segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Horas e horas de aventuras na pequena caixa…

 







Hours and Hours – os filmes para televisão dos grandes mestres de Hollywood é um ciclo fundamental que a Cinemateca Portuguesa levará a cabo de 2 a 30 de dezembro próximos. Fundamental, sem dúvidas, pois permitirá percebermos o que foi outrora a produção televisiva americana, em comparação com os serviços online de streaming que hoje proliferam. Na “idade de ouro” do cinema americano – «Horas e horas de drama», escreveu o crítico Bill Krohn sobre a oferta televisiva que era disponibilizada pela televisão americana a partir de meados dos anos 50 –, grandes cineastas trabalharam para a televisão e, nesse contexto de produção, deixaram o seu cunho pessoalíssimo. Em muitos casos, rejuvenescendo mesmo o seu trabalho. Tudo isto ocorreu num período que foi praticamente até aos anos 70, apanhando a geração da Nova Hollywood.

Andy Rector, programador americano a viver em Portugal, concebeu com a Cinemateca este longo ciclo, que permitirá ao cinéfilo mais dedicado descobrir zonas menos iluminadas tanto da carreira de grandes cineastas consensuais – John Ford, Samuel Fuller ou Orson Welles – como de impagáveis tarefeiros da série-b – Phil Karlson, Stuart Heisler ou Joseph H. Lewis – que encontraram no formato televisivo os meios e a economia ideal de trabalho. “Tarefeiros” que tiveram assim oportunidade de orquestrar uma reviravolta nas suas carreiras, levando a um vasto público obsessões pessoais e grandes ideias temáticas e formais que poucos ainda conheciam. Andy ainda não tinha nascido quando este segundo período dourado foi possível, e começa por explicar a sua relação pessoal com estes telefilmes: “Foram realizados e transmitidos principalmente entre 1954 e 1964. Não era o género de coisas que fossem revisitadas e repetidas pela TV nos anos 80 e 90, quando eu era criança. Com a exceção da série The Twilight Zone, que era exibida todos os anos numa maratona televisiva, todo o dia e toda a noite, na véspera de Ano Novo. Tenho a certeza de que nunca vi o episódio realizado por Jacques Tourneur, chamado Night Cal (1964, exibido no ciclo), mas vi As Máscaras (1964, também no ciclo), de Ida Lupino. Um episódio muito famoso. Para um adolescente americano do final dos anos 80, era um padrão cultural sentir-se superior e ridicularizar os filmes ou a TV dos anos 60 ou anteriores.”

Em comparação com a produção televisiva dos dias de hoje, seja em canal aberto, seja nos serviços streaming, a ausência de personalidade atual chega a ser chocante. Ao explorarmos os catálogos da maior parte das operadoras, deparamos com padrões normativos que retiram a possibilidade de exploração de novas formas e ideias. Contam-se pelos dedos de uma mão os cineastas importantes que conseguem continuar livremente a experimentar nos serviços pré-pagos. David Fincher, Martin Scorsese ou Michael Mann são cineastas importantes que estão a fazer trabalhos com cunho pessoal num novo meio que privilegia os conteúdos e os temas contemporâneos em detrimento das marcas autorais. Não serão os únicos, mas, como veremos na Cinemateca, a abundância pretérita é incomparável. Continuando com Lupino, uma realizadora pioneira no contexto americano, Andy prossegue: “Quando vi a piada grotesca que está no centro de As Máscaras, ri com escárnio. Mais tarde, ao ver os filmes angustiantes de Lupino dos anos 50, e ao ler sobre ela, não ri: percebi que As Máscaras é um trabalho sério de Lupino, e podemos tentar mostrá-lo como tal. Os seus filmes costumam ser sobre pessoas imutáveis ​​forçadas a viver vidas predestinadas, e esse telefilme tem que ver com isso... No seu trabalho, Lupino parecia não ser capaz de se conciliar com a vida e a sociedade do seu tempo.”

É fácil perceber que, na altura da produção e exibição destes telefilmes, o autorismo e, em alguns casos, a experimentação e pesquisa formal não foram entendidos por todos. Foi também um dos segredos desses realizadores talentosos e inteligentes, uma das lições essenciais dos clássicos: não chamar a atenção para o seu estilo e para os seus interesses persistentes, daí as elipses narrativas e a concisão formal terem atingido nesse período um dos seus apogeus. Veremos neste ciclo cineastas e personalidades muito diferentes, modos de narrar diversos, trabalhos feitos puramente em estúdio e westerns filmados em campo aberto. The Brush Roper (1955), realizado por Heisler para a série Screen Directors Playhouse, oferece ao eterno secundário Walter Brennan um dos seus melhores papéis, absolutamente nostálgico e sedento. A ternura de Frank Borzage, com a câmara sempre perto do leito amoroso, junto das almofadas e dos afetos, está intacta em A Ticket For Thaddeus (1956). Orson Welles e a reportagem feérica, num inclassificável tratado sobre o verdadeiro e o falso, antes de F for Fake, em The Basque Country (1955), nunca exibido pela TV americana. Em The Honest Man (1956), Frank Tashlin urde uma série de peripécias descabeladas em torno de joias, a honestidade e o poder da sedução, continuação intacta do seu interesse pela dicotomia teatro/cinema e das respetivas distâncias e efeitos. A descida aos infernos pela mão segura e frontal de Allan Dwan em High Air (1956), aquando da construção dos túneis para o metro de Nova Iorque. Os eternos falsos culpados de Hitchcock e uma pedagogia final desarmante em Bang! You’re Dead (1961), para a sua famosíssima série Alfred Hitchcock Presents. Enfim, outra preciosidade rara é Flashing Spikes (1962), de Ford, que perfaz a moral e o jogo de flashbacks de O Homem que Matou Liberty Valance.

Mesmo na altura em que os Cahiers du Cinéma inventaram a famosa “teoria dos autores”, apelidando os artesãos clássicos de verdadeiros originais, estes trabalhos continuaram a ser de difícil acesso fora do seu país de origem. Daí que o espanto de Andy aquando da descoberta destes tesouros enterrados seja potencialmente equiparável à que muitos espectadores poderão ter quando descobrirem que, em menos de meia hora, surpresas incontáveis estarão à sua espera: “Há cerca de 20 anos, o meu mentor e amigo Bill Krohn pôs-me nas mãos uma VHS de Night Call e disse-me: «Há muito mais de onde isso veio…» Disse ainda que não devíamos ser preconceituosos com esses trabalhos para a TV, pois os grandes cineastas nunca os trataram como enteados do cinema. Eles tratavam a TV como uma continuação do seu cinema, com o mesmo nível de mestria e determinação, muitas vezes com os mesmos colaboradores.” John Ford, a bíblia do cinema americano, foi sintomático e lacónico sobre essa velha contenda, conta-nos: “Ford foi muito prático a respeito da televisão. Abordou a questão como um homem livre, dizendo: «Há uma mão que nos puxa para a produção de filmes bons, mas baratos, para a TV, e outra que tenta fazer filmes de qualidade para cinema.» (...) «...sejamos realistas, The Rising Of The Moon foi filmado de tal modo que podia ser usado como três histórias para TV. Nas longas-metragens, a duração de uma imagem depende da história. Encontremos as histórias certas para fazer, e depois decida-se a sua escala e potencial de mercado!»”

Por isso, outra das premissas importantes deste ciclo é que cada bloco – alguns cineastas, como Jerry Lewis ou Karlson, só terão direito a uma obra para TV – tecerá rimas e diálogos com uma longa-metragem do mesmo autor. O que é bastante significativo, complexificando e rasgando horizontes.  Se pensarmos que Hitchcock realizou Psico com a mesma equipa da sua série televisiva e que levou a técnica multi-câmaras para o centro da sua mise-en-scène, aprofundando substância e abismo, conclui-se que o seu cinema ficou a ganhar. O que parece o caso inverso ao de Samuel Fuller. Na sinopse sobre Dogface (1959), para o programa da Cinemateca, Andy escreve: “Dogface, produzido independentemente por Fuller como piloto para a CBS, é uma obra plenamente Fulleriana: a necessidade irrequieta de representar a sua versão da Segunda Guerra Mundial, os duelos de acesos diálogos, os grandes-planos carregados com o pó e o suor dos bombardeamentos, o uso de animais alegorizando a inocência e o condicionamento, as minúcias de como as guerras são travadas e justificadas pelos homens que as vivem. Dogface foi rejeitado pela CBS. Fuller preferia o cinema: «O que descobri com a minha incursão na televisão foi o quanto gostava de fazer filmes. Estava habituado a ver as minhas personagens num grande ecrã.»” O que não impede que Dogface seja uma das obras máximas de Fuller, com a mesma carga demencial das suas obras para cinema e uma antecipação do polémico e cada vez mais urgente Cão Branco, alegoria terminal sobre o racismo e a inocência.

O critério das escolhas foi plenamente sopesado e pensado, mesmo com a condicionante de não existirem boas cópias de muitos telefilmes: “Eu diria que o critério foi escolher obras em que o realizador esteve de alguma forma em harmonia com o seu material, tendo feito um trabalho forte. Tive ainda em conta os seus prazeres e ressonâncias… dentro e fora do cinema.” Claro que as escolhas de um programador são também pessoais, e, assim, Andy reservou-se o direito de “proteger” alguns dos seus cineastas prediletos: “Borzage fez apenas três episódios de TV; um deles, ambientado durante a Guerra da Coreia, não tem o coração no lugar certo. Por isso, não o vamos mostrar. Já os outros dois, The Day I Met Caruso (1956) e A Ticket For Thaddeus, são obras elevadas, intensas, maravilhosas.” E, importantíssimo, a sempre preciosa missão de resgatar realizadores maravilhosos ainda não vistos como tal: “A inclusão de Heisler, Karlson e Joseph H. Lewis no ciclo é uma espécie de provocação, uma insistência minha na sua inclusão no cânone. Mas isso é completamente incontroverso se observarmos o trabalho deles; são cineastas inegavelmente significativos e distintos, até mesmo clássicos, e os seus trabalhos para a TV são ricos.”

Andy não destaca nenhum filme em particular, preferindo encarar o ciclo como um todo comunicante, resguardando todas as declinações possíveis para cada realizador, todos os seus enigmas, todas a portas de entrada, de saída e os corredores formais e narrativos entre o pequeno e o grande ecrã. Daí a pertinência do ciclo: “Todos estes filmes são joias imperdíveis. Há simples prazeres, mas também há coisas para aprender. Todos somados, constituem uma montanha irrefutável de histórias. E não apenas histórias, mas formas dinâmicas e artesanato dedicado. É importante ver estes filmes hoje. São o oposto do alheamento narrativo atual. São incrivelmente condensados, a antítese do carácter excessivamente longo, disperso, monocromático e repetitivo das séries de TV e do cinema contemporâneos (Netflix, etc.). Como todas as retrospetivas, é uma missão de resgate do que foi perdido, esquecido ou roubado das nossas sensibilidades atuais.” É neste ponto da conversa que o seu amor por Jerry Lewis se torna contagiante, falando animadamente dos famosos shows de 24h produzidos e supervisionados por Lewis, filantropia em estado puro, onde estranhos convidados, provocações inauditas e interrupções súbitas fizeram Andy concluir que Lewis “foi o Glauber Rocha da TV americana!”

Montar um ciclo deste género é também uma aventura cinematográfica e detectivesca, e arranjar os filmes e as cópias certas, localizá-los, prescindir de uns em favor de outros, pode demorar longos meses. A deceção pode tomar conta da empreitada, a tarefa de trazer ao de cima mundos inteiros, de descobrir ou redescobrir universos soterrados pode ser penosa. Um trabalho que tem tanto de arqueologia como de resignação. Arqueologia no sentido quase literal de desenterrar película ou vídeo. Resignação pois algures no caminho se percebe que alguns filmes estão irremediavelmente perdidos, enquanto outros poderão ser recuperados: “Infelizmente, a disponibilidade destes telefilmes acabou por desempenhar um papel muito importante nas escolhas. Cheguei a incluir na lista o episódio de The Lawman realizado por Heisler, chamado Yawkey – um dos westerns mais compactos e económicos que já vi –, mas a cópia em vídeo não era projetável.” Mas o impensável surgiu via eBay, quando mais filmes importantes pareciam prestes a serem riscados: “A certa altura, planeei mostrar seis episódios de Joseph H. Lewis. Um grande mestre dos movimentos de câmara, do preto-e-branco e das filmagens em estúdio para cinema, e isso foi totalmente evidenciado na TV. Uma espécie de Murnau da TV. A dado momento, parecia que eu e a Cinemateca não conseguíamos encontrar uma única cópia boa para exibição. Estava prestes a eliminá-lo completamente da lista. Depois, pensei: devia dar uma última vista de olhos no eBay. Estavam todos lá, em cópias de 16 mm, vendidos por alguém que disse serem da coleção particular de Johnny Crawford. Johnny Crawford é o pequeno ator dessas séries!”

O que faltou, o que foi impossível exibir, e, em muitos casos, essa impossibilidade teve para Andy a dor de uma unha arrancada, é tão importante como o que iremos ver. Podemos mesmo arriscar que o ciclo constitui um ensaio para uma segunda parte, ainda maior, que virá um dia. Com toda esta aturada pesquisa, Andy conseguiu mexer e limpar um pouco do pó dos arquivos, muitos deles mortos, desprezados e ignorados. Assim, terá renascido o interesse por estes pequenos-grandes filmes: “Ao fazer este ciclo, encontrei algumas pessoas nos arquivos que estão interessadas. Mas não estão no poder. São uma minoria. Este trabalho de recuperação não está na moda. Em Los Angeles, a preservação do cinema clássico e mudo está a ser completamente abandonada (é uma das razões pelas quais vim para Portugal; há mais respeito, mais trabalho em torno da História do Cinema). Para levar a cabo restauros deste género, seria necessária a colaboração de muitas instituições, arquivos e museus de cinema.”

Durante o mês de dezembro, na Cinemateca, Joseh H. Lewis terá a mesma altura de John Ford, os grandes e os pequenos mestres serão tratados com a mesma acuidade, e o trabalho para televisão irromperá como um Paraíso Perdido onde todas as possibilidades estiveram em aberto. O pequeno formato será projetado nas telas dos grandes formatos, com toda a importância política e, portanto, estética que tal gesto comporta. Um acontecimento, repetimos.

 

José Oliveira, novembro de 2023


Versão ampliada de uma peça publicada no suplemento ípsilon do jornal Público a 1/12/2023: https://www.publico.pt/2023/11/30/culturaipsilon/noticia/acontecimento-cinemateca-filmes-televisao-mestres-hollywood-2071664 


Khalik Allah, no turbilhão das imagens; notas insuficientes para um universo de pureza complexa.

 


 

Khalik Allah consegue arrancar ao real (pessoas e mundo, pessoas no seu mundo) o cinema e as memórias mais eletrificantes do presente. Tudo irrompe fantasmagoria, desconexão, mas tudo é presença absoluta.  Eletrificante mas igualmente o cinema mais terno, o retrato mais belo possível, numa troca justa, de mãos vazias, por necessidade, questão existencial. Black Mother será exibido pelo Cineclube Gardunha no dia 14 deste mês de outubro, no ciclo Janela Para o Mundo e apropriadamente no Centro para as Migrações do Fundão.

Nascido em plenos anos oitenta do século passado, nova-iorquino, assume o hip-hop como fonte primordial de inspiração e de modo de fazer, essa forma violenta e pulsante de representação propensa ao improviso e à irmandade, aproximando-se também do jazz, seu irmão. Usar a câmara de filmar, de registar, como um instrumento, muitas vezes de improviso, musical, como John Coltrane, disse KA um dia; ir além da forma, mergulhar diretamente no conteúdo, disse também, e aí estamos na brutalidade e na novidade que trouxe o hip-hop. De mãe jamaicana e pai iraniano, autodidata e diletante, criado na dissociação The Five-Percent Nation, que é central no seu percurso e que o mesmo KA definiu assim, belamente, deste modo: «The Five-Percent Nation nasceu de pessoas que foram delinquentes de rua, crianças com idades entre oito e 16 anos. Agora, muitos desses irmãos são mais velhos, nós chamamo-los de “deuses mais velhos”. Para os Five-Percenters, Harlem é Meca e Brooklyn é Medina. Basicamente, a The Five-Percent Nation começou quando Clarence Smith, ou Clarence 13X, estava na Nação do Islão sob a liderança de Malcolm X. Decidiu deixar o templo e começou a ensinar que o homem negro é deus. E levou isso para as ruas. Chamou-lhe “sabedoria suprema”, com essas 120 lições, que tu memorizas e aprendes a citar. Deu essa sabedoria às crianças que eram membros de gangues, e isso realmente ajudou a dar orientação a esses jovens. A escola destrói o apetite das pessoas pelo conhecimento. Tu não queres ler nada depois de leres esses livros que eles te deram. Tu ficas tipo, "Foda-se o livro", mas depois de seres estimulado, tu pensas, “Uau, a educação é realmente altamente, é altamente ler”. Foi isso que a The Five-Percent Nation fez por mim.»

Muito naturalmente foi POPA WU A 5% STORY a sua primeira experiência de fôlego em cinema, um documentário e uma aventura na mente de Popa Wu, um membro predominante da Five-Percent Nation e patriarca dos Wu-Tang Clan, o grupo de rap mais imbuído desse espírito. Documentário constituído por cabeças e corpos falantes e por imagens de arquivo foi, segundo Allah, gratificante de fazer pelo significado, pois conseguiu trabalhar com os seus Deuses, mas também desgastante, pelo tempo e pelas complicações de quem ainda é aprendiz de um ofício que não domina, mas que tem necessidade de se lançar a uma empresa épica. E de dentro dessas imagens e desse espírito recebeu como que um chamamento da realidade. Da sua realidade. Da sua pertença. Dos anos oitenta e do poder sedutor e genuíno das ruas. Da realidade vociferada pelos Wu-Tang ou pelo seu outro Deus, Nas - «One love, like Nas», afirmou rotundamente certo dia. One love define todo o seu trabalho até hoje, a procura do conhecimento, da sabedoria suprema, a fotografia e o cinema como um meio (medium, uma máquina incomensurável) irmão na captura da realidade e logo da sua elevação espiritual. A consciência de que tudo está ligado com tudo e todas as coisas são comunicantes. KA, que descobriu a fotografia pois um dia teve necessidade de oferecer um retrato a um membro dos Wu-Tang, GZA, vai unir essa técnica primordial com a sua posterior evolução pelo movimento (cinético, apenas se quisermos), ou seja, o cinema, e conceber, de um modo único e primeiro,  que tudo é uma e a mesma coisa. Todas as suas fotografias serão como filmes, com carradas de luz, movimento abissal e narrativas camaleónicas, e todos os seus filmes serão fotografias, carregados de retratos, memórias e atmosferas espectrais. Pode ser que à imagem dos fractais tudo seja uno e infinito por dentro e por fora do seu próprio mistério. Cada filme é a continuação do anterior, continua a dizer KA; se na sua disciplina de fotógrafo a exposição à luz se faz contínua, incessante, relacionada, a uma exposição sucede-se a seguinte até ao fim do rolo, igualmente no cinema um plano sucede ao outro e tem que falar com ele, etc… One love. Fotografia filmada? Fotografia filmada com som direto indireto? Importa captar esses príncipes e princesas, reis e rainhas, sem julgamentos, seja com que meio for, à luz justa e protetora. Acima de tudo importa captar. É o princípio básico e limite de Picasso, quando afirmou que mesmo preso continuaria a pintar, nem que fosse com merda a servir de tinta.




Field Niggas, um filme-memorial de 2015, estabelece, juntamente com Souls Against the Concrete, o livro de fotografias lançado em 2017, o apanhado das milhões de constelações com que ele interagiu entre a 125th Street e a Lexington Avenue, em Harlem, o seu espaço sacro. Documentário, ficção, fotografia, tanto Field como Souls o são, assim como as plangentes curtas-metragens anteriores – como Antonyms of Beauty ou Urban Rashomon – ou os retratos avulsos de um auto-considerado street photographer. Field será sempre relembrado, e revivido na memória, em grandes-planos, grandíssimos planos de rostos e de corpos inolvidáveis. É sintomático que muitas fotografias, que serão base para Souls, passem de mãos em mãos em Field, sendo Field e Souls uma e a mesma coisa. Todos estes filmes citados e outros, como aquela que considero a sua obra-total, Black Mother, de 2018, estão carregados de efeitos técnicos e de efeitos de retórica, como câmaras lentas, as pontas dos planos com fogo, as cores carregadas, etc. E o som, jamais sendo direto e batendo (sincronizando) com a imagem e com o ser-humano falante, é o mais direto dos sons que hoje em dia existe e também o mais íntimo, pois sendo abstrato e único, é o som de quem fala e ao mesmo tempo o som dos milhares de seres análogos aos que vemos, o som finalmente coletivo. É o sonho de Serguei Eisenstein e depois de Godard levado a um extremo prático redentor, da arte do cinema como arte privada e universal no mesmo fôlego, da arte de enfrentar o real e de o transcender. É KA que opera a sua pequena câmara, focando-se nas prostitutas, nos desistentes ou na família longínqua com todo o coração – e aqui a maneira terna e subtil como conversa aproxima-se do brasileiro Eduardo Coutinho, que tal como Liev Tolstói arranja sempre perdão para toda a gente, amando os policias como os ladrões – importando primeiro o seu corpo, as suas expressões marcadas e o infinitesimal, os seus movimentos, o seu real concreto; e depois vai gravar as palavras noutro lado, sem ser importante o sincronismo; e o verbo, liberto da redundância e das amarras da indústria do cinema, torna-se espírito, alma, fantasma.

Uma nova resolução das imagens, que incluem o som – resolução inaudita que nada tem que ver com a tecnologia utilizada, pois nem falamos de ultra HD (4k…6k…), mas sim de 1080 básicos; uma revolução, um vislumbre e uma epifania em desenvolvimento, a acontecer diante dos olhos num milagre bem concreto. Tal experiência só me tinha sido dada a ver, no mundo digital, no Cavalo Dinheiro, de Pedro Costa; as peles escuras, branquíssimas ou de tons indefiníveis dos protagonistas, os olhos gigantescos como crateras ou cegantes como estrelas, misturam-se com os néones e as diversas luzes da cidade, e tanta coisa de tanta composição apartada e de matérias opostas fundem-se ou comunicam-se profundamente, concorrendo para um mistério que só pode ser a base daquilo a que se chama experiência estética; e tal só é possível pois o cineasta acredita, faz de coração, de alma, algo que o exercício da análise não pode concluir. Poesia, agora sim, justificada; é a essa liberdade e ao mesmo tempo a essa complexidade que KA e Pedro Costa chegam; toda a primeira imagem, como toda a primeira aparência, é inundada por contrários, complementos, dialéticas, contradições; entenda-se poesia tanto como filiação a uma escritura como à pura pincelada plástica, logo metamorfoseando-se e atingindo as especificidades e as potências únicas do cinema, isto é, a sua poética mesma. Os filmes de KA são um embate violentíssimo com o concreto – tal como um Biggie Smalls enfrentou o seu puro presente e a sua tensão – e um enlevo de almas – o fluxo interior a brotar carradas de tons melódicos e de vísceras que só assim são descarregadas porque outra alma permitiu a revelação, longe da pressão cinematográfica regrada. Fotografias, de cada um em frente à câmara, e filme, movimento e som; ou som e movimento da memória, da alma, pura arte do retrato, e o cinematógrafo como incomensurável meio de fixar.

Black Mother é, segundo KA, partido em três trimestres, mais o nascimento, o que dá quatro partes – nove meses mais o nascimento. O primeiro trimestre funciona como uma introdução, pura etnografia afetuosa, retratos de fruta, de cocos, pessoas na rua, rituais… o segundo trimestre começa a descer sem apelo nem agravo, a cavar fundo, e surge o colonialismo, ódio encravado, clareamento da pele… no terceiro tudo se volve mais espiritual, com o funeral e os seus ritos cifrados… e depois, o nascimento. KA encontra na Jamaica um círculo de movimentação mais amplo, que serve eternos-retornos e concisões estratosféricas, explosivas, secretas, nunca dispersando ou, quando isso acontece, tudo logo conflui para a água, o Deus presente nesta obra ou nesta oração silenciosa que se volve absoluta. Uma oração por todos. E todos os formatos e diversos maquinismos são válidos, HD, super HD, película 16mm, HI-8 ultra caseiro, drones, estabilizadores… fotografia, cinematógrafo, e o que fica, a cada frame e no final, é um êxtase e um enlevo espiritual, One Love, como nos famosos versos de Nas, a aproximação justa, o reconhecimento mútuo, perfeito, aos seres e às coisas, visível e opaco. No final de Black Mother, entre o terceiro trimestre e o Nascimento, KA desliza do funeral para a barriga da grávida e depois do bebé nascido para uma capela, um movimento e um congelamento, um retrato, que abrange, silenciosa, indizível e delicadamente, o cósmico movimento da condição humana. Todos os trimestres e períodos mesclados. O pequeno e o grande, o estanque e o sónico, em convulsão e em silêncio.

 

José Oliveira, outubro de 2023

in: https://tribunadocinema.com/khalik-allah-no-turbilhao-das-imagens-notas-insuficientes-para-um-universo-de-pureza-complexa/