Hours and Hours – os filmes para televisão dos grandes mestres de Hollywood é um ciclo fundamental que a Cinemateca Portuguesa levará a cabo de 2 a 30 de dezembro próximos. Fundamental, sem dúvidas, pois permitirá percebermos o que foi outrora a produção televisiva americana, em comparação com os serviços online de streaming que hoje proliferam. Na “idade de ouro” do cinema americano – «Horas e horas de drama», escreveu o crítico Bill Krohn sobre a oferta televisiva que era disponibilizada pela televisão americana a partir de meados dos anos 50 –, grandes cineastas trabalharam para a televisão e, nesse contexto de produção, deixaram o seu cunho pessoalíssimo. Em muitos casos, rejuvenescendo mesmo o seu trabalho. Tudo isto ocorreu num período que foi praticamente até aos anos 70, apanhando a geração da Nova Hollywood.
Andy Rector, programador
americano a viver em Portugal, concebeu com a Cinemateca este longo ciclo, que
permitirá ao cinéfilo mais dedicado descobrir zonas menos iluminadas tanto da
carreira de grandes cineastas consensuais – John Ford, Samuel Fuller ou Orson
Welles – como de impagáveis tarefeiros da série-b – Phil Karlson, Stuart
Heisler ou Joseph H. Lewis – que encontraram no formato televisivo os meios e a
economia ideal de trabalho. “Tarefeiros” que tiveram assim oportunidade de
orquestrar uma reviravolta nas suas carreiras, levando a um vasto público
obsessões pessoais e grandes ideias temáticas e formais que poucos ainda
conheciam. Andy ainda não tinha nascido quando este segundo período dourado foi
possível, e começa por explicar a sua relação pessoal com estes telefilmes:
“Foram realizados e transmitidos principalmente entre 1954 e 1964. Não era o
género de coisas que fossem revisitadas e repetidas pela TV nos anos 80 e 90,
quando eu era criança. Com a exceção da série The Twilight Zone, que era exibida todos os anos numa maratona
televisiva, todo o dia e toda a noite, na véspera de Ano Novo. Tenho a certeza
de que nunca vi o episódio realizado por Jacques Tourneur, chamado Night Cal (1964, exibido no ciclo), mas
vi As Máscaras (1964, também no
ciclo), de Ida Lupino. Um episódio muito famoso. Para um adolescente americano
do final dos anos 80, era um padrão cultural sentir-se superior e ridicularizar
os filmes ou a TV dos anos 60 ou anteriores.”
Em comparação com a produção
televisiva dos dias de hoje, seja em canal aberto, seja nos serviços streaming, a ausência de personalidade
atual chega a ser chocante. Ao explorarmos os catálogos da maior parte das
operadoras, deparamos com padrões normativos que retiram a possibilidade de
exploração de novas formas e ideias. Contam-se pelos dedos de uma mão os cineastas
importantes que conseguem continuar livremente a experimentar nos serviços
pré-pagos. David Fincher, Martin Scorsese ou Michael Mann são cineastas
importantes que estão a fazer trabalhos com cunho pessoal num novo meio que
privilegia os conteúdos e os temas contemporâneos em detrimento das marcas
autorais. Não serão os únicos, mas, como veremos na Cinemateca, a abundância
pretérita é incomparável. Continuando com Lupino, uma realizadora pioneira no
contexto americano, Andy prossegue: “Quando vi a piada grotesca que está no
centro de As Máscaras, ri com
escárnio. Mais tarde, ao ver os filmes angustiantes de Lupino dos anos 50, e ao
ler sobre ela, não ri: percebi que As
Máscaras é um trabalho sério de Lupino, e podemos tentar mostrá-lo como
tal. Os seus filmes costumam ser sobre pessoas imutáveis forçadas a viver
vidas predestinadas, e esse telefilme tem que ver com isso... No seu trabalho,
Lupino parecia não ser capaz de se conciliar com a vida e a sociedade do seu
tempo.”
É fácil perceber que, na altura
da produção e exibição destes telefilmes, o autorismo e, em alguns casos, a
experimentação e pesquisa formal não foram entendidos por todos. Foi também um
dos segredos desses realizadores talentosos e inteligentes, uma das lições
essenciais dos clássicos: não chamar a atenção para o seu estilo e para os seus
interesses persistentes, daí as elipses narrativas e a concisão formal terem
atingido nesse período um dos seus apogeus. Veremos neste ciclo cineastas e
personalidades muito diferentes, modos de narrar diversos, trabalhos feitos
puramente em estúdio e westerns
filmados em campo aberto. The Brush Roper
(1955), realizado por Heisler para a série Screen
Directors Playhouse, oferece ao eterno secundário Walter Brennan um dos
seus melhores papéis, absolutamente nostálgico e sedento. A ternura de Frank
Borzage, com a câmara sempre perto do leito amoroso, junto das almofadas e dos
afetos, está intacta em A Ticket For
Thaddeus (1956). Orson Welles e a reportagem feérica, num inclassificável
tratado sobre o verdadeiro e o falso, antes de F for Fake, em The Basque
Country (1955), nunca exibido pela TV americana. Em The Honest Man (1956), Frank Tashlin urde uma série de peripécias descabeladas em torno de joias, a
honestidade e o poder da sedução, continuação intacta do seu interesse pela
dicotomia teatro/cinema e das respetivas distâncias e efeitos. A descida aos
infernos pela mão segura e frontal de Allan Dwan em High Air (1956), aquando da construção dos túneis para o metro de
Nova Iorque. Os eternos falsos culpados de Hitchcock e uma pedagogia final
desarmante em Bang! You’re Dead
(1961), para a sua famosíssima série Alfred
Hitchcock Presents. Enfim, outra preciosidade rara é Flashing Spikes (1962), de Ford, que perfaz a moral e o jogo de flashbacks de O Homem que Matou Liberty Valance.
Mesmo na altura em que os Cahiers du Cinéma inventaram a famosa
“teoria dos autores”, apelidando os artesãos clássicos de verdadeiros
originais, estes trabalhos continuaram a ser de difícil acesso fora do seu país
de origem. Daí que o espanto de Andy aquando da descoberta destes tesouros
enterrados seja potencialmente equiparável à que muitos espectadores poderão
ter quando descobrirem que, em menos de meia hora, surpresas incontáveis
estarão à sua espera: “Há cerca de 20 anos, o meu mentor e amigo Bill Krohn
pôs-me nas mãos uma VHS de Night Call e
disse-me: «Há muito mais de onde isso veio…» Disse ainda que não devíamos ser
preconceituosos com esses trabalhos para a TV, pois os grandes cineastas nunca
os trataram como enteados do cinema. Eles tratavam a TV como uma continuação do
seu cinema, com o mesmo nível de mestria e determinação, muitas vezes com os
mesmos colaboradores.” John Ford, a bíblia do cinema americano, foi sintomático
e lacónico sobre essa velha contenda, conta-nos: “Ford foi muito prático a respeito
da televisão. Abordou a questão como um homem livre, dizendo: «Há uma mão que
nos puxa para a produção de filmes bons, mas baratos, para a TV, e outra que
tenta fazer filmes de qualidade para cinema.» (...) «...sejamos realistas, The Rising Of The Moon foi filmado de
tal modo que podia ser usado como três histórias para TV. Nas longas-metragens,
a duração de uma imagem depende da história. Encontremos as histórias certas
para fazer, e depois decida-se a sua escala e potencial de mercado!»”
Por isso, outra das premissas
importantes deste ciclo é que cada bloco – alguns cineastas, como Jerry Lewis
ou Karlson, só terão direito a uma obra para TV – tecerá rimas e diálogos com
uma longa-metragem do mesmo autor. O que é bastante significativo, complexificando
e rasgando horizontes. Se pensarmos que
Hitchcock realizou Psico com a mesma equipa da sua série
televisiva e que levou a técnica multi-câmaras para o centro da sua mise-en-scène, aprofundando substância e
abismo, conclui-se que o seu cinema ficou a ganhar. O que parece o caso inverso
ao de Samuel Fuller. Na sinopse sobre Dogface
(1959), para o programa da Cinemateca, Andy escreve: “Dogface, produzido independentemente por Fuller como piloto para a
CBS, é uma obra plenamente Fulleriana:
a necessidade irrequieta de representar a sua versão da Segunda Guerra Mundial,
os duelos de acesos diálogos, os grandes-planos carregados com o pó e o suor
dos bombardeamentos, o uso de animais alegorizando a inocência e o
condicionamento, as minúcias de como as guerras são travadas e justificadas
pelos homens que as vivem. Dogface
foi rejeitado pela CBS. Fuller preferia o cinema: «O que descobri com a minha
incursão na televisão foi o quanto gostava de fazer filmes. Estava habituado a
ver as minhas personagens num grande ecrã.»” O que não impede que Dogface seja uma das obras máximas de
Fuller, com a mesma carga demencial das suas obras para cinema e uma
antecipação do polémico e cada vez mais urgente Cão Branco, alegoria terminal sobre o racismo e a inocência.
O critério das escolhas foi
plenamente sopesado e pensado, mesmo com a condicionante de não existirem boas
cópias de muitos telefilmes: “Eu diria que o critério foi escolher obras em que
o realizador esteve de alguma forma em harmonia com o seu material, tendo feito
um trabalho forte. Tive ainda em conta os seus prazeres e ressonâncias… dentro
e fora do cinema.” Claro que as escolhas de um programador são também pessoais,
e, assim, Andy reservou-se o direito de “proteger” alguns dos seus cineastas
prediletos: “Borzage fez apenas três episódios de TV; um deles, ambientado
durante a Guerra da Coreia, não tem o coração no lugar certo. Por isso, não o
vamos mostrar. Já os outros dois, The Day
I Met Caruso (1956) e A Ticket For
Thaddeus, são obras elevadas, intensas, maravilhosas.” E, importantíssimo,
a sempre preciosa missão de resgatar realizadores maravilhosos ainda não vistos
como tal: “A inclusão de Heisler, Karlson e Joseph H. Lewis no ciclo é uma
espécie de provocação, uma insistência minha na sua inclusão no cânone. Mas
isso é completamente incontroverso se observarmos o trabalho deles; são
cineastas inegavelmente significativos e distintos, até mesmo clássicos, e os
seus trabalhos para a TV são ricos.”
Andy não destaca nenhum filme em
particular, preferindo encarar o ciclo como um todo comunicante, resguardando
todas as declinações possíveis para cada realizador, todos os seus enigmas,
todas a portas de entrada, de saída e os corredores formais e narrativos entre
o pequeno e o grande ecrã. Daí a pertinência do ciclo: “Todos estes filmes são
joias imperdíveis. Há simples prazeres, mas também há coisas para aprender.
Todos somados, constituem uma montanha irrefutável de histórias. E não apenas
histórias, mas formas dinâmicas e artesanato dedicado. É importante ver estes
filmes hoje. São o oposto do alheamento narrativo atual. São incrivelmente
condensados, a antítese do carácter excessivamente longo, disperso,
monocromático e repetitivo das séries de TV e do cinema contemporâneos
(Netflix, etc.). Como todas as retrospetivas, é uma missão de resgate do que
foi perdido, esquecido ou roubado das nossas sensibilidades atuais.” É neste
ponto da conversa que o seu amor por Jerry Lewis se torna contagiante, falando animadamente
dos famosos shows de 24h produzidos e
supervisionados por Lewis, filantropia em estado puro, onde estranhos
convidados, provocações inauditas e interrupções súbitas fizeram Andy concluir
que Lewis “foi o Glauber Rocha da TV americana!”
Montar um ciclo deste género é
também uma aventura cinematográfica e detectivesca, e arranjar os filmes e as
cópias certas, localizá-los, prescindir de uns em favor de outros, pode demorar
longos meses. A deceção pode tomar conta da empreitada, a tarefa de trazer ao
de cima mundos inteiros, de descobrir ou redescobrir universos soterrados pode
ser penosa. Um trabalho que tem tanto de arqueologia como de resignação.
Arqueologia no sentido quase literal de desenterrar película ou vídeo.
Resignação pois algures no caminho se percebe que alguns filmes estão
irremediavelmente perdidos, enquanto outros poderão ser recuperados:
“Infelizmente, a disponibilidade destes telefilmes acabou por desempenhar um
papel muito importante nas escolhas. Cheguei a incluir na lista o episódio de The Lawman realizado por Heisler,
chamado Yawkey – um dos westerns mais compactos e económicos que
já vi –, mas a cópia em vídeo não era projetável.” Mas o impensável surgiu via eBay, quando mais filmes importantes
pareciam prestes a serem riscados: “A certa altura, planeei mostrar seis
episódios de Joseph H. Lewis. Um grande mestre dos movimentos de câmara, do
preto-e-branco e das filmagens em estúdio para cinema, e isso foi totalmente
evidenciado na TV. Uma espécie de Murnau da TV. A dado momento, parecia que eu
e a Cinemateca não conseguíamos encontrar uma única cópia boa para exibição.
Estava prestes a eliminá-lo completamente da lista. Depois, pensei: devia dar
uma última vista de olhos no eBay.
Estavam todos lá, em cópias de 16 mm, vendidos por alguém que disse serem da
coleção particular de Johnny Crawford. Johnny Crawford é o pequeno ator dessas
séries!”
O que faltou, o que foi
impossível exibir, e, em muitos casos, essa impossibilidade teve para Andy a
dor de uma unha arrancada, é tão importante como o que iremos ver. Podemos
mesmo arriscar que o ciclo constitui um ensaio para uma segunda parte, ainda maior,
que virá um dia. Com toda esta aturada pesquisa, Andy conseguiu mexer e limpar
um pouco do pó dos arquivos, muitos deles mortos, desprezados e ignorados.
Assim, terá renascido o interesse por estes pequenos-grandes filmes: “Ao fazer
este ciclo, encontrei algumas pessoas nos arquivos que estão interessadas. Mas
não estão no poder. São uma minoria. Este trabalho de recuperação não está na
moda. Em Los Angeles, a preservação do cinema clássico e mudo está a ser
completamente abandonada (é uma das razões pelas quais vim para Portugal; há
mais respeito, mais trabalho em torno da História do Cinema). Para levar a cabo
restauros deste género, seria necessária a colaboração de muitas instituições,
arquivos e museus de cinema.”
Durante o mês de dezembro, na
Cinemateca, Joseh H. Lewis terá a mesma altura de John Ford, os grandes e os
pequenos mestres serão tratados com a mesma acuidade, e o trabalho para
televisão irromperá como um Paraíso Perdido onde todas as possibilidades estiveram
em aberto. O pequeno formato será projetado nas telas dos grandes formatos, com
toda a importância política e, portanto, estética que tal gesto comporta. Um
acontecimento, repetimos.
José Oliveira, novembro de 2023
Versão ampliada de uma peça publicada no suplemento ípsilon do jornal Público a 1/12/2023: https://www.publico.pt/2023/11/30/culturaipsilon/noticia/acontecimento-cinemateca-filmes-televisao-mestres-hollywood-2071664