Khalik Allah consegue arrancar ao
real (pessoas e mundo, pessoas no seu mundo) o cinema e as memórias mais
eletrificantes do presente. Tudo irrompe fantasmagoria, desconexão, mas tudo é
presença absoluta. Eletrificante mas
igualmente o cinema mais terno, o retrato mais belo possível, numa troca justa,
de mãos vazias, por necessidade, questão existencial. Black Mother será
exibido pelo Cineclube Gardunha no dia 14 deste mês de outubro, no ciclo Janela
Para o Mundo e apropriadamente no Centro para as Migrações do Fundão.
Nascido em plenos anos oitenta do
século passado, nova-iorquino, assume o hip-hop como fonte primordial de
inspiração e de modo de fazer, essa forma violenta e pulsante de representação
propensa ao improviso e à irmandade, aproximando-se também do jazz, seu irmão.
Usar a câmara de filmar, de registar, como um instrumento, muitas vezes de
improviso, musical, como John Coltrane, disse KA um dia; ir além da forma,
mergulhar diretamente no conteúdo, disse também, e aí estamos na brutalidade e na
novidade que trouxe o hip-hop. De mãe jamaicana e pai iraniano, autodidata e
diletante, criado na dissociação The Five-Percent Nation, que é central
no seu percurso e que o mesmo KA definiu assim, belamente, deste modo: «The
Five-Percent Nation nasceu de pessoas que foram delinquentes de rua,
crianças com idades entre oito e 16 anos. Agora, muitos desses irmãos são mais
velhos, nós chamamo-los de “deuses mais velhos”. Para os Five-Percenters,
Harlem é Meca e Brooklyn é Medina. Basicamente, a The Five-Percent Nation
começou quando Clarence Smith, ou Clarence 13X, estava na Nação do Islão sob a
liderança de Malcolm X. Decidiu deixar o templo e começou a ensinar que o homem
negro é deus. E levou isso para as ruas. Chamou-lhe “sabedoria suprema”, com
essas 120 lições, que tu memorizas e aprendes a citar. Deu essa sabedoria às
crianças que eram membros de gangues, e isso realmente ajudou a dar orientação a
esses jovens. A escola destrói o apetite das pessoas pelo conhecimento. Tu não
queres ler nada depois de leres esses livros que eles te deram. Tu ficas tipo,
"Foda-se o livro", mas depois de seres estimulado, tu pensas, “Uau, a
educação é realmente altamente, é altamente ler”. Foi isso que a The
Five-Percent Nation fez por mim.»
Muito naturalmente foi POPA WU
A 5% STORY a sua primeira experiência de fôlego em cinema, um documentário
e uma aventura na mente de Popa Wu, um membro predominante da Five-Percent
Nation e patriarca dos Wu-Tang Clan, o grupo de rap mais imbuído desse
espírito. Documentário constituído por cabeças e corpos falantes e por imagens
de arquivo foi, segundo Allah, gratificante de fazer pelo significado, pois
conseguiu trabalhar com os seus Deuses, mas também desgastante, pelo tempo e
pelas complicações de quem ainda é aprendiz de um ofício que não domina, mas
que tem necessidade de se lançar a uma empresa épica. E de dentro dessas
imagens e desse espírito recebeu como que um chamamento da realidade. Da sua
realidade. Da sua pertença. Dos anos oitenta e do poder sedutor e genuíno das
ruas. Da realidade vociferada pelos Wu-Tang ou pelo seu outro Deus, Nas - «One
love, like Nas», afirmou rotundamente certo dia. One love define
todo o seu trabalho até hoje, a procura do conhecimento, da sabedoria suprema,
a fotografia e o cinema como um meio (medium, uma máquina
incomensurável) irmão na captura da realidade e logo da sua elevação
espiritual. A consciência de que tudo está ligado com tudo e todas as coisas
são comunicantes. KA, que descobriu a fotografia pois um dia teve necessidade
de oferecer um retrato a um membro dos Wu-Tang, GZA, vai unir essa técnica
primordial com a sua posterior evolução pelo movimento (cinético, apenas se
quisermos), ou seja, o cinema, e conceber, de um modo único e primeiro, que tudo é uma e a mesma coisa. Todas as suas
fotografias serão como filmes, com carradas de luz, movimento abissal e
narrativas camaleónicas, e todos os seus filmes serão fotografias, carregados
de retratos, memórias e atmosferas espectrais. Pode ser que à imagem dos
fractais tudo seja uno e infinito por dentro e por fora do seu próprio
mistério. Cada filme é a continuação do anterior, continua a dizer KA; se na
sua disciplina de fotógrafo a exposição à luz se faz contínua, incessante,
relacionada, a uma exposição sucede-se a seguinte até ao fim do rolo, igualmente
no cinema um plano sucede ao outro e tem que falar com ele, etc… One love. Fotografia
filmada? Fotografia filmada com som direto indireto? Importa captar
esses príncipes e princesas, reis e rainhas, sem julgamentos, seja com que meio
for, à luz justa e protetora. Acima de tudo importa captar. É o princípio
básico e limite de Picasso, quando afirmou que mesmo preso continuaria a
pintar, nem que fosse com merda a servir de tinta.
Field Niggas, um filme-memorial
de 2015, estabelece, juntamente com Souls Against the Concrete, o livro
de fotografias lançado em 2017, o apanhado das milhões de constelações com que
ele interagiu entre a 125th Street e a Lexington Avenue, em Harlem, o seu
espaço sacro. Documentário, ficção, fotografia, tanto Field como Souls
o são, assim como as plangentes curtas-metragens anteriores – como Antonyms
of Beauty ou Urban Rashomon – ou os retratos avulsos de um
auto-considerado street photographer. Field será sempre
relembrado, e revivido na memória, em grandes-planos, grandíssimos planos de
rostos e de corpos inolvidáveis. É sintomático que muitas fotografias, que
serão base para Souls, passem de mãos em mãos em Field, sendo Field
e Souls uma e a mesma coisa. Todos estes filmes citados e outros, como
aquela que considero a sua obra-total, Black Mother, de 2018, estão
carregados de efeitos técnicos e de efeitos de retórica, como câmaras lentas,
as pontas dos planos com fogo, as cores carregadas, etc. E o som, jamais sendo
direto e batendo (sincronizando) com a imagem e com o ser-humano falante,
é o mais direto dos sons que hoje em dia existe e também o mais íntimo, pois
sendo abstrato e único, é o som de quem fala e ao mesmo tempo o som dos
milhares de seres análogos aos que vemos, o som finalmente coletivo. É o sonho
de Serguei Eisenstein e depois de Godard levado a um extremo prático redentor,
da arte do cinema como arte privada e universal no mesmo fôlego, da arte de
enfrentar o real e de o transcender. É KA que opera a sua pequena câmara,
focando-se nas prostitutas, nos desistentes ou na família longínqua com
todo o coração – e aqui a maneira terna e subtil como conversa aproxima-se do
brasileiro Eduardo Coutinho, que tal como Liev Tolstói arranja sempre perdão
para toda a gente, amando os policias como os ladrões – importando primeiro o
seu corpo, as suas expressões marcadas e o infinitesimal, os seus movimentos, o
seu real concreto; e depois vai gravar as palavras noutro lado, sem ser
importante o sincronismo; e o verbo, liberto da redundância e das amarras da
indústria do cinema, torna-se espírito, alma, fantasma.
Uma nova resolução das imagens,
que incluem o som – resolução inaudita que nada tem que ver com a tecnologia
utilizada, pois nem falamos de ultra HD (4k…6k…), mas sim de 1080 básicos;
uma revolução, um vislumbre e uma epifania em desenvolvimento, a acontecer
diante dos olhos num milagre bem concreto. Tal experiência só me tinha sido dada
a ver, no mundo digital, no Cavalo Dinheiro, de Pedro Costa; as peles
escuras, branquíssimas ou de tons indefiníveis dos protagonistas, os olhos
gigantescos como crateras ou cegantes como estrelas, misturam-se com os néones e
as diversas luzes da cidade, e tanta coisa de tanta composição apartada e de
matérias opostas fundem-se ou comunicam-se profundamente, concorrendo para um
mistério que só pode ser a base daquilo a que se chama experiência estética; e
tal só é possível pois o cineasta acredita, faz de coração, de alma, algo que o
exercício da análise não pode concluir. Poesia, agora sim, justificada; é a
essa liberdade e ao mesmo tempo a essa complexidade que KA e Pedro Costa
chegam; toda a primeira imagem, como toda a primeira aparência, é inundada por
contrários, complementos, dialéticas, contradições; entenda-se poesia tanto
como filiação a uma escritura como à pura pincelada plástica, logo
metamorfoseando-se e atingindo as especificidades e as potências únicas do
cinema, isto é, a sua poética mesma. Os filmes de KA são um embate
violentíssimo com o concreto – tal como um Biggie Smalls enfrentou o seu puro
presente e a sua tensão – e um enlevo de almas – o fluxo interior a brotar
carradas de tons melódicos e de vísceras que só assim são descarregadas porque
outra alma permitiu a revelação, longe da pressão cinematográfica regrada. Fotografias,
de cada um em frente à câmara, e filme, movimento e som; ou som e movimento da
memória, da alma, pura arte do retrato, e o cinematógrafo como incomensurável
meio de fixar.
Black Mother é, segundo
KA, partido em três trimestres, mais o nascimento, o que dá quatro partes –
nove meses mais o nascimento. O primeiro trimestre funciona como uma
introdução, pura etnografia afetuosa, retratos de fruta, de cocos, pessoas na
rua, rituais… o segundo trimestre começa a descer sem apelo nem agravo, a cavar
fundo, e surge o colonialismo, ódio encravado, clareamento da pele… no terceiro
tudo se volve mais espiritual, com o funeral e os seus ritos cifrados… e
depois, o nascimento. KA encontra na Jamaica um círculo de movimentação mais
amplo, que serve eternos-retornos e concisões estratosféricas, explosivas,
secretas, nunca dispersando ou, quando isso acontece, tudo logo conflui para a
água, o Deus presente nesta obra ou nesta oração silenciosa que se volve
absoluta. Uma oração por todos. E todos os formatos e diversos maquinismos são
válidos, HD, super HD, película 16mm, HI-8 ultra caseiro, drones,
estabilizadores… fotografia, cinematógrafo, e o que fica, a cada frame e no
final, é um êxtase e um enlevo espiritual, One Love, como nos famosos
versos de Nas, a aproximação justa, o reconhecimento mútuo, perfeito, aos seres
e às coisas, visível e opaco. No final de Black Mother, entre o terceiro
trimestre e o Nascimento, KA desliza do funeral para a barriga da grávida e
depois do bebé nascido para uma capela, um movimento e um congelamento, um
retrato, que abrange, silenciosa, indizível e delicadamente, o cósmico
movimento da condição humana. Todos os trimestres e períodos mesclados. O
pequeno e o grande, o estanque e o sónico, em convulsão e em silêncio.
José Oliveira, outubro de 2023
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