sábado, 9 de outubro de 2010
Em 1989 Hal Hartley rodou a primeira das suas já muitas longas-metragens. "The Unbelievable Truth". Onzes dias e meio de filmagens nas casas dos amigos e nas ruas vizinhas, sustenta o mito. Vários empréstimos ao banco conseguidos por parentes e coisas assim, continua o mito. Não conheço muito deste cineasta, que nascido nos finais dos anos 50, em Nova Iorque, é arquivado nos compêndios de história ao lado dos chamados “independentes americanos” da década de oitenta, com Jim Jarmusch, Gus Van Sant, Spike Lee, etc. Nem isto me interessa para nada. Nem o próprio filme chega perto dos meus ideais de cinema, da minha família, do meu sangue. Falando como falaria um “critico sério”: a narrativa envereda por trejeitos forçados e pelos truques básicos; os maneirismos e excessos de um burlesco de pacotilha abundam; há música perto do insuportável; uma moral a querer ser Languiana e assim talvez justificar o título análogo ao filme do cineasta alemão; existem mesmo personagens irritantes e há beira do delírio, a quererem fazer-se actores à força toda. Para não referir, veementemente, que formalmente Hartley navega por aguas flutuantes mas, admito, de uma ingenuidade que por vezes enternece : ora planos feitos imagens mil vezes vistas – movimentos rápidos e montagem a abrir – ora a amabilidade do fixar da câmara e do melhor ângulo com a melhor luz. Uma ausência de escritura e um anonimato que nesses – raros - momentos percebemos que existe um artista de corpo inteiro em potência. E aqueles intertítulos...
Mas não são estas as verdadeiras razões porque o filme me interessa, nem a perfeição – palavra que rejeito, palavra assustadora, falsa – têm alguma coisa a ver com o que me faz mover. A vibração e os sentimentos, sempre. Um sopro de desilusão e de romantismo - que não se deixa ver - que insufla de energia a fragilidade e a singeleza das estruturas. Quase todo o filme dá a ideia de planar uns palmos acima do solo.
É que no meio destes verdes anos existe um extraordinário acaso e um extraordinário par – um rapaz e uma rapariga, claro - a mais velha história do mundo contada com uma fascinação e uma sensibilidade secretas, um pudor que me é impossível esquecer.
Ele é Josh, saído da prisão por supostos homicídios e à busca de uma boleia para a terra natal. É mecânico, mas todos lhe perguntam se é padre. Anda sempre vestido de preto e de cigarro na boca, um atrás do outro. Parece um pouco desinteressado da vida e é detentor de uma sinceridade assustadora. Não parece esperar muito do mundo e dos que nele habitam.
Ela é Audry, mais jovem, idealista, e não quer entrar para a faculdade. Têm obviamente problemas familiares e é obcecada com ideias apocalípticas. É de uma beleza mais do que estranha e rara, daquelas de ir até ao fim do mundo ou de saltar a fronteira dos abismos. Também se veste de preto.
Existe como que uma predestinação escrita no vento ou na imensidão do universo que fará adivinhar que mais dia menos dia, num qualquer virar de esquina ou num pedido de lume, eles se encontrarão.
Encontrar-se-ão, obviamente, e o móbil para tal será o livro que não mais parará de ler, até um dia, cada um com o seu. Existe a faísca. Existe o inexplicável da atracção. Ela vai dar-lhe trabalho e vida. Ele todo um novo mundo.
Parece não existirem dúvidas. Tiro e queda. São ideais um para o outro. A beleza combinatória da junção é nada menos do que lancinante. Ele de preto, ela de preto. E os rostos claros, claríssimos, a iluminarem ou a escurecerem ainda mais aquele encaixe que por vias alternativas poderia ser o original. Um principio de tudo. Como naqueles belos jardins em que se olha para o nada e para o tudo.
O preto é aqui a cor da queda e da salvação e do amor. Nada mais próximo e tocante do que estas tão elegantes e selvagens criaturas - et pour cause?
A coisa, o romance, não vai progredir como o esperado nos livros e noutros filmes da vida. Entre festas falhadas que permitiriam a noite perfeita de amor, desaprovações paternais e o inexplicável dos afectos e supostas redenções (ele afinal não deu um dos tiros de misericórdia – melhor? pior? indiferente?), uma bifurcação que faz lamentar que os dois não se atirem um para cima do outro e que fujam para muito muito longe.
Outra das audácias do filme é a mutação/resistência dela e o enraivecimento dele. Ela torna-se modelo de revistas e não falta quem lhe queira fazer a folha. Esquece por um hiato as convicções politicas e económicas, mas resiste. Resiste e não se esquece do coração. Ele deixa-se de ressentimentos ou de recalcamentos, emancipa-se de um peso e dos receios, arremessa furiosamente o tal livro contra o castelo onde a princesa se prende e foge, fogem, mas é o pequeno grande passo que faltava, o big bang. Ambos mandam lixar as promessas com segundas ou terceiras intenções, devolvem os dinheiros dos “falsos Judas” e fiquam entregues a si mesmos, sem compromissos.
O final. Entre o “you have to trust me” dela e o “i don´t trust in everybody” dele, Josh pega em Audry quase como John Wayne pegou em Natalie Wood, e dá-lhe o beijo da revolução.
Ela com uns trocos no bolso, ele sem as ferramentas da profissão, podem finalmente cumprir ou tentar cumprir as promessas e os sonhos dos Deuses quaisqueres.
“You heard that”…”listen”…e ambos e a câmara se viram para o céu e a música do fim do mundo irrompe. O principio de uma era ou o fim? Tanto faz. Impagável a liberdade. Liberdade, a mais bela palavra do mundo.
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