quarta-feira, 1 de junho de 2022

PAIXÃO & POESIA: SAM PECKINPAH E MIKE SIEGEL

 


por José Oliveira


O alemão Mike Siegel, obcecado pela obra de um dos grandes realizadores malditos do cinema pós-clássico americano, Sam Peckinpah, estará presente nos Encontros Cinematográficos do Fundão de 11 a 15 de maio e na Cinemateca Portuguesa a 17 do mesmo mês. Apresentará o seu monumental memorial sobre a vida e obra desse maverick incomparável, bem como a estreia nacional de "The Osterman Weekend - Director´s cut", a versão montada por Peckinpah às escondidas dos produtores e revelada quase 40 anos depois, entre outros filmes por si escolhidos. Um acontecimento que pode ajudar à queda de muitos mitos e injustiças.

Herdeiro assumido do “cinema de guerrilha”, tal como Robert Rodriguez o estabeleceu nos anos noventa do século passado, Mike Siegel tem-se dedicado nas últimas duas décadas a um longo projecto de pura paixão e de pura poesia: um imenso e ternurento memorial dedicado a Sam Peckinpah. Um memorial que a um tempo tem muito de homenagem e de “pagamento de dívidas” a um tipo de cinema e a uma sensibilidade que sem dúvida diz muito a Siegel, mas também um repositório de justiça a uma obra e a um homem a quem os clichés têm cegado o essencial, o segredo, e a pura poesia e visceralidade presente em cada um dos seus filmes ou séries para televisão. Quando Siegel recebeu, digamos, este chamamento, deu tudo por tudo para que a empreitada fosse para a frente, não podendo negar-se a nenhum esforço. Acto contínuo, vendeu objectos pessoais preciosíssimos, como cartazes raros de filmes, fotografias, e outros artefactos da sua colecção pessoal dedicada ao cinema, para poder voar até aos Estados Unidos da América e entrevistar actores, técnicos, amigos, biógrafos, a filha Lupita, entre muita gente ligada a Peckinpah. E quando não se conseguiu deslocar, por falta de dinheiro ou porque o acontecimento se deu em cima da hora, pediu a amigos para se dirigirem a certo local, ligarem a câmara de filmar, as luzes e o som, realizando ele a cena pelo telefone em alta-voz – foi o que aconteceu no caso de Kris Kristofferson. Sem orçamento oficial, sem produtora que não a própria, munido de muita vontade e determinação – «com uma ideia e uma câmara na mão», como diria Glauber Rocha – e obviamente com uma paixão e um brilho nos olhos que lhe permitiram conquistar cada um dos seus heróis, que pareciam à primeira vista inacessíveis – por exemplo: L.Q. Jones teimava em receber dinheiro até saber que Ernest Borgnine participara de borla e então a “ciumeira” fê-lo dizer imediatamente o “sim”, ou quando Siegel encontrou por acaso num festival de Berlim outro maverick do cinema americano, Monte Hellman, e percebeu que o seu percurso igualmente sinuoso, doloroso e aventureiro estava marcado no timbre e no peso da sua voz e então seria perfeito pedir-lhe uma voz-off – a odisseia tornou-se, e continua ano após ano, monumental. Chegando a tal ponto que até o próprio Mike Siegel confessa ter dificuldade em saber de memória os filmes que já dedicou a Peckinpah.

Partindo do facto assente de que “Passion & Poetry: The Ballad of Sam Peckinpah”, de 2005 e com 115 minutos, é a peça central da sua demanda, conjugando a biografia com o lado afectivo e subjectivo, todo o material que ficou de fora tem servido para cobrir diversos lados de uma obra (a de Peckinpah) constantemente em reconstrução – ainda este ano o próprio Siegel recuperou e lançou a versão montada originalmente por Peckinpah da sua última obra para cinema, “The Osterman Weekend”, um acontecimento redentor, em primeira mão por cá nos Encontros do Fundão – e constantemente em análise, quer pelo lado clássico, quer pelo lado moderno de um classicismo estilhaçado e temperamental. Obras seguintes, como “Passion & Poetry: Major Dundee”, “Passion & Poetry: Sam Peckinpah's Straw Dogs”, “Passion & Poetry: The Early Sam”, “Passion & Poetry: Rodeo Time” ou “Passion & Poetry: Peckinpah Anecdotes”, só para citar algumas, têm saído em extras de formato vídeo ou sendo exibidas esporadicamente em mostras ou festivais, muitas vezes com condicionamentos devido a problemas com direitos autorais, mas sempre essenciais aos cultores e admiradores de Peckinpah, bem como a qualquer historiador que se preze. Nelas se combinam investigação, curiosidades e pura paixão. Tanto se analisam os problemas de produção e de montagem que teve “Major Dundee”, como se entra no terno anedotário sobre Sam. Tanto se desmistifica a ideia feita de um realizador da pura e gratuita violência – convocando-se o cristalino e simples “Junior Bonner” que só fala dos problemas do coração, como nos conta o grande biógrafo Garner Simmons – como se convoca a juventude de Peckinpah para percebermos muita da sua dramaturgia posterior. Um imenso acto justiceiro e poético, então, que começou com esse primeiro gesto de 2005.

Logo na abertura se desvenda muito daquilo que deu origem aos eternos e irresolúveis conflitos de Peckinpah com os produtores e com a autoridade vácua: a sua noção elementar e antiga do que é a justiça, a palavra de honra, o aperto de mão, a confiança; valores que terá aprendido com o seu avô, que foi juiz e rancheiro, e com o seu pai, também homem das leis, mas igualmente com a dureza e a verdade do Velho Oeste. Diz-se também de rompante, e muitos o dirão à sua maneira no decorrer do filme de Siegel, que a obra de Peckinpah só fala da verdade do Oeste, largando a carga mitológica no seu decurso. Também logo ficamos a perceber aquilo que está presente na totalidade do seu caminho, que Peckinpah não é apenas um selvagem, muito menos alguém inculto ou um rude da pior espécie, mas é sobretudo um intelectual no melhor dos sentidos, alguém que estudou História e Teatro e que primeiramente quis ser encenador, interessando-se por Tennessee Williams e pelos grandes clássicos, constantemente obcecado por Homero e pela “Ilíada”. Mitos e mentiras básicas que vão caindo uma após outra, até culminar na pura emoção e comoção do relato de Borgnine aquando de uma das cenas mais emotivas de “The Wild Bunch”, na qual Peckinpah não conseguiu dizer o sacramental “corta” pois não conteve as lágrimas. Lágrimas derramadas por Sam numa cena de puro “acting” e diálogo, onde se reiteram confianças, pactos de sangue e fidelidades eternas. Procura de verdade e de um Sam inteiro e justo, não se sonegando os problemas de álcool e de drogas do realizador, das histórias divertidas de bebedeiras – como o whiskey a servir de soro em “Pat Garrett & Billy the Kid” – bem como das suas provocações e chantagens com as equipas técnicas e actores, como método polémico de fazer avançar as coisas e retirar o melhor de cada protagonista. Procura onde o lado humano e naturalmente contraditório tem constante primazia, sendo resguardado, revelado, até ao fundo das entranhas. A noite e o riso de uma figura eminentemente e furiosamente independente que só assim o foi pela confiança do seu bando.

Lembremo-nos da esplêndida retrospectiva dedicada a Peckinpah pelo Festival de Cinema de Locarno, em 2015, onde defenderam o seu legado algumas “feras”, como Jean Douchet, Paul Seydor, Chris Fujiwara, o já referido Simmons ou uma das suas principais colaboradoras e amigas no período final, Katy Haber. Nessa mesa-redonda, Fujiwara revoltou-se furiosamente contra os críticos, historiadores ou simples cinéfilos que constantemente colocam as bebedeiras e a autodestruição de Sam à frente dos seus filmes; Simmons referiu o intenso período criativo da década de setenta, com filmes encavalitados uns nos outros, notando para o caso que Peckinpah montou “Straw Dogs” numa caravana enquanto filmava “Junior Bonner”. Paul Seydor, extraordinário analista, melhor do que ninguém centrou e redefiniu a contenda, nessa prodigiosa descentralização da vida e da obra de Peckinpah, citando F. Scott Fitzgerald: «A marca de uma inteligência de primeira ordem é a capacidade de ter duas ideias opostas presentes no espírito ao mesmo tempo e nem por isso deixar de funcionar.» Mas foi evidentemente a Katy, como mulher e mesmo confessora de Sam, a quem coube a parte mais grave: contou que, como muitos, ela era constantemente despedida e readmitida por Sam, pedindo-lhe que regressasse filme após filme pois precisava dela; argumentou e assim complexificou de uma maneira pasmosa as constantes acusações de misoginia de que Sam foi e continua a ser alvo.

É nesta mesma atenção à obra por si, não a separando do sangue quente do seu autor, mas jamais caindo na simplificação, que a série “Passion & Poetry” se revela essencial e emocional. Essencial, pois vemos a paixão com que Peckinpah trabalhou no final da sua vida, num videoclipe musical que fecha e abre o filme inaugural de 2005. Emocional, pois notamos o prazer que aqueles jovens produtores e músicos têm em ter uma lenda viva a trabalhar com eles, noutro terreno mas tratando-se sempre de imagens e poesia em movimento. Lenda sim, mas um ser humano pulsante ainda, é isso que Siegel nos mostra pelo arquivo e nos diz através da montagem, uma energia furiosa e não um consagrado a fazer um frete. E este final ligado ao princípio é o mesmo que despoleta a amizade e o choro geral que os entrevistados vão dedicando à sua memória, das risadas de Borgnine à lealdade e entrega de James Coburn, da idolatria e fascinação de Bo Hopkins até às cantorias dedicadas a Sam por Kris ´Billy the Kid´ Kristofferson, ao carinho da filha Lupita ou às lágrimas e remorsos impotentes que escorrem de Chalo González. E como crepúsculo, imenso, amarelado, avermelhado, mas pequenino, íntimo, as frases lapidares que são os filmes de Sam Peckinpah e a cepa de que é feito ele e os seus heróis e anti-heróis: «To enter my House justified»… «Pike? I wouldn't have it any other way either»… «It feels like times have changed / Times, maybe—not me»… E assim fazemos a vénia a Mike Siegel e ficamos-lhe agradecidos, pela memória perene, pela paixão, pela poesia, e pelas revelações das luas, dos sóis e dos múltiplos brilhos de um artista e de um homem complexo porque apaixonado. Trabalho que inclui outros materiais e interesses, como o fabuloso livro de fotografias “Passion & Poetry, Sam Peckinpah in Pictures”, o seu envolvimento com os restauros e recuperações das versões originais dos filmes, enfim, todos os maravilhosos DVD e Blu-ray que estão a sair e sairão no futuro. Uma montanha chamada Peckinpah.


[Texto escrito originalmente para o catálogo dos Encontros Cinematográficos do Fundão 2022 e para o suplmento Ípsilon do jornal Público do dia 6 de maio de 2022: https://www.publico.pt/2022/05/07/culturaipsilon/cronica/paixao-poesia-sam-peckinpah-mike-siegel-2004698?fbclid=IwAR2PiHsJU9Zkuw_JWx3Rjm7Arq2GcgXcrExiHrbplFHryNgONoGZzY9hEok]

TRÊS CAMARADAS, DE FRANK BORZAGE: UMA CORRESPONDÊNCIA



 


por Marta Ramos e José Oliveira


Marta Ramos: É o tempo que nos ensina a lidar com a morte? É o amor que nos protege?

Conheci já histórias de amor profundamente duradouras em que, face à separação última, face à impossibilidade de se despedirem ao mesmo tempo da vida, quem ficou perguntou: que segredo é esse que agora me guardas… nós que nunca tivemos segredos? Levavam mais vida juntos que solteiros, mas na morte…

Uma outra avó que tenho, adoptada pela ternura e admiração, perdeu também o companheiro da vida. Dói-me cada vez que penso que os seus últimos encontros foram mudos através de um vidro duplo num quarto de cuidados continuados. Ele que do verde turvo dos seus olhos só pedia um beijinho daqueles.

Lembro uma caminhada da Lucy Muir (Gene Tierney) pela praia, no “The Ghost and Mrs. Muir”, sozinha mas acompanhada. O amor entre eles é tão forte que no fim as almas se encontram. É assim que imagino ser o amor. Aquele que quebra os segredos e as fronteiras, mas que também nos deixa tão corajosos quanto assustados.

E não é preciso ser de uma vida inteira, breve ou duradouro, sempre indefeso perante a morte, há amores que escavam até ao núcleo da terra e aí ficam em lava até chegar o dia de irromperem.

Nas histórias do Remarque, os amores não vivem tanto pois a guerra não permite. O perigo é iminente, há um vazio, uma nudez qualquer que impele as personagens para uma entrega total, que também nos impele a não querer acabar a história e, ao mesmo tempo, a querer ler como se a estivéssemos a viver. Com urgência e avidez.


José Oliveira: Acabo de ler “O Céu não tem Favoritos”, também do E. M. Remarque, autor do romance “Três Camaradas”. Tal como nos filmes do Borzage, tal como em F. Scott Fitzgerald (o Remarque americano), tudo o que as personagens fazem, o que dizem e a maneira como decidem viver, e a forma como isso é contado, nesses ambientes a um tempo mágicos, cheios de sombras e de vida – perto do céu, das estrelas, mas neste mundo nosso – é uma maneira ao mesmo tempo de tratar a morte por tu e de a iludir. Não consigo tirar da cabeça as imagens de “Bobby Deerfield”, a adaptação que o realizador Sydney Pollack fez desse romance [“Heaven has no Favorites”]: tão “borzagiano” e em filigrana como não mais é possível neste mundo bruto (a História do Cinema é uma mentira e este filme é uma pedra preciosa!). Portanto, para mim as personagens de Clerfayt e de Lillian são Al Pacino e Marthe Keller (no celulóide apelidadas Bobby e Lillian), ela a perceber que morrer num sanatório, rodeada de neve, montanhas e o cheiro corrupto da doença, não é coisa com futuro; ele, uma espécie de fantasma a prazo que só tem a vida como garantida até à próxima corrida, até à próxima curva. Mas talvez os dois sejam fantasmas até ao final, numa sociedade onde se tenta instalar a rotina como forma de esquecer a condição mortal que nos subjaz. Assim, estes dois seres etéreos, diáfanos, que se atiram aos abismos da vida pois viram (e vêem constantemente) os abismos da morte, estiveram sempre prometidos um ao outro, como em Borzage. O final do livro é irónico, ou apenas constatação e assunção de algo (um fardo?) falho que sempre acarretamos: ele, quando decide que quer assentar, desacelerar e casar, e ter uma casa e longo futuro, morre numa curva; ela, com remorsos de ter sido o agente de tal sorte, apressa ainda mais a sua morte e fica como que de consciência tranquila por esse gesto. O epílogo é belo, porque aceita a nossa perene condição e fim como coisa que conclui ou perfaz uma perfeição (perfeição só atingida na plenitude com a morte): «morreu seis semanas depois, numa tarde de Verão tão radiosa e serena que a paisagem parecia ter parado de respirar. (…) Boris acreditou que fora feliz – tão feliz, pelo menos, quanto um ser humano o pode ser.»

 

Marta Ramos: No fim, antes de morrer, ouvimos Patrícia (Margaret Sullavan) dizer:

«It’s right for me to die, I’m so full of love.»

É certo, é justo… a morte soa sempre injusta, mas o que importa é a vida. Ou como diria o poeta: o que importa é o amor.

Os “Três Camaradas”, na minha memória difusa do filme, incluíam a Patrícia, tal como “Jules et Jim” tem, para mim, invisível no título a força motriz de Catherine vestida de rapaz, que põe os 3 a correr, sempre a correr.

Quando aparece aquela pequenina luz bruxuleante chamada Margaret Sullavan, esse ser branco que traz a alegria ao trio de camaradas que parecem estar perdidos, os quatros entram na brincadeira, mas ela, a luz, tem sempre a assustadora e tranquila consciência do fim.

E por essa força inexplicável, amam até ao fim, entregam-se à vida: o idealista luta sem tréguas pelo que acredita (até à morte), o amigo desafia os limites da velocidade para fazer chegar um médico, o amante faz tudo para salvá-la. Mas ela sabe. Sabe que o amigo já morreu. Sabe que também ela partirá em breve. Mas continua a ser insuportável o tique-taque do relógio e é prodigiosa a cena em que Erik o atira ao chão, como se pudesse destruir o tempo, parar o tempo, como se faz quando se beija assim.

 

José Oliveira: «Entregam-se à vida», dizes. Ainda no outro dia falávamos na planificação para um filme que vamos fazer e eu, meio inconscientemente, disse que para esse caso não fazia sentido. Mais uma vez, tentava livrar-me das leis do cinema, talvez preferindo a morte a essa legislação, mas agora acho que é preferindo o amor e a família, mas acima de tudo a conservação da possível ardência de cada instante. Estou a ler a “Odisseia” e, a certo momento, Homero coloca estas palavras «apetrechadas de asas» na boca do divino e sofredor Odisseu: «Mas coragem: eu próprio farei a experiência de ver». A experiência de ver o que está à nossa frente a cada momento presente é o mais desafiante e custoso, tal como vem dizendo igualmente Werner Herzog. É a revelação de cada coisa, pedra, pessoa, terra, seja o que for, vista como que pela primeira ou última vez. Talvez seja – sobretudo hoje em dia com estes equipamentos de cinema leves e caseiros, e livres de pressão extra-filme – inconsequente pensar em Panorâmicas, Travellings, Escalas de planos académicos… talvez seja mais produtivo tentar fazer a experiência de ver a cada pulsação. Medir forças com a morte, enfrentá-la, chegar à plenitude, à vida, ver… acredito que todas as personagens de Borzage, e o próprio romântico Borzage, também comportam esta lucidez, ou seja, esta paixão.


[Texto escrito originalmente para o catálogo dos Encontros Cinematográficos do Fundão 2022]