segunda-feira, 31 de maio de 2010

There’s something in the act of “making” cinema that I don’t have: the desire to impose oneself. Not out of virtue but out of the inability to bet on oneself, to believe in oneself. I believed in my destiny, a kind of pale star, but I didn’t believe in me. As a passeur I stayed in the middle of the fjord, waiting for one of the banks to call me, or to take me by the hand, and since that never happened I began to send little messages, both written and oral, giving news from one bank to the other without myself belonging to either of them. I wasn’t on the side of the normal people who laughingly consume movies, nor was I on the side of the specialists, of the doers, the artists, whose experience will end up proving that they too are very normal, which is to say that there isn’t much point in idealizing them.

I stayed in the middle of the fjord so long that I ended up–it’s happening to me today–scheming, making up part of the landscape, like a rather dignified scarecrow or a modern art statue. I waited patiently for someone to see me, and since I was incapable of making myself seen, I waited for a few to venture over to my side, the side of cinema, which is the only one in which I can exist favorably, and as soon as they showed up I over whelmed them with all that I had never been able to tell anyone. I never had to produce evidence of my existence or of my value because the key to my existence was under the watch of the cinematic house of mirrors, with a prisoner for a father, and my value was what my mother gave me at my birth. What value? Zero value, simply that I exist.

Serge Daney, obrigado, muito obrigado.

quarta-feira, 26 de maio de 2010



Acto de revelação. A medida e o ser do travelling em Akerman, tal como o plano fixo, é o do redescobrimento do homem e da sua grandeza, por inteiro, esse gesto de dar claramente a ver o que já pensávamos não interessar, o que já tantas vezes olhamos que já nada distinguimos. O Homem, o que remete para o fundo o contexto, o espaço, as datas. A câmara de Akerman só nos cura dessa patologia dos temas e dos debates, de “um tempo”, entregando-nos uma espécie de eternidade, de suspensão cósmica, de força e de fragilidade. Uma questão de integridade, de planos e não de imagens. O resto é saber filmar, estar à altura de.

domingo, 23 de maio de 2010


Ainda mais estilhaçado, sujo, porco, anarquista e amador do que o filme de Pennebaker para Dylan é o “Cocksucker Blues” – de Robert Frank sobre o universo dos Rolling Stone's.

Lá dentro parece não se dizer nada que interesse por ai além, há sexo, putas, drogas de vários tipos, delírios, muita obscenidade e até desejo de choque, um negativo de “Don''t Look Back”? nada disso, não perpassa por ali réstia de promoção, de publicidade, de deslumbramento pelo universo das estrelas. Carne, ossos e desejos, muitos desejos, ao invés da habitual intocabilidade e sacralidade. Aqui como ali, temos é um portentoso desejo de registo de um modo de viver e de criar, o que é, ou deveria ser, a mesma coisa. Um camaleonismo em relação ao fundo.
O grande rasgo do filme, o espelho que corta todos os jogos de espelhos e distorções: somos colocados no interior e vórtice desse mundo “exclusivo” e o que acontece é um processo progressivo de descarnação e humanidade, em que acedemos à fragilidade, solidão e pulsões recônditas do que julgávamos inacessível.
O alcançar de uma imagem una no meio da multiplicidade e dilaceração de imagens, ou vice-versa, é também essa a densidade e complexificação.
Passeia-se por lá Andy Warhol, é milagre de sentido, esse desvendar de sensibilidade e de exposição, esse gesto de apontar a câmara de frente e deixar correr, sem premeditação, só depois dele pôde ser visto e arriscado.
Porque trata-se mesmo é de captar um universo “aparte”, um microcosmos outro com os seus gestos e meios, independente e libertário. E o que fascina é que a missão de Frank, como a de Pennebaker, é agarrar justamente isso, fazer disso o centro e razão de ser do filme, nada mais. Por aqui parece haver pelo menos sombra de dispositivo ou de "conceito", ou seja, é o operador de câmara que aparece, é o homem do som, são elas e eles que se dirigem à câmara e ao microfone, filmagens dentro da filmagem, enfim, uma maior consciência. Mas a coisa vacila e a certa altura não sabemos é quem são os mais malucos, se os Stones, se o cineasta e a sua equipa. Frank parece um desprendido demiurgo, também ele sobre o efeito voraz e alucinante da coca, tudo o que está lá, que rodeia os Stones e o resto, cada pessoa, cada objecto e cada ambiente parece interessar-lhe por inteiro, espécie de Cecil B. de Mille do rock com a atitude, o comportamento e a responsabilidade de um outlaw romântico e delicado.

Temos uma experiência, sentimo-nos testemunhas e dentro de alguma coisa, é por isso que a pele arrepia e os olhos estão constantemente abertos numa curiosidade vertiginosa. Porque assim e com este fogo alastrador só existiu desta vez.


Televisão impossível, ausência de uniformidade e puritanismo. Anti making-of. “Cocksucker Blues”, objecto de cinema.

quinta-feira, 20 de maio de 2010


«Se eu quero saber de alguma coisa eu não vou procurar na revista Time, ou vou ler a Newsweek ou qualquer outra revista do tipo. Elas têm muito a perder para publicarem a verdade. - Você sabe disso. -Que tipo de verdades estão a deixar de fora?»

Bob Dylan, no “Don''t Look Back” que D.A. Pennebaker fez em 1967.


Gosto de variadíssimas coisas no filme de Pennebacker e gosto de poder lembrar-me delas. Gosto que não haja “espectáculo” nem “magia” e gosto do anti-vedetismo de Dylan. Do seu laconismo que só por má vontade se pode confundir com pose. Que por uma vez não haja sombra de sexo, das drogas, das mulheres fatais ou das bebedeiras e que o filme nos deixe ficar com um artista, que antes disso é um homem, e com tudo o que existe à sua volta. Gosto mesmo muito de achar que não se trata de um "filme de música" (no sentido de filme-concerto e tudo o resto) mas sobre “o que” e “quem” está por detrás dela. Que exista assim um olhar flutuante e conciso que vai dos corredores aos camarins, da falsidade de certos elogios até ao êxtase do fãs, dos percursos de carro até aos momentos de deleite; mas um olhar pragmático e devorador (sem olhar para trás, precisamente) que faz com que apesar de tanto movimento e supostos pontos de vista, pareça ser um plano sequência de hora e meia, onde o conceito de “dispositivo” ou “programa” é coisa para caixote de lixo. Gosto mesmo dessa granulação que a película ostenta e desse lado manual e amador que hoje em dia só existe como estilismo e impressionismo. Gosto e acho enigmático o modo como também é sobretudo um registo da música que geralmente não sai cá para fora – a criação, os ensaios, os experimentos, as dúvidas, os falhanços – e como depois tudo isso vai ser percepcionado a uma nova luz aquando já no palco. Gosto da ausência de contra-campos. E a sequência que me rasga: o repórter africano a perguntar a Dylan se aceita responder a certas questões, e, quando a curiosidade das respostas aceites está no auge e o gravador ligado…pin, um fabuloso corte para Dylan e a sua guitarra no meio dos negros, num qualquer descampado. É preciso muito para chegar a isto. Cortar. Montar.

E só para me contradizer um bocadinho, só um bocadinho, curto muito, mesmo muito, a rapariga que está sentada e a fumar um cigarro na cena em que Dylan discute com o jornalista da Times. De quem se trata nem sei, mas acho que qualquer tipo de justificação é absolutamente desnecessária, basta ver…

E sei que foi a frase em epígrafe que me fez procurar o filme; sei que ela me diz o mesmo que Serge Daney me disse sobre os filmes que nos vêem crescer, que nos ensinam a andar e a estar, que nos olham, que sabem muito mais sobre nós do que nós sobre eles. “Se queres saber o que é o cinema e uma verdade, ou a música, ou a pintura…então, meu amigo, sabes o que tens a fazer e onde ir procurar.” E estamos conversados…






- O que impressiona logo desde o início, e surge como “justiça poética” inerente ao filme, é como tudo nele se adequa às reflexões e aos escritos de João Mário Grilo sobre cinema. “O Processo do Rei” é um fruto da não ilusão, da solidão, de uma verdade estética e ética, do enquadramento e da compreensão da História e dos meios fílmicos. Todas as variadíssimas poéticas que o atravessam – a fulcralidade do fora de campo e dos ruídos, a composição dos elementos no quadro, toda a conjugação do movimento e do peso interior à cena, etc. – são por uma vez da ordem da simplicidade e da subtileza, como do imenso respeito e investimento na violência e doçura que as formas representam. Processo em ebulição pacificada, nessa sempre abismal e feérica luta entre dinheiro e estética, desejo e materialidade, impossibilidade e amor (palavra obviamente desusada e ridícula quando utilizada no cinema como cultura), encontra então um idioma próprio que o desmarca para lá de todas as referências, mesmo as reconhecidas.

- E toda esta precisão de esteta, erigida num dispositivo cerrado que se poderia nomear de “Bressoniano”, é o correlato e chegada a uma pura libertação que eleva o olhar, vezes sem conta, ao sublime, emancipando-se assim dessa terrível legislação dos planos e da igualdade, para atingir alturas e um estado de sereníssima e imperturbável inocência que igualmente só pode ter a ver com essa ontologia original que nasceu com os Lumière (ou Méliès, é exactamente a mesma coisa). O espanto e a sublimação perante o mundo e os seus homens, tudo enformado numa beleza pictórica extrema que jamais se aproxima de qualquer tipo de esteticismo por esteticismo, muito menos decorativismo, antes um enaltecimento e reconhecimento do tal génio da natureza e da sua condição primordial à arte. Da cerração e do fragmento à simplicidade e ao primitivismo.

- “O futuro é uma forma de se conhecer o passado” – João Mário Grilo

- Relato e reflexão de uma crise da história Portuguesa, de uma crise de sucessão, do humano e da civilização, de maquinações de corte. Voltando a Bresson, muito dificilmente poderemos deixar de lembrar e enunciar sentidos com o primordial e a alguns níveis matricial, “O Processo de Joana d'Arc” (“O Processo” do título de J.M.G não está lá por acaso); se a secura, a austeridade e o anti-espectáculo são da mesma família, toda a temática da culpa e do medo, da verdade e da mentira, mesmo da casualidade, encontram uma gravidade que remetem tanto para o cineasta francês como para a questão central de todo o cinema de Fritz Lang; Serve isto para reforçar que se parte de um reconhecimento para chegar a algo de particular e fresco – como aquelas manhãs veladas pelo nevoeiro dos planos inicias… Os esgares de impotência, e consequentemente de frustração, que propiciam o embuste e a ilusão – essa solidão e desespero que adquirem o peso da tragédia – acontecem assim precisamente porque João Mário Grilo faz entrar em confronto o máximo de poder e de decisão com o máximo de falhanço intimista, individual e relacional. É nessa décalage e nesse abismo de incapacidade e fraqueza apesar do máximo, que os seres gravitam e flutuam, ora hieraticamente (ela), ora descontroladamente (ele), pelos corredores e labirintos da sua fatalidade inescapável. Não há salvação, não há escape, como por exemplo no ópus último de Bresson, “O Dinheiro”, em que os mecanismos do meio envolvente e as suas intrínsecas propriedades, continham a a semente última do mal. Sem recursos. Espécie de castelo de cartas em queda vertiginosa, de “tableau” (no sentido que Serge Daney costumava pensar) rasante à farsa e ao teatro do mundo – todas as “cenas de tribunal”, tábua rasa sobre ideias feitas de um suposto pudor historicista e logo desvio para uma verdade materialista – porque pasmosamente perto do oblívio e do cataclismo. Daí também o prodigioso recurso aos painéis e a certos espaços vazios como prenúncio e constatação da catástrofe.

- Uma compreensão da representação que elide os perigos da psicologia e as prerrogativas fúteis de um suposto “fazer artístico”, bem como os efeitos e as estruturas da ficção corrente, e que caminha por imagens (“pas une image juste, c'est juste une image”, à maneira de Godard), palavras, gestos, ditos e não ditos, por esses negros da luz que tudo fazem vacilar e pelas alvuras que evidenciam e iluminam, “O Processo do Rei” avança cadenciadamente e harmoniosamente (terrível e ambiguíssimo paradoxo) pela tragédia humana inseparável da sua condição.


(notas inspiradas pelo texto de apresentação do Professor Carlos Melo Ferreira sobre a obra de João Mário Grilo)

segunda-feira, 17 de maio de 2010



“Der Amerikanische Soldat” tem lá dentro pessoas com o nome de Fuller, de Walsh, de Lang…Murnau, etc. existe um bar chamado “Lola Montez (s)”; muitas ambiências de filme negro e outros motivos de reconhecimento. Constatado isto, nada, mesmo nada a ver com qualquer filme que hoje em dia, ou nos últimos largos anos, use de cinéfilia para alguma coisa que não seja feiticismo ou pura inconsequência. Há um lirismo, um sopro de desespero naquele soldado que da América regressa à sua Alemanha para uma estranha missão, que trata as mulheres como lixo, bebe muito, come bem e não hesita em puxar o gatilho. Pressente-se a ressaca de uma certa guerra que terá produzido os seus próprios efeitos, por ventura irreversíveis, e de que nunca se irá falar como se fosse um pecado ou trauma apto a explodir. Um imenso não dito sobre o qual repousam e arrebentam as pulsões e os afectos. Um imenso sentido político a trabalhar em of, em estado latente. Também faz da alienação uma profissão de fé – poderia ser um samurai, mais bruto e porco, mas podia. Toda aquela errância e todo o filme parecem encontrar o seu sentido no extraordinário plano final, que preenche de maneira impossível o abismo sobre o qual a personagem parecia sobreviver e que logo revela a sua impossibilidade. O maneirismo, como sempre em Fassbinder, só lá está para carregar e hiperbolizar o arrebatamento dos sentimentos e da dor. O maneirismo como crispação do gesto.





E é Fassbinder, o mesmo que dizer que a sua natureza – vê-se em todos os filmes, em todo o seu discurso e em toda a sua restante produção – pulveriza qualquer efeito de masturbação ou de piscadela/referência dada de barato, fascinação. Porque a câmara vai sempre directa ao homem, à carne, ao sangue, ao coração. Ao ser, por inteiro, sem a farsa do estilo. Porque a luz existe sempre como acto de violência, isto é, descarnando as superfícies para atingir a negridão e a clareza, a verdade e o que não ousa escancararar-se. Porque os corpos não pretendem a mentira do naturalismo, antes uma força visceral reveladora. Assim mesmo.





O paradoxo é que essa sensação de superfície, de "ser plano", superficialmente fluido é conseguida através de muita mediação, muita máscara, muito papel maché. Porque trabalha-se com o barroco, mas ele não faz com que o barroco sintetize quaisquer preocupações - como com a corrupção (que existe em seus filmes), a decadência irremediável (que existe em seus filmes), ou o romantismo perdido dos séculos que o cinema buscou no seu início mimetizar. Pelo contrário, se a corrupção e a decadência irremediável lá estão jamais irão manifestar-se como as preocupações finais caras à sua arte, mas de mecanismos com funções dramáticas (e até mesmo telúricas) bastante específicas. Ao mesmo tempo em que se tem toda noção do que se está a passar , em termos de narrativa, ainda se tem a atenção quase maneirista (ler crispação novamente) ao detalhe como um meio de mitificar a cena, de catapultá-la na transfiguração do instante pela metáfora ou sugestão.

O cinema de Fassbinder parece-se muito com a experiência de fluxo contínuo, intensivo, sintético que um Wagner queria realizar sob o nome de obra de arte total. Parece-me dos poucos cineastas capazes de conciliar essa luminosidade, essa expressão mais nua da limpidez com a arte barroca e picaresca da prestidigitação, da exacerbação do falso. Uma espécie de demiurgia sem metafísica, sem causalidade ou finalidade que não o próprio selvagem, colorido, mascarado ato criador.

Anti-metafísico, anti-profondeur, escapa às armadilhas do símbolo e encontra na alegoria a situação de um universo mais amplo, rarefeito e mesclado, sujo, um negro de Rimbaud.


José Oliveira
Felipe Medeiros de Morais

sexta-feira, 14 de maio de 2010


Evocações espectrais. Gestos épicos e mínimos. Deslumbramentos flamantes e voluptuosos de pura luz e de pura sombra. Rasgos de musical Minelliano, hollywoodiano. Propensão romanesca e aventureira. Correnteza pedagógica enformada pelos sussurros do berço, pelo imaginário dos cromos e do papelão. O que será isto? Marinheiros, cavaleiros e amazonas, masmorras, pedras milenares e partidas de xadrez ao luar, fugitivos, donzelas, capas e espadas, belas e antiquíssimas tradições. Corvos, fundos estrelados, velhos eléctricos de cidade e barqueiros de rio ainda mais velhos, horizontes a perder de vista, mares, Lisboa à noite e desertas vilas pelo dia.
Aves esvoaçantes, folhas e vento. Todo um novo mundo já para lá da memória, verso e reverso do pão-nosso de cada dia a que nos habituámos por muito proclamado cinema e pela televisão que não existe. Fixidez e bailado de câmara – ...aquele travelling para a frente em que do alto do castelo se chega à povoação e à sua envolvência líquida – momento supremo de revelação e logo da poética de José Álvaro Morais.
A crença no cinema como arte da libertação, da perdição e da infinitude, do absoluto, é a crença de “Zéfiro”, talvez o mais belo momento de Morais, porventura o mais genuíno dos cineastas românticos e operáticos que este país já conheçeu, certamente dos mais esquecidos. Aquela doçura e virgindade quando tudo parece estar a ser descoberto ou redescoberto, olhado com a fascinação da primeira vez, campo de todas as possibilidades…

Experiência sensual do presente e do momento, abertura para todos os tempos e lugares, verdadeira e estonteante dialéctica, imagens e sons a existirem com a força da verdade e dos enigmas.


Dádiva sublime e aparição, em meia dúzia de planos, Inês de Medeiros, aliás, Mariana chamada e de encarnado no corpo, como na “Casa da Lava”. È um ser que vêm do outro mundo e que simultaneamente só dali poderia ter saído, do muito longe. Todas as coisas devem ser filmadas com justeza e peculiaridade, mas para as coisas belas deve-se como que inventar novas formas e exceder-se no olhar, no contemplar. Aquele corpo, tão frágil, aquele rosto doce e muito triste, a profundidade magoada e misteriosa do olhar, aquela maneira de se movimentar, acriançada, serena e de uma leveza mais leve do que o ar.

Tudo muda, envelhece, desaparece, mas um dia, por graça de Morais ou de Pedro Costa, vai-se saber que uma criatura assim existiu e pisou o mundo. Uns míseros segundos e a certeza de que o cinema nasceu para filmar coisas assim.