sexta-feira, 18 de julho de 2008

CHABROL

http://www.revistapaisa.com.br/julho08/garotadividida.htm

(texto meu na Paisà)


Se no seu último filme, L' Ivresse du pouvoir, Claude Chabrol segui uma magistrada, Isabelle Huppert, na sua investigação e cruzada pessoal a uma grande corporação, fixando-se assim o cineasta na desmontagem do poder e das suas utilizações e consequências – em terreno de investigação criminal portanto – nada mais apropriado a alguém que sempre se inseriu no eixo Hitchcock / Lang, na questão das aparências e do questionamento de todas as verdades.
O “Ivresse” do título, na sua significação irónica e subversiva, sublinhava ainda mais o olhar cínico de Chabrol sobre o mundo em questão.
Neste seu novo filme, La Fille coupée en deux, o francês parece dar uma reviravolta completa em relação à obra anterior. E se a história de um triangulo amoroso entre uma apresentadora da meteorologia de uma cadeia televisiva, um escritor em boa cotação e um arrogante jovem que vive da fortuna do seu falecido pai, parece não deixar margem para duvidas, voltamos no entanto a estar, claramente, em terreno familiar.
Se de facto a construção das personagens, opostas, sui generis e em certa medida tocadas pela loucura, bem como um paroxismo de tom, que desembocará num final tão negro como ilusório, parece derivar do cinema de François Truffat, e das suas investidas por estes dispositivos, o que voltamos a ter, é sim, um complexo olhar sobre pessoas de algum modo relevantes na sociedade e, fundamentalmente, sobre as máscaras e flutuações das suas decisões e comportamentos.

Gabrielle (Ludivine Sagnier controlada com mão de mestre) é a jovem atraente que trabalha num estúdio televisivo, a tal rapariga que vai ser cortada em dois.
Tudo muito simples e sem floreados e tudo muito complexo. Depois de no apresentar à personagem do escritor Charles Denis, bela casa, relação aparentemente estável, vida sem problemas, entramos pelo estúdio adentro.
Previsão do tempo findada, corte para a sala de make up, onde acontece o inevitável encontro entre o escritor que se prepara para falar do seu livro e a jovem que quer sair rapidamente do local. Ela não o quer incomodar, ele insiste para ela esperar. Acaba o programa e encontram-se num bar, dá-se a troca de olhares, voltarão a encontrar-se no local onde a mão dela vende livros. Vai-se tornando bem visível que ela está apaixonada e que o consagrado escritor não diz que não.
Neste entretanto, somos introduzidos a um jovem convencido, Paul Gaudens, dono de uma fortuna incalculável, do tipo que não tem problemas em oferecer dinheiro seja pelo que for e seja a quem for.

Começa o segundo jogo de sedução, e o mais ambíguo e perigoso. E se porventura nunca saberemos ao longo do filme a verdadeira dimensão do amor do escritor pela apresentadora, ele que a diz amar incondicionalmente mas que não esboça uma única atitude para se desfazer da sua mulher, também dificilmente saberemos a verdadeira razão pela qual Gabrielle disse o seu sim ao casamento com o jovem Paul.
Depois de confirmado o acto religioso, a vida em casal não vai durar muito, e vai ser, sobretudo, marcada pelo mal-estar, pelos disfarces e por um certo amour fou. Charles, o literato e o mais articulado dos três, ouve a notícia do casamento pela rádio e a sua vida continuará a mesma – jogo de disfarces com a sua mulher, sucesso a nível profissional.
E quando a ruptura do casal se torna irreparável, voltando a entrar em cena o terceiro vértice da história, o desfecho entrará nos altos da tragédia.
E se todas estas sucessões, e muitas mais coisas se sucedem ao longo da trama – entre elas umas admiráveis e decisivas cenas em Lisboa – são de ordem operática, a forma como a mise en scene de Chabrol trabalha e orquestra a teia de relações é absolutamente cirúrgica, cortante e sem qualquer vislumbre de enfeite.

Uma dramaturgia em tons quase estéreis – e neste particular o trabalho com o director de fotografia Eduardo Serra tem-se revelado importante – um quase esbatimento cromático fundamental para o universo tratado.
Ou seja, se narrativamente a ambiguidade e os jogos de espelhos e mentiras puxam Chabrol para onde sempre esteve, é na realização que a lição se torna radical, sem meias medidas, e, importantíssimo, falsamente funcional, mas sim de uma ferocidade intransigente.
Isto pois corre a ideia, entre vários sectores, que Chabrol se tornou, ao longo da sua enorme carreira, num mero ilustrador, com maiores ou menores fulgores, de teias policiais sobre os mecanismos do poder e da corrupção.
Funcionalismos indistintos é coisa que é contrariada a todo o momento, e, se o centro fílmico é o jogo de ilusões, dos falsos sentimentos e dos interesses, isto só volta a ser essencial devido ao entendimento e saber formal e estético do cinema de Chabrol, arte sem herdeiros e arte dificílima de ser atingida neste grau de plenitude.
Aula magistral de decupage, ou seja, o que a câmara varre no instante do acção e do corta, a atenção dada ao que está em campo e ao que de fora ficou, bem como lição de montagem, ela que confere a perfeita ordenação do todo fílmico e o tempo preciso a cada plano.

Tempo que nunca é demais nem de menos, blocos de tempo/duração que contém em si a tensão e materialidade essencial, elidindo deste modo qualquer resquício de inutilidade estética/narrativa.
È neste investimento sobre a linguagem cinematográfica que simultaneamente Chabrol expõe a sua concepção do cinematógrafo, confundindo ao mesmo tempo uma boa parte que o julga próximo do televisivo, pois, na sua dureza (apetece dizer Languiana) o filme não deixa de ser, claramente, reaccionário e puro.
Reaccionário pois não acredita em novos riquísmos contemporâneos ou no que está em voga, puro pois se nos desligarmos das tendências actuais e dos novos rumos da imagem-movimento, dificilmente não perceberemos que a empreitada do francês nada mais é do que o aproveitamento pleno das essencialidades básicas, e logo primordiais, do cinema
Se ainda é possível crermos na célebre máxima de que a montagem e decupage são o exclusivo do cinema, então, nada melhor do que a mão clínica de Chabrol para as coisas voltarem a um certo lugar.

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