, quando é atingido fatalmente da maneira como só aos grandes ou
belos falhados é permitido – nada a ver com a ordem normal ou os orgulhos da
vidinha. Cá se fazem cá se pagam, cada um vai ter direito aos brilhos ou às
tempestades que provocou. E, como seria óbvio fazer, não vamos ter
tinta-da-china estilística ou arrebatamentos líricos com a bandeira patriótica
em mais do que grande-plano, como até um Fuller ou um Aldrich fariam por breves
segundos em conquistas análogas, mas tudo ficará no dentro, na impassibilidade
significativa e terrífica, na catarse dos protagonistas a todo o passado. Um
documento mecânico da História.
Revelador da referida
fidelidade a um tipo de construção que permite apreciar as fundações sólidas de
cada empreitada – à maneira do arquiteto mais incorruptível – é a maneira como
nos anos cinquenta Dwan se vai lançar aos géneros cinematográficos. Basta a
cena inicial do Slightly Scarlet de 1956 para todo o melodrama ficar
descascado do lado barroco e excessivo a ele associado. A sombra magnética de
John Payne parece cansada e aborrecida da rotina do poder, a carnalidade de Rhonda
Fleming esconde todas as vilanias e perdições numa aparência e segredo cravados,
a inocência de Arlene Dahl é ambígua antes de abrir a boca, a banda sonora –
normalmente um elemento não controlado pelo realizador neste período - não tem
nem vai ter todo o poder de orientação emocional, tudo sob a luz materialista e
marcada do grandíssimo John Alton (comparar com as super-estilizações em The
Big Combo). Muitos dirão à evidência que as cores são fabulosas e que é
mais noir ou neo-noir do que melodrama, mas como não o seriam num
universo de tal erótica escarlate? Nessa propensão para a volúpia e para o
voyeurismo com que o filme abre, o mais surpreendente é a forma como Dwan
estanca o virtuosismo, num ritmo inexorável rumo à tragédia onde as desgraças
mais vis da natureza humana – incestos, traições de sangue, marcas eternas – se
sucedem orquestradas numa montagem que conserva todos os percalços e toda a
síntese de uma narrativa espessa. Mais uma vez a frontalidade com que os
eventos são olhados permite resolver todos os problemas de verosimilhança. A
fascinação filmofânica (essa oposição ao distanciamento brechtiano) como
delineada por Jacques Aumont e Michel Marie existe pela potência de
reconhecimento amplificado.
Mas que o discurso de frontalidades
e secura não sirva para destituir Dwan de febrilidades ou fantasias. Há um
romantismo não-dito mas nem por isso menos sôfrego e fundo que atravessa parte
da odisseia de Alan Dwan. Momentos ou validações perpétuas que alguns podem
experimentar, outros não, e o porquê não dá de si. «Agora sim, encontrei a
liberdade. Agora, estou livre.», concretiza um desertor dos mares a uma ninfa
de tribo canibal quando finalmente lhe aplica a diferença entre o amor e o
peixe, o beijo e a rede ou o mergulho. Aqui nem se trata de metáforas subtis ou
filigrana erótica mas sim uma possibilidade de comunhão virgem. O desertor é o
Dana Andrews dos noirs e policiais de Preminger ou Lang, ultra calejado
pelas vivências em cada porto e com cada mulher do interminável atlas. No
epicentro do perigo, ele, confia o espectador e vê-se no olhar que transcende à
alma, prefere largar a civilização e entregar-se à selvageria. Só que como nas
ambiências de Murnau ou Herman Melville (Enchanted Island, de 1958 é uma
adaptação de Typee), nas sombras e luzes e obscuridades com que Dwan
também se decide envolver, há Tabus e demónios a que o homem mesmo despido de
crenças e disposto a reentrar na origem, se vê obrigado a disputar. Embates
inacessíveis ao comum pois resguardados para poderes outros do lado da
metafisica, mostruário das nossas limitações, portas inacessíveis. Dwan teceu o
cúmulo do romantismo, chegando ao sagrado como que em divina figuração terrena
junta ao renascentista Michelangelo, sem chamar por isso. Mas, diga-se, com
muito mais sopro de vida e experiência concreta do que fascinação cinéfila.
Obra que pode revelar a quem assim quiser acreditar algumas arestas trucidadas
na cepa dura com que parece ser feita a arte e a vida de Dwan.
«Livre? Quem quer ser
livre?» Responde Robert Ryan, salvo de um cadafalso literal à última da hora e
de outro muito mais potente ferrado no interior da sua cabeça, a uma Barbara
Stanwyck que na hora menos esperada viu a vida torcer. Tanto um como outro
pertencem à raça dos que agiram tempo demais em espaço demais por sua conta e
risco. Sem medida, nem sentido, Deus nem Sombra. Ele por esse mundo fora tendo
como teto o céu. Ela junto a elefantes, dentro de palácios e selvas de igual
perdição. A antiga inadaptação. Por meio de injustiças imperdoáveis, irmandades
além morte, insubordinação, fugas, a doença, a peste, vão-se encontrar no milagre
final ou na justiça final e fazer parte disso. Perceber, como todo o grande
cinema americano percebeu e já não percebe mais, o valor da fidelidade. Sentimento
que jamais se amarra ou aninha, mas que é pelo contrário o móbil de todas as
liberdades. Por isso mesmo a deixa final não é sentença, é júbilo. Ou seja,
sentimentos que são os do trabalho do cineasta. Toda a ficção deixa de ter a
sua aura de espetáculo ou de efémero para se projetar em eternidade. O
romanesco é o romanesco de milhões para lá ou cá do cinema. O ofício das formas
como ofício da memória. Da reposição. Uma missão. Tudo entra em acordo e por
isso mesmo é difícil não considerar toda a obra que conheço de Dwan um só
filme. Caminho de múltiplos pavimentos e direções. Seja no fogo de Iwo Jima,
pelas águas do sonhado Suez (Suez, 1938), no gótico e na ciência a dobrarem-se no esplendor escuro e não obscuro de Driftwood, 1947, na viçosa Montana (Cattle
Queen of Montana, 1958), nos desertos falsos e mais do que realistas da
série-b de Angel in Exile, 1958, na cirurgia levada a cabo por Doc Halliday no velho oeste de Frontier Marshal, 1939, que de tão inaudita crueza e limpidez se volve praticamente Ficção científica, pois nunca no Western presenciamos tal ousadia, ou finalmente no apocalipse da obra
crepuscular. Tudo é documento, ainda mais do que documentário, e tudo redime da
vilipendiação e da usura que tantos autores gastaram pelo mundo. Escape to
Burma, de 1955, é a arte e a energia mais livre possível, o mundo como
deveria ser.
Quando em The river's
edge Anthony Quinn começa a queimar incontáveis notas para salvar a sua
amada, sem parar um segundo para pensar noutra alternativa, Dwan insere o sopro
filosófico e existencial no género americano por excelência, bem antes dos anos
setenta e de Arthur Penn. O filme é um maravilhoso road movie ou
pós-western de 1957 que abate sem apelo nem agravo qualquer das coisas
terminais que os anos 60, 70 ou princípios dos 80 iriam trazer. É Dwan, cada
vez mais surpreendente dentro dos seus limites precisos, e selvagem como a Nova
Hollywood que estava a chegar, a fazer raccord com o Frederick Wiseman
que começaria a apreender mundo pouco depois de Dwan se reformar. Trata-se de
captar vales, montanhas, magníficos rios ou as esporas de cowboys da maneira
como devem ser captados, nesse tipo de olhar científico e justo. Mas também
vias lácteas de humanidades, de modos de viver, uma tribo inteira ou apenas um gesto
peculiar, a gesta da mitologia americana ou um suspiro só, o ritmo e o pulsar
do cosmos ou a simples e complexa textura de uma pedra. Registar de frente,
imperturbavelmente, esperando o inesperado, fazendo jus e estando aberto ao
acaso, mas igualmente ordenando ou orientando um pouco as coisas como na cena
acima citada.
Nestas e em tantas outras obras, géneros e algumas invenções sem género, no fim como no princípio, temos todas as grandes e complexas questões humanas sem a necessidade das formas puramente cinematográficas insuflarem de caução aquilo que os homens, a sua palavra e os espaços nos dizem. Assim, é uma tarefa Quixotesca tentar arranjar uma temática ou um estilo nalguém que também não acredita na mentira do estilo ou na importância temática. Dwan não tem um filme seminal, um magnus opus, pois toda a obra é de uma fidelidade seminal. E como a favor dele mesmo refere Dom Quixote logo na abertura da segunda parte do livro de Cervantes: «Orbaneja, o pintor de Úbeda, ao qual em lhe sendo perguntando o que pintava respondeu: “o que sair”. Certa vez pintava um galo de tal sorte e tão mal parecido, que era mister que com letras góticas escrevesse junto a ele: “Este é um galo”.» Com Dwan, filme a filme, nos melhores e nos falhados, jamais precisaremos desse tipo de legendas ou explicações. Um pioneiro, um primitivo, um clássico, mas igualmente a justificação para a recente afirmação contundente de Tag Gallagher: «a era moderna do cinema começou em 1895».
[Texto publicado no suplemento ípsilon do jornal Público no dia 3 de Dezembro de 2021: https://www.publico.pt/2021/12/02/culturaipsilon/cronica/allan-dwan-mil-aventuras-pioneiro-hollywood-1986812?ref=culturaipsilon&cx=stories_featured_c--517190]
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