quarta-feira, 27 de outubro de 2010
É coisa assim: um barraco abandonado, quase quase western. Cá fora uns pneus, carros e nada mais de muito interessante. Lá dentro, e é quase sempre lá dentro que estaremos (do fora, não me lembro muito), vamos conhecendo uma família e os novos membros que a ela se irão juntar. Como filhos acrescentados sucessivamente. Não só homens lutadores, não só mulheres lutadoras. Mas rapazes e crianças. Raparigas e bebés. Todos providos ou tratados com a mesma inteligência e com a mesma altura da câmara e do tempo. Atitude de um primitivo. Mas também atitude de um dialéctico. Dos golpes e dos embates rigorosos ou mais ao menos brutais, aos conselhos da velhice ou da novice, rasgos de generosidade e de trocas. Complementos. Correspondências mutuas. Salvações. Promessas. Coragens. “Boxing Gym” filme moderno? “Boxing Gym” filme clássico? Wiseman está-se nas tintas. Wiseman envolve-os nas suas formas. No seu olhar. Não faz distinções e ao mesmo tempo recupera a particularidade de cada um. “Boxing Gym” filme que capta nervo, esforço, selvagaria e quase sangue. “Boxing Gym” filme que capta o choro de um bebé. “Boxing Gym” filme sem sinopse. Entrámos lá e ficámos viciados. Dialéctica e, claro, ética. A do distanciamento mas também a da aproximação. Troca-se a volta aos compêndios e constatamos que uma é da outra dependente. Sempre. Essa moral de lhes resguardar pela distância justa e logo de os agarrar. Só a distância, nessa linha direita ou quebrada, sabe que nada mais lhe interessa que perscrutar. Mais forte ainda, apreender. Wiseman é portanto um profissional mas principalmente um amador. Voltarei e terminarei com isto.
Volto ao Daniel, da maneira de que me lembro: aquilo são as origens da América dentro de um pequeno espaço fechado; o melting pot.
Nem mais. O que é a mesma coisa que dizer que poderiam ser as origens do mundo. “Boxing Gym” filme big-bang; gesto aglutinador das relações, do companheirismo, do trabalho, das dependências. “Boxing Gym” filme de amor como “La Danse”, o imediatamente anterior, era filme de amor. Amor de uns solitários ou de uns disponíveis – Wiseman ou as pessoas que por lá lutam/bailam – para com os outros e para com o corpo e a alma. Filme carne e filme coração. Wiseman jamais procuraria formas novas e tempos novos, jamais se deixaria levar pelas mentiras do estilo e do mundo que dizem que muda (muda mesmo?), para se mudar a si próprio. Jamais. “Boxing Gym” filme de velho e filme de novo. Filme de sede. Filme de quem mais nada quer do que os olhar e captar a graça. É possível resistir. “Boxing Gym” filme que assenta/re-assenta coisas no lugar. Nas tintas para a técnica embora a conheça de a a b. Nas tintas para a farsa do “novo” e logo algo autenticamente novo. “Boxing Gym”, o filme em que alguém diz – a personagem para mim mais comovente: “se não o fizeres tu, de dentro, ninguém o irá fazer por ti.” E o outro, espécie de irmão ficcional ou sanguíneo, agradece-lhe o conselho. E é como se houvesse choro sem choro. É o mais belo dos momentos.
Fred Wiseman, realizador profissional. Hawks. Fred Wiseman amador. Como os grandes. Como Hawks. A evidência, a funcionalidade, o rigor do olhar realista que atinge a serena poética não gritada. Os amadores são os que se juntam ao lado dos resistentes. São resistentes. Como esse tão generoso e tão duro e tão prático e tão complexo treinador e dono do ginásio do nome do filme.
São os que ainda acreditam na grandeza dos homens por inteiro.
“Boxing Gym” filme de um homem.
terça-feira, 26 de outubro de 2010
quinta-feira, 14 de outubro de 2010
quarta-feira, 13 de outubro de 2010
sábado, 9 de outubro de 2010
Em 1989 Hal Hartley rodou a primeira das suas já muitas longas-metragens. "The Unbelievable Truth". Onzes dias e meio de filmagens nas casas dos amigos e nas ruas vizinhas, sustenta o mito. Vários empréstimos ao banco conseguidos por parentes e coisas assim, continua o mito. Não conheço muito deste cineasta, que nascido nos finais dos anos 50, em Nova Iorque, é arquivado nos compêndios de história ao lado dos chamados “independentes americanos” da década de oitenta, com Jim Jarmusch, Gus Van Sant, Spike Lee, etc. Nem isto me interessa para nada. Nem o próprio filme chega perto dos meus ideais de cinema, da minha família, do meu sangue. Falando como falaria um “critico sério”: a narrativa envereda por trejeitos forçados e pelos truques básicos; os maneirismos e excessos de um burlesco de pacotilha abundam; há música perto do insuportável; uma moral a querer ser Languiana e assim talvez justificar o título análogo ao filme do cineasta alemão; existem mesmo personagens irritantes e há beira do delírio, a quererem fazer-se actores à força toda. Para não referir, veementemente, que formalmente Hartley navega por aguas flutuantes mas, admito, de uma ingenuidade que por vezes enternece : ora planos feitos imagens mil vezes vistas – movimentos rápidos e montagem a abrir – ora a amabilidade do fixar da câmara e do melhor ângulo com a melhor luz. Uma ausência de escritura e um anonimato que nesses – raros - momentos percebemos que existe um artista de corpo inteiro em potência. E aqueles intertítulos...
Mas não são estas as verdadeiras razões porque o filme me interessa, nem a perfeição – palavra que rejeito, palavra assustadora, falsa – têm alguma coisa a ver com o que me faz mover. A vibração e os sentimentos, sempre. Um sopro de desilusão e de romantismo - que não se deixa ver - que insufla de energia a fragilidade e a singeleza das estruturas. Quase todo o filme dá a ideia de planar uns palmos acima do solo.
É que no meio destes verdes anos existe um extraordinário acaso e um extraordinário par – um rapaz e uma rapariga, claro - a mais velha história do mundo contada com uma fascinação e uma sensibilidade secretas, um pudor que me é impossível esquecer.
Ele é Josh, saído da prisão por supostos homicídios e à busca de uma boleia para a terra natal. É mecânico, mas todos lhe perguntam se é padre. Anda sempre vestido de preto e de cigarro na boca, um atrás do outro. Parece um pouco desinteressado da vida e é detentor de uma sinceridade assustadora. Não parece esperar muito do mundo e dos que nele habitam.
Ela é Audry, mais jovem, idealista, e não quer entrar para a faculdade. Têm obviamente problemas familiares e é obcecada com ideias apocalípticas. É de uma beleza mais do que estranha e rara, daquelas de ir até ao fim do mundo ou de saltar a fronteira dos abismos. Também se veste de preto.
Existe como que uma predestinação escrita no vento ou na imensidão do universo que fará adivinhar que mais dia menos dia, num qualquer virar de esquina ou num pedido de lume, eles se encontrarão.
Encontrar-se-ão, obviamente, e o móbil para tal será o livro que não mais parará de ler, até um dia, cada um com o seu. Existe a faísca. Existe o inexplicável da atracção. Ela vai dar-lhe trabalho e vida. Ele todo um novo mundo.
Parece não existirem dúvidas. Tiro e queda. São ideais um para o outro. A beleza combinatória da junção é nada menos do que lancinante. Ele de preto, ela de preto. E os rostos claros, claríssimos, a iluminarem ou a escurecerem ainda mais aquele encaixe que por vias alternativas poderia ser o original. Um principio de tudo. Como naqueles belos jardins em que se olha para o nada e para o tudo.
O preto é aqui a cor da queda e da salvação e do amor. Nada mais próximo e tocante do que estas tão elegantes e selvagens criaturas - et pour cause?
A coisa, o romance, não vai progredir como o esperado nos livros e noutros filmes da vida. Entre festas falhadas que permitiriam a noite perfeita de amor, desaprovações paternais e o inexplicável dos afectos e supostas redenções (ele afinal não deu um dos tiros de misericórdia – melhor? pior? indiferente?), uma bifurcação que faz lamentar que os dois não se atirem um para cima do outro e que fujam para muito muito longe.
Outra das audácias do filme é a mutação/resistência dela e o enraivecimento dele. Ela torna-se modelo de revistas e não falta quem lhe queira fazer a folha. Esquece por um hiato as convicções politicas e económicas, mas resiste. Resiste e não se esquece do coração. Ele deixa-se de ressentimentos ou de recalcamentos, emancipa-se de um peso e dos receios, arremessa furiosamente o tal livro contra o castelo onde a princesa se prende e foge, fogem, mas é o pequeno grande passo que faltava, o big bang. Ambos mandam lixar as promessas com segundas ou terceiras intenções, devolvem os dinheiros dos “falsos Judas” e fiquam entregues a si mesmos, sem compromissos.
O final. Entre o “you have to trust me” dela e o “i don´t trust in everybody” dele, Josh pega em Audry quase como John Wayne pegou em Natalie Wood, e dá-lhe o beijo da revolução.
Ela com uns trocos no bolso, ele sem as ferramentas da profissão, podem finalmente cumprir ou tentar cumprir as promessas e os sonhos dos Deuses quaisqueres.
“You heard that”…”listen”…e ambos e a câmara se viram para o céu e a música do fim do mundo irrompe. O principio de uma era ou o fim? Tanto faz. Impagável a liberdade. Liberdade, a mais bela palavra do mundo.
terça-feira, 5 de outubro de 2010
“Lembro-me de caminhar em Paris, de Montparnasse ao bairro XVIII, de caminhar a pensar, como numa caminhada que trouxesse o tempo de volta. Quando cheguei a casa, a minha avó falou-me durante muito tempo. Tive a impressão de que me falava de coisas importantes. Quando lhe disse: "Mas, escuta, temos de registar tudo isso", ela respondeu: "Mas enfim, são coisas que não são bonitas". "Isso não me interessa", respondi, "é preciso registar as coisas, bonitas ou não, elas são importantes, elas são grandes." Arranjei algum dinheiro para comprar película a preto e branco 16, aluguei duas câmaras, pedia Théaudière que cuidasse delas e a Jean-Pierre Ruh que fizesse o som. E o tempo do filme, foi o tempo da película, as duas câmaras a funcionar alternadas, de seguida, sem corte. O filme era assim a história da película, do início até ao fim. Ao mesmo tempo, como era cineasta de profissão, era um filme de um cineasta profissional e um filme de família, um filme amador em 8mm rodado na praia.”
Ou seja, Eustache pensou, ou sonhou, mas concretizou, teve essa tremenda ousadia, esse espantoso gesto de humildade, refazer algo que o cinema sério prometeu servir: um grande (incomensurável) arquivo de pessoas e de memórias. Para sempre. Apontar uma câmara a alguém com muitas coisas para dizer – e todos tem coisas para dizer, a sua narrativa – filmar até a fita acabar e gravar o som, a palavra e o que a envolve. Com todo o saber e com toda a simplicidade. Está feito. Assim mesmo. Fê-lo, não ficou pelo sonho ou pelas promessas.
2007. Wang Bing. “He Fengming”. Ou no título internacional: “Fengming: A Chinese Memoir”. Ou ainda, mais delicadamente: “Chronicle of a Chinese Woman”.
Como Eustache, é o filme que todos poderiam idealizar. O filme que todos poderiam fazer. Cinema sempre foi coisa de amadores. Amadores que tudo lhe retribuem. “Não sabemos mais das imagens do que o resto das pessoas”, penso que afirmou Godard um dia. Trinta e tal anos depois as fitas rareiam e o digital possibilitou tais dádivas ainda mais possíveis. Wang Bing também apontou a sua câmara a uma pessoa querida e deu-lhe o mundo todo. O tempo todo. Ela, senhora também de idade avançada, caminha até casa, abre a porta, senta-se e desvela infinitas histórias, e, tirando mais três ou quatro planos dela a movimentar-se pela casa, é o que vamos ter durante umas três horas e tais. A violência de um interminável plano fixo ao serviço de uma abundância desmedida de factos e de ficções – porque jamais a memória poderá reter só o “verdadeiro” – de amores, desamores, tragédias e festas, choro e riso.E a presença e o peso que ela exerce sobre a cena, como acontecia com Odette Robert, é verdadeiramente vulcânica, arrasadora. É o plano que estremece tantas vezes com os ditos e com as expressões, o olhar, as rugas e o falar dessa imponente e bela senhora. Questão de paciência e curiosidade. Através de tudo isso, das confissões de soslaio às grandes epopeias, toda a história de uma nação (a chinesa, a dela) e de um arco temporal fugidio que poderiam ser as histórias e os tempos de toda uma humanidade. Todos nós estamos lá num cantinho e ao mesmo tempo tudo é dela, só dela. Tocantemente intimista e singular e surpreendentemente universal.
“Griffith filmou a biografia de todos os homens e mulheres à face da terra”, escreveu João Mário Grilo. Bing ofereceu a Fengming uma via de catarse e ofereceu-nos a todos nós uma espécie de espelho e de previlégio que em algum dos lados nos podemos ou haveremos de nos poder vislumbrar. Sem a profissionalidade das equipas do “grande cinema” ou das pressões. Uma peça familiar, uma peça manual trabalhada em porcelana, com o máximo do saber. E o filme é o milagre do presente em que o vemos, como testemunhas e ecos, a evidência do olhar que abre infinitas brechas de sentimentos e de emoções. Histórias e mais histórias, sensibilidades, sensações, "déjà vu´s", recordações, alegrias e medos. Não há que filosofar, “o que é, é” e nessa experiência de tempo pode-se chegar ao absoluto. Não há filme mais verdadeiro, não há filme mais fantástico e aventureiro. Resistência e liberdade, é o que ele nos diz. É o que Bing e Fengming nos dizem. Mesmo que a solidão seja terrível.
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
"O homem enfeita-se com a sua sorte". Paul Valéry
O Mito do “Sebastianismo”, revelações religiosas, comoções maternais, a procura de um “eu” ou filosofias aparentemente profundas, “film on film”... o cerne da obra, como sempre em Green não é verdadeiramente isso e as “grandes questões” podem ficar para quem mais nada vê e ouve e se fecha ao mundo e à sua indizível ode de modelações e de belezas aparentes e místicas, visíveis e invisíveis.
A cena inicial, em que um recepcionista de hotel interpretado por Manuel Mozos- só poderia ser ele, o grande cineasta do “Xavier” da minha salvação e de uma Lisboa sufocada e escura, intimista e luminosa, onde as suas personagens tentam entender essa complexidade exterior e interior, ou seja, do lado da vida e dos sentimentos – para lançar o mote: “não gosto de filmes franceses intelectuais”; Não sei se Green gostará deles ou não, mas tenho a certeza que os deste não o são.
Coisas simples, coisas vitais. “A Religiosa Portuguesa” é como uma viagem a uma paisagem e a um mundo a que não estamos habituados e se nos revela numa plenitude que não o esperávamos. Que nos arrebata e nos atira para o lado. Que nos cala e deixa sem ar. “Ver e sentir claramente, passo a passo.” Calmamente. Contemplar as fulgurâncias e os segredos do que nos entra de maneira fulminante pelo olhar e pelos ouvidos e deixar-nos enternecer. Estar aberto às opacidades e acreditar nessas coisas que arrepiam a pele e dão significância à palavra medo. Caminhar, caminhar, caminhar. Ser envolto pelos nevoeiros e suas gradações efémeras e mágicas (palavra perigosa esta). Só quem já se deixou perder pela amplitude de um cosmos próprio e universal, pelas possibilidades da escuridão e da claridade é que pode compreender o gesto.
“Ando por Lisboa à deriva e sem saber onde parar e não a compreendo, nunca sei a sua verdade, seduz-me e intimida-me, atrai-me e ignora-me, absorve-me e…” e aqui já só falo eu.
Green vêm de fora e este é o olhar dele, esteticamente e eticamente fiel aos seus princípios; aberto a um novo meio. Nada de mais justo. Nada de mentiras.
Existe uma história, se a quisermos e se nos quisermos consolar, que é aquela em que uma actriz vinda de Paris mas que também fala português vêm rodar um filme a Lisboa e ao mesmo tempo descobrir a cidade e libertar-se nos virares das esquinas, nas auroras e nos crepúsculos dessa luz que dizem ser única. Mas também pode ser o filme de uma “maluca” que não têm medo da negridão – Diogo Dória e a sua “cave” só podem vir mesmo do mundo dos mortos – e se entrega às loucuras, ao irracional e aos prazeres. Ela pode ser uma bonita burguesa de boas intenções e de grande coração ou apenas uma libertária de filigrana que engana muito bem - e bem sabemos que andam por aí muitas. Beijos, elipses de noites de amor, filosofias espontâneas e meias absurdas com uma freira que ela imagina ser sua dupla, etc. Cada um que vá pela sua ficção porque o que interessa a Green é mesmo esse “teatro do mundo” - como lhe chamou Bruno Andrade num texto fabuloso - esse espectáculo ilusório do real, essa encenação que só os poetas apanham dos agressores. Graciosamente longe dos naturalismos, das cópias conformes, dos realismos e dos mais “ismos”; Também sempre pronto a recusar o simplismo e as chaves de “cinema literário” ou ancorado à literatura que muitos rapidamente sugerem. Aqui o romanesco é menos evidente e mais subtil e subterrâneo do que nas obras anteriores – Flaubert em “Toutes les Nuits”, por exemplo - e trata-se então de filmar – literalmente, laconicamente - a palavra. “Sinto que filmo a palavra onde os actores são absolutamente mudos”, disse Green certa vez.
Uma viagem pelo universo do sensível e das fantasias, à beira do infantil e do iniciático, conduzida pelo ponto de vista da mulher mais bonita que um pequeno miúdo solitário já viu. Quase me pareceu o “Moonfleet” de Fritz Lang e toda essa encantatória redescoberta. As águas dos mares e os penedos não enganam.
“Desde o genérico, que nos são dadas a dinâmica e a respiração de "Moonfleet". Surge uma onda num penhasco, enrola-se e depois desfaz-se contra as rochas, e dela apenas resta um turbilhão de espuma. No segundo, terceiro, quarto planos, etc, as ondas sucedem-se, sobrepõem-se, plenas de uma violência contida, por se desfazerem, enfim, com furor. Por que razões estes planos do mar e das ondas são os mais belos alguma vez filmados? Mistério inexplicável da arte, excepto se admitirmos que o olhar do poeta pode penetrar o mundo tão intensamente que torna magnífico tudo o que vê. A poesia reside na verdade e no conhecimento.” Jean Douchet, Cahiers du Cinema, Maio 1960. 50 anos depois, alguém nos vêm relembrar.
Sombras no negro, luzes no claro, candelabros…velas, certezas e incertezas. Um pouco como em Leos Carax, mas onde este é louco e explosivo, lírico e demencial, Green é ascético e hierático, contemplativo. Há coisas irreveláveis incrustadas naquelas rochas e naquelas árvores, nos túneis e nos céus mais do que perfeitos; Como há coisas no sangue e no interior ou na dita alma de cada pessoa que ninguém jamais imaginará sonhar.
As panorâmicas iniciais e a subida final da câmara pela iconicidade de uma cidade. Os fados que a elas se sobrepõe e que irrompem dos seus autores e pelo espaço, o vazio de uma metrópole e a sempre brutal e terna frontalidade com que a câmara enfrenta rostos e a precisão das palavras. Esse fluir tão atento e pacificado com que a máquina se move. Coisas antigas, coisas de estúdio, as lições de homens velhos e sábios e as heranças. Coisas novas, coisas pioneiras, nada é certo e o cinema nunca se saberá o que é, tudo em causa. Green acredita nos fantasmas e nas crivações seculares e é dos que sabe que pelas aparências do visível tudo pode impregnar. É um dos grandes cineastas materialistas, como é um dos grandes cineastas crentes, religiosos, litúrgicos. Matéria em bruto e possibilidades de milagre pós-mortem – o assombro final de “Le pont des Arts” ou o delírio sebastianistico defronte de uma discoteca nas docas. Além-vida.
A poesia, sempre a poesia a alastrar por uma suposta prosa ou por aquilo chamado “mundo real”. Obliqua, desconexa, concorrente, paralela…Green pressente as rimas infinitas e em horizontes não circunscritos. Ouve-se inglês, francês, português. Vê-se Castelos e capelas, cafés e bairros daqueles em que todos sabem de tudo, fala-se sobre Paris e em promessas e habita-se uma Lisboa tão imponente e concreta como fugidia e impermeável. Sinfonia perfeita como o descer e o subir dos eléctricos. Deriva casualistica como as folhas e os ventos que guiam "a bela" em direcção aos fados e aos destinos voláteis como os sopros e os sussurros.
O “film on film” não nos diz nada e só nos mostra umas coisas e umas promessas quebradas – da vida à ficção e do “corta” à vida é uma questão de recorte de mundo e de justiça poética; sem delírios e sem embustes. “Não choro mais pois tal não proporcionou”. O realizador olha o mundo e os seres e estes devolvem-lhe a sua natureza e o seu génio da origem. Honestidade, simplicidade e crença.
O "génio" de Green é o "génio" dos grandes, não se submeter a modas nem trabalhar para festivais (pobres imbecis de Cannes, jamais o aceitariam) e para os supostos críticos – bela palavra que certo dia existiu - invejosos e chauvinistas (os que querem Lisboa para os Lisboetas), antes se deixar imergir, lucidamente e perdidamente, pelo temperamento do mundo e pelas suas incomensuráveis riquezas, agarrando-lhe toda a matéria que o enforma e fazendo sentir e vibrar o que apenas temos tanto medo de pressentir. E algo novo, raro, indecifrável surge e o cinema continua. “A Religiosa Portuguesa” é um assombroso filme de assombrações num mundo que existe. Só não vê quem não quer ou quem já não está habilitado.