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Por José Oliveira
NYO VWETA NAFTA
Obra coral, obra em mosaico e sinfónica, nunca se
deixando tomar por alguma atitude ou febre programática e aleatória– a forma e
a estrutura dissolvem-se constantemente no poder e na verdade dos corpos,
rostos, palavras, e sobretudo nas atitudes e vitalidade das personagens /
pessoas reais que se vão transmutando (e diluindo?) umas nas outras. Filme
mosaico sem resolução, sem fechamento, onde todos procuram alguma coisa que
embora se sinta perto se sente constantemente e em cada fôlego a grande
distância – uma esfinge?
E daí o portento e lógica natural dos planos-sequência
que encapsulam a poética do mundo, das cores, do ar, do peso da atmosfera,
ligando-os aos desejos e lutas puramente humanas dos protagonistas. Os seus
diálogos, que versam sobre mezinhas, digressões utilitárias ou mundanas,
burocracias e leis ou reivindicações, fundem-se com a pasta de cores e de
poeiras, retrato de um mundo e da sua gravidade, da sua graça, felicidade e e
libertação – até ao plano final, onde o lirismo, liberdade e contemplação são
as razões de ser de viver e as razões de existir do filme.
Ainda,
um Mark Twain apátrida? Aventuras e nostalgias sem filtros cinéfilos ou
literários, vistos pela primeira vez?
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O OURO E O MUNDO
O Ouro ou o Mundo?
Ficção ou documentário? O presente ou o intemporal? Moçambique ou África por
inteiro? O mais extraordinário no filme de Ico Costa é que tudo é ação,
contemplação e pensamento, no mesmo plano e tempo. Tudo é o contrário do
chamado slow cinema contemporâneo que, de Béla Tarr a Lisandro Alonso,
ignora os ritmos e as respirações do real e do natural para criar contemplação
estritamente artística. Mas em Ico Costa, e no trabalho extraordinário da luz e
dos movimentos de câmara de Raul Domingues (numa orgânica e omnívora pasta
colorida e ofuscada que o Mini-Dv usado nestes tempos torna mais denso e
palpável do que qualquer altíssima definição), o movimento acompanha sempre as
ações e as pulsões puramente humanas. Quando o ponto de vista é bem marcado –
seguindo Domingos nas suas caminhadas estafantes, nas entradas e saídas dos
buracos das minas ou das carrinhas ou Neusia na sua imobilidade fecunda e
transbordante – a câmara arranca furiosamente ou dolorosamente atrás do
primeiro e estabiliza-se pasmosamente e disponível para a segunda. Ou aqueles
momentos de descompressão em cima das árvores e perto das estradas com Domingos
e os seus amigos (Tom Sawyer e Huckleberry Finn renascidos num Novo Mundo), em
que tudo é acalmia, provisório e intemporal, ao mesmo tempo. Questão de física,
mas sobretudo genuinamente tautológica e passional.
Os
planos-sequência são espantosos porque substanciais, sem pinga de pirueta
estilística, e neles ficamos a saber tudo, porque a ver tudo de um país, de uma
política, de uma economia, de uma poética; vemos passado e presente. A luz que
pode entrar por todas as fendas da objetiva e o Outro, o próximo, o semelhante
que passa ao lado. Sabemos tanto a visualizar e a escutar o pulsar simples e
complexo do mundo, como naquele acutilante diálogo que de uma vez, e pela
calada da noite, arrasa o modo de vida português e Ocidental – tanto os
planos-sequência como esse diálogo (e outros) nos revelam de uma felicidade
dura, mas potencialmente felicidade plena, ao contrário do engano das rotinas
estafantes e desesperadas do dia-a-dia dos países ditos civilizados ou ricos. O
poder documental desta posta-em-cena, desta realização significante a cada par
e a cada passo, tem a ver com isso: tanto o que é dito como o que é visto fazem
parte da visualização e compreensão de um mundo e dos seus sentimentos e
matérias que é exclusivamente da relação única que o cinema pode negociar, e
por vezes (nos milagres como este) concretizar, com a realidade.
Quando a câmara
estagna, impassível, para vermos a multidão anónima e toda uma grande gesta e
uma grande parte de uma civilização a confundir-se, em massa e na massa natural,
esse também é um ponto de vista clínico e limpo: eis um modo de caminhar, de
sentir, de viver, arfar, que urge ser revisto, visto pela primeira vez, de uma
maneira e de uma forma o mais pura possível, longe das convenções da televisão,
das notícias em redes sociais ou do documentário carregados de ideologias
viciadas. Quando os diálogos da juventude são mundanos, brutos, simples ou
simplistas, tudo é justo porque fresco, espontâneo ou intempestivo, alinhado
entre os dois mundos propulsores: quem está por detrás e quem está à frente da
câmara. São palavras prontas a serem impressas num diário de preces e de
silêncios; dos fundos das almas. E quando parece que as coisas vão longe
demais, como na cena de sexo à noite, cai o pano no momento proibido, abjeto,
exato, e o opaco é o privado de cada um que não permite a entrada ao cinema. Os
limites da exposição e do intimismo.
Tudo o que parece
ficção, inventado, só pode ser real, como a barriga da grávida não deixa marcas
para dúvidas; e o documento está impregnado, conquistado e ludibriado por mil
fontes jorrantes de histórias, estórias, de desejos básicos, instintos
primitivos ou de imaginação fabulosa do arco-da-velha. E o planante plano final
é tudo: O Ouro e o Mundo, Ficção e Documentário, O presente e o Intemporal:
exatos, misteriosos e fugidios, morais e contraditórios. Com todo o movimento
da vida, toda a ação, pensamento e contemplação. Ficamos a saber muitas coisas
de uma nação e de seres que de tão distantes se transformam em nós, no outro em
qualquer parte da terra. Mas, no princípio como no fim, estamos perante um
pequeno (e incomensurável) conto griffithiano de orfandades,
sacrifícios, redenções e também grandes esperanças. Precioso gesto de humildade
e de ousadia.
[folha de sala do Cineclube Gardunha - 22/04/2025]