quarta-feira, 23 de abril de 2025

2 filmes de Ico Costa

 


Por José Oliveira

 

NYO VWETA NAFTA

 

NYO VWETA NAFTA são 22 minutos em película granulosa onde Ico Costa encerra e deixa em aberto para todos os lados um retrato de Moçambique e das suas diversas gentes, em diferentes idades e posições sociais, morais, com certeza espirituais; retrato de um país e das pessoas nele em uníssono, incluindo todos os augúrios e ruturas em causa. Arte vibrante do retrato, da tentativa de fixação de algo esfuziante, convulso, víscero – não importa se demasiado belo ou feio, bom ou mau, estamos para lá ou para cá dessas considerações puramente convencionais – que, nas cores e na frontalidade e na fome de apreensão, poderemos comparar aos grandes retratistas sociais e humanos - de Robert Frank a Charles Burnett, na fotografia ou no cinema.

Obra coral, obra em mosaico e sinfónica, nunca se deixando tomar por alguma atitude ou febre programática e aleatória– a forma e a estrutura dissolvem-se constantemente no poder e na verdade dos corpos, rostos, palavras, e sobretudo nas atitudes e vitalidade das personagens / pessoas reais que se vão transmutando (e diluindo?) umas nas outras. Filme mosaico sem resolução, sem fechamento, onde todos procuram alguma coisa que embora se sinta perto se sente constantemente e em cada fôlego a grande distância – uma esfinge?

E daí o portento e lógica natural dos planos-sequência que encapsulam a poética do mundo, das cores, do ar, do peso da atmosfera, ligando-os aos desejos e lutas puramente humanas dos protagonistas. Os seus diálogos, que versam sobre mezinhas, digressões utilitárias ou mundanas, burocracias e leis ou reivindicações, fundem-se com a pasta de cores e de poeiras, retrato de um mundo e da sua gravidade, da sua graça, felicidade e e libertação – até ao plano final, onde o lirismo, liberdade e contemplação são as razões de ser de viver e as razões de existir do filme.

Ainda, um Mark Twain apátrida? Aventuras e nostalgias sem filtros cinéfilos ou literários, vistos pela primeira vez?

 

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O OURO E O MUNDO

O Ouro ou o Mundo? Ficção ou documentário? O presente ou o intemporal? Moçambique ou África por inteiro? O mais extraordinário no filme de Ico Costa é que tudo é ação, contemplação e pensamento, no mesmo plano e tempo. Tudo é o contrário do chamado slow cinema contemporâneo que, de Béla Tarr a Lisandro Alonso, ignora os ritmos e as respirações do real e do natural para criar contemplação estritamente artística. Mas em Ico Costa, e no trabalho extraordinário da luz e dos movimentos de câmara de Raul Domingues (numa orgânica e omnívora pasta colorida e ofuscada que o Mini-Dv usado nestes tempos torna mais denso e palpável do que qualquer altíssima definição), o movimento acompanha sempre as ações e as pulsões puramente humanas. Quando o ponto de vista é bem marcado – seguindo Domingos nas suas caminhadas estafantes, nas entradas e saídas dos buracos das minas ou das carrinhas ou Neusia na sua imobilidade fecunda e transbordante – a câmara arranca furiosamente ou dolorosamente atrás do primeiro e estabiliza-se pasmosamente e disponível para a segunda. Ou aqueles momentos de descompressão em cima das árvores e perto das estradas com Domingos e os seus amigos (Tom Sawyer e Huckleberry Finn renascidos num Novo Mundo), em que tudo é acalmia, provisório e intemporal, ao mesmo tempo. Questão de física, mas sobretudo genuinamente tautológica e passional.

Os planos-sequência são espantosos porque substanciais, sem pinga de pirueta estilística, e neles ficamos a saber tudo, porque a ver tudo de um país, de uma política, de uma economia, de uma poética; vemos passado e presente. A luz que pode entrar por todas as fendas da objetiva e o Outro, o próximo, o semelhante que passa ao lado. Sabemos tanto a visualizar e a escutar o pulsar simples e complexo do mundo, como naquele acutilante diálogo que de uma vez, e pela calada da noite, arrasa o modo de vida português e Ocidental – tanto os planos-sequência como esse diálogo (e outros) nos revelam de uma felicidade dura, mas potencialmente felicidade plena, ao contrário do engano das rotinas estafantes e desesperadas do dia-a-dia dos países ditos civilizados ou ricos. O poder documental desta posta-em-cena, desta realização significante a cada par e a cada passo, tem a ver com isso: tanto o que é dito como o que é visto fazem parte da visualização e compreensão de um mundo e dos seus sentimentos e matérias que é exclusivamente da relação única que o cinema pode negociar, e por vezes (nos milagres como este) concretizar, com a realidade.

Quando a câmara estagna, impassível, para vermos a multidão anónima e toda uma grande gesta e uma grande parte de uma civilização a confundir-se, em massa e na massa natural, esse também é um ponto de vista clínico e limpo: eis um modo de caminhar, de sentir, de viver, arfar, que urge ser revisto, visto pela primeira vez, de uma maneira e de uma forma o mais pura possível, longe das convenções da televisão, das notícias em redes sociais ou do documentário carregados de ideologias viciadas. Quando os diálogos da juventude são mundanos, brutos, simples ou simplistas, tudo é justo porque fresco, espontâneo ou intempestivo, alinhado entre os dois mundos propulsores: quem está por detrás e quem está à frente da câmara. São palavras prontas a serem impressas num diário de preces e de silêncios; dos fundos das almas. E quando parece que as coisas vão longe demais, como na cena de sexo à noite, cai o pano no momento proibido, abjeto, exato, e o opaco é o privado de cada um que não permite a entrada ao cinema. Os limites da exposição e do intimismo.

Tudo o que parece ficção, inventado, só pode ser real, como a barriga da grávida não deixa marcas para dúvidas; e o documento está impregnado, conquistado e ludibriado por mil fontes jorrantes de histórias, estórias, de desejos básicos, instintos primitivos ou de imaginação fabulosa do arco-da-velha. E o planante plano final é tudo: O Ouro e o Mundo, Ficção e Documentário, O presente e o Intemporal: exatos, misteriosos e fugidios, morais e contraditórios. Com todo o movimento da vida, toda a ação, pensamento e contemplação. Ficamos a saber muitas coisas de uma nação e de seres que de tão distantes se transformam em nós, no outro em qualquer parte da terra. Mas, no princípio como no fim, estamos perante um pequeno (e incomensurável) conto griffithiano de orfandades, sacrifícios, redenções e também grandes esperanças. Precioso gesto de humildade e de ousadia.


[folha de sala do Cineclube Gardunha - 22/04/2025]

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