por Marta Ramos e José Oliveira
Marta Ramos: É o tempo que nos ensina a lidar com
a morte? É o amor que nos protege?
Conheci já histórias de amor profundamente duradouras em que,
face à separação última, face à impossibilidade de se despedirem ao mesmo tempo
da vida, quem ficou perguntou: que segredo é esse que agora me guardas… nós que
nunca tivemos segredos? Levavam mais vida juntos que solteiros, mas na morte…
Uma outra avó que tenho, adoptada pela ternura e admiração,
perdeu também o companheiro da vida. Dói-me cada vez que penso que os seus
últimos encontros foram mudos através de um vidro duplo num quarto de cuidados
continuados. Ele que do verde turvo dos seus olhos só pedia um beijinho
daqueles.
Lembro uma caminhada da Lucy Muir (Gene Tierney) pela praia,
no “The Ghost and Mrs. Muir”, sozinha mas acompanhada. O amor entre eles é tão
forte que no fim as almas se encontram. É assim que imagino ser o amor. Aquele
que quebra os segredos e as fronteiras, mas que também nos deixa tão corajosos
quanto assustados.
E não é preciso ser de uma vida inteira, breve ou duradouro,
sempre indefeso perante a morte, há amores que escavam até ao núcleo da terra e
aí ficam em lava até chegar o dia de irromperem.
Nas histórias do Remarque, os amores não vivem tanto pois a guerra
não permite. O perigo é iminente, há um vazio, uma nudez qualquer que impele as
personagens para uma entrega total, que também nos impele a não querer acabar a
história e, ao mesmo tempo, a querer ler como se a estivéssemos a viver. Com
urgência e avidez.
José Oliveira: Acabo de ler “O Céu não tem
Favoritos”, também do E. M. Remarque, autor do romance “Três Camaradas”. Tal
como nos filmes do Borzage, tal como em F. Scott Fitzgerald (o Remarque americano),
tudo o que as personagens fazem, o que dizem e a maneira como decidem viver, e
a forma como isso é contado, nesses ambientes a um tempo mágicos, cheios de
sombras e de vida – perto do céu, das estrelas, mas neste mundo nosso – é uma
maneira ao mesmo tempo de tratar a morte por tu e de a iludir. Não consigo
tirar da cabeça as imagens de “Bobby Deerfield”, a adaptação que o realizador
Sydney Pollack fez desse romance [“Heaven has no Favorites”]: tão “borzagiano” e em filigrana como não mais
é possível neste mundo bruto (a História do Cinema é uma mentira e este filme é
uma pedra preciosa!). Portanto, para mim as personagens de Clerfayt e de
Lillian são Al Pacino e Marthe Keller (no celulóide apelidadas Bobby e
Lillian), ela a perceber que morrer num sanatório, rodeada de neve, montanhas e
o cheiro corrupto da doença, não é coisa com futuro; ele, uma espécie de
fantasma a prazo que só tem a vida como garantida até à próxima corrida, até à
próxima curva. Mas talvez os dois sejam fantasmas até ao final, numa sociedade
onde se tenta instalar a rotina como forma de esquecer a condição mortal que
nos subjaz. Assim, estes dois seres etéreos, diáfanos, que se atiram aos
abismos da vida pois viram (e vêem constantemente) os abismos da morte, estiveram
sempre prometidos um ao outro, como em Borzage. O final do livro é irónico, ou
apenas constatação e assunção de algo (um fardo?) falho que sempre acarretamos:
ele, quando decide que quer assentar, desacelerar e casar, e ter uma casa e
longo futuro, morre numa curva; ela, com remorsos de ter sido o agente de tal
sorte, apressa ainda mais a sua morte e fica como que de consciência tranquila
por esse gesto. O epílogo é belo, porque aceita a nossa perene condição
e fim como coisa que conclui ou perfaz uma perfeição (perfeição só atingida na
plenitude com a morte): «morreu seis semanas depois, numa tarde de Verão tão
radiosa e serena que a paisagem parecia ter parado de respirar. (…) Boris
acreditou que fora feliz – tão feliz, pelo menos, quanto um ser humano o pode
ser.»
Marta Ramos: No fim, antes de morrer, ouvimos Patrícia
(Margaret Sullavan) dizer:
«It’s
right for me to die, I’m so full of love.»
É certo, é justo… a morte soa sempre injusta, mas o que
importa é a vida. Ou como diria o poeta: o que importa é o amor.
Os “Três Camaradas”, na minha memória difusa do filme,
incluíam a Patrícia, tal como “Jules et Jim” tem, para mim, invisível no título
a força motriz de Catherine vestida de rapaz, que põe os 3 a correr, sempre a
correr.
Quando aparece aquela pequenina luz bruxuleante chamada
Margaret Sullavan, esse ser branco que traz a alegria ao trio de camaradas que
parecem estar perdidos, os quatros entram na brincadeira, mas ela, a luz, tem
sempre a assustadora e tranquila consciência do fim.
E por essa força inexplicável, amam até ao fim, entregam-se à
vida: o idealista luta sem tréguas pelo que acredita (até à morte), o amigo
desafia os limites da velocidade para fazer chegar um médico, o amante faz tudo
para salvá-la. Mas ela sabe. Sabe que o amigo já morreu. Sabe que também ela
partirá em breve. Mas continua a ser insuportável o tique-taque do relógio e é
prodigiosa a cena em que Erik o atira ao chão, como se pudesse destruir o
tempo, parar o tempo, como se faz quando se beija assim.
José Oliveira: «Entregam-se à vida», dizes. Ainda no outro dia falávamos na planificação para um filme que vamos fazer e eu, meio inconscientemente, disse que para esse caso não fazia sentido. Mais uma vez, tentava livrar-me das leis do cinema, talvez preferindo a morte a essa legislação, mas agora acho que é preferindo o amor e a família, mas acima de tudo a conservação da possível ardência de cada instante. Estou a ler a “Odisseia” e, a certo momento, Homero coloca estas palavras «apetrechadas de asas» na boca do divino e sofredor Odisseu: «Mas coragem: eu próprio farei a experiência de ver». A experiência de ver o que está à nossa frente a cada momento presente é o mais desafiante e custoso, tal como vem dizendo igualmente Werner Herzog. É a revelação de cada coisa, pedra, pessoa, terra, seja o que for, vista como que pela primeira ou última vez. Talvez seja – sobretudo hoje em dia com estes equipamentos de cinema leves e caseiros, e livres de pressão extra-filme – inconsequente pensar em Panorâmicas, Travellings, Escalas de planos académicos… talvez seja mais produtivo tentar fazer a experiência de ver a cada pulsação. Medir forças com a morte, enfrentá-la, chegar à plenitude, à vida, ver… acredito que todas as personagens de Borzage, e o próprio romântico Borzage, também comportam esta lucidez, ou seja, esta paixão.
[Texto escrito originalmente para o catálogo dos Encontros Cinematográficos do Fundão 2022]
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