Jean-Luc Godard representou para mim a força e a arrogância colossais da juventude mas também os vislumbres e a descida aos abismos dos trabalhos da alma. Na primeira fase da vida, a ausência de tempo, o presente puro, a irresponsabilidade. Na fase posterior, as sendas existenciais escancaradas, o desprezar do inútil. O seu cinema e as suas invetivas ajudaram-me a suportar a profanação alheia da minha cinefilia, a cuspir nos idiotas que foram estudar cinema somente pelo lado cool, a juntar imagens e sons da maneira que eu quisesse para logo insultar o professor que dizia que o trabalho que lhe entreguei não tinha jeito nenhum nem era cinema. Sentia-me certo, e estava tanto quanto errado.
Nesses anos em que escrevia as suas míticas tiradas nas paredes da escola fui salvo por dois momentos da sua incomensurável filmografia: um dos episódios das Histoire(s) du cinema em que a voz velha de Godard e os seus dedos a baterem revolucionariamente nas teclas diziam-me que o cinema eram Todas as Histórias, incluindo as minhas; um episódio da série Cinéma Cinémas, de 1987, intitulado Jean-Luc Godard, Kubrick vs Alvarez, onde Godard me explicou – ou eu percebi tal, contradições incluídas – que em Kubrick e seus derivados tudo se passava dentro de campo, impresso e fechado na película e na encenação, fechado no cinema, e que em Santiago Álvarez – como em Eisenstein, presumi eu e o meu professor Miguel Oliveira – tudo se estilhaçava para fora do campo da encenação, da película e em última instância do próprio cinema – o cinema ele mesmo torna-se um campo de batalha, explosivo, dialético, contraditório, lógico. O que retirei dessa experiência e dessa pedagogia foi que a vida e cinema são inseparáveis (um tudo é político e tudo é paixão), e nos próximos exercícios e vídeos que realizei – ou mesmo textos que escrevi – deixei os erros e os lados esconsos à mostra, propositadamente ou porque Godard também me ensinou que O Senhor dos Anéis ou o Star Wars nos dizem acima de tudo que não conseguiremos fazer filmes como esses.
E a segunda fase, eu já inscrito no centro de emprego, sem rei nem roque, ao deus-dará. Caiu-me em cima, sem o esperar nem o procurar, Scénario du film ‘Passion’, visto na cinemateca caseira do incomparável Mário Fernandes. Lembro-me que o filme a que esta espécie de making-of se atira, Passion, me tinha deixado gelado, e não esperava nada de nada. Até que nas suas movimentações sinfónicas – Godard já a entender que todo o movimento (sejam folhas de árvores ou palavras) e toda a beleza são música – a sua voz atira: «Faz um movimento de câmara como se rezasses uma oração» (é assim que me recordo do dito, é assim que fica). Entre o romantismo que vinha dos seus escritos nos Cahiers du Cinéma, de figura de proa estilhaçante da Nouvelle Vague – e sobretudo das quebras formais de À bout de soufflé – e esse radicalismo ainda mais prodigioso ou visionário da fase Histoire(s) du cinema, a frase de Scénario du film ‘Passion’ em sintonia com o sublime sinfónico faziam-me perceber que afinal tudo era questão de alma, questão interior, e que não bastava escarrar nos colegas, nos professores e nos académicos da treta que repetiam – como agora, na sua morte – os mesmo clichés sobre Godard e a invenção da modernidade pela recusa do classicismo, etc. O que entendi nesse momento foi que em cada movimento de câmara, ou seja, em cada movimento alhures, em cada passo que damos, em cada ação que tomamos, em cada inspiração e expiração, está em jogo o equilíbrio do universo e a nossa salvação, a nossa justificação – Todas as histórias, incluindo as minhas.
E é assim que eu conjugo a beleza Homérica de Le mépris com os escombros, a fealdade e as quimeras de um Le vent d’est ou de um Ici et ailleurs, o 35 mm, as cores excelsas e o Franscope luxuriantes com o vídeo de muito baixa resolução do impetuoso Numéro deux. Resumo: o que interessa não é o formato em si, a perfeição em si, o comércio. Mas sim a justeza. Não uma imagem justa. Apenas uma imagem. Uma forma de lutar pelo desconhecido. Por algo que se pressente valer a pena. Foi a lição derradeira. Para o cinema e para a vida. Que têm de ser inseparáveis. Pois ou assim ou a barbárie.
José Oliveira, setembro de 2022
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