quinta-feira, 23 de outubro de 2025



 


The Smashing Machine, de Benny Safdie, 2025


Nunca fui grande apreciador do cinema dos irmãos Safdie (Benny e Josh) que agora apresentam as suas primeiras obras a solo. Mistura caótica da visceralidade e da chispa na primeira pessoa do cinema de John Cassavetes e de Martin Scorsese, todos esses truques de câmara e de ambiências carregadas sempre me soaram forçados, escolares e falsamente anárquicos – pareceram-me sempre bem-comportados e nada radicais. E talvez por isso a sinceridade e o olhar desnudado e recém-nascido de Benny Safdie sobre as almas acossadas (e penadas, condenadas, em alguns momentos) que perpassam The Smashing Machine me parece puro, mesmo com todos os filtros que sabemos lá estarem.

O que mais me intriga e comove é que é um filme pequenino sobre corpos gigantes, sobre forças mastodônticas, pressões e tensões esmagadoras, nervos para lá da flor da pele, manipulações e vícios terminais. É um conto de câmara, como se costuma dizer, ou seja, encontros e embates de almas em espaços concêntricos, enclausurados, privados, próximo do teatro clássico no sentido de palco para conversas e libertação de tensões primárias, e é bruto e belo nessa disposição de forças da natureza que se abrem, se expõe, rasgando o mais pequenino e infinitesimal organismo que está dentro do seu ser – as forças colossais dos corpos de Dwayne Johnson e dos outros lutadores, as energias animalescas da mulher entre os homens (extraordinária Emily Blunt) conectam-se com os não-ditos mais profundos do espírito e da matéria humana; o maior e o mais pequeno na mesma rotação e em marcha para uma mesma fonte comum e vital, como na filosofia Tao.

Mas em The Smashing Machine não respiramos no ritmo e nos aparelhos (formais, digestivos, amplamente biológicos) de Cassavetes ou de Scorsese, pois, e apesar das terríveis lutas do casal (mas também por causa delas), tudo flui sobre o véu, a compreensão, a disponibilidade, o amor e a magia de uma família de ternura e de visão do mundo que vai desde Frank Borzage ao Stallone / John G. Avildsen da saga Rocky. Toda a educação superior e brutalmente franca do Mark Kerr de Johnson e dos seus parceiros é disso exemplo e um anacronismo neste mundo frio e indiferente, todo o amparo da máquina de filmar (mais parece uma mão a afagar um rosto dorido) e do risco e proteção das elipses (por exemplo, quando não vemos o terrível desabar caseiro de Kerr que o leva quase à morte, e que no documentário de John Hyams sobre Kerr tem um impacto indizível), ou mesmo no desvio da lente sobre golpes fatais e feios no ringue, e que é novamente antítese do documentário de Hyams, em que a forma de filmar a luta é sem dúvida da ordem etnográfica e do documento detalhado e preciso.

Mas o que mais me leva para os terrenos de Borzage, de Rocky, ou mesmo de Frank Capra, ou devo dizer os firmamentos, os céus, os olimpos, é toda a aura angelical dos seres tão extremamente brutos como extremamente frágeis que parecem não ter lugar num universo onde a corrupção clama a todas as horas. Aura angelical longe de simbologias cristãs ou mesmo de antropomorfismos heroicos, mas antes quase invisivelmente planante em seres, crianças, indivíduos, adultos forçados e condenados pela perpetuação do coração que trazem do berço – como nos filmes noirs ou em inteligentes fábulas infantis, os protagonistas têm o destino traçado porque a sua morfologia corporal e interior não se coaduna com o meio e o tempo que os envolve e devora. Embasbacante é a extrema inocência, candura, canto de cisne, jardim do Éden, das cenas da feira popular em que um gigante monta nos brinquedos dos petizes e onde uma menina que se quer forçar a ser Senhora forte se submete à gravidade do Cosmos, em manobras proibidas e fora de tempo e contexto.

Foi preciso um dos Safdie deixar a criatividadezinha formulaica e se submeter à extrema realidade, ao vórtice, sentir chão, passado, dor, para começar a ver e começar a perceber que com algumas coisas não se brincam, sobretudo com aquelas que por si só já estão encantadas. No meio do turbilhão e do horror com que parece ser tecido e escancarado The Smashing Machine, o que leva muitos a virarem a cara nos ringues e no espaço privado da Casa, o que me fica, para sempre, é um enlevo de delicadeza e de compreensão (ou pelo menos de tentativa) pelo incompreensível e pelo opaco – o que leva tipos tão porreiros a desfazerem caras? O que leva aquela menina que ama genuinamente (vê-se bem nos olhos e na temperatura geral) a querer ser um cliché ambulante? Tudo isso e a forma como Benny sai de todos os clichés e ouve o ritmo do coração, que está tão presente na banda-som como as baladas de época que não datam o filme mas o colocam intemporal, tal como a ordem e o modo de toque aos sentimentos. 7th Heaven, The Shining Hour... Little Man, What Now? Destes modos Borzageanos também se poderia chamar este filme.

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