sexta-feira, 11 de março de 2011

"Lost West" - Folha Cinemateca

Eles Cantam.

Neste tempo de cinema rico em que a maior parte dos seus praticantes se auto-intitulam como profissionais e por isso mesmo mexem mundos e fundos para verem os seus projectos aprovados pelo famoso I.C.A., batendo às portas das televisões, instituições culturais e tudo o que cheira a dinheiro, para depois de o filme estar pronto mesmo assim se chorarem por falta de verbas, tempo de rodagem, actores, palmadinhas nas costas, críticas de cinco estrelas, etc...Neste tempo de fabricação de génios à priori, de promoção de criatividades e talentos, de acordos entre produtoras e festivais, "o futuro do nosso cinema...", "finalmente algo novo, bizarro e inclassificável", tudo rótulos que uma certa imprensa necessita para brilhar nos seus cabeçalhos, ditirambos que certas publicações especializadas internacionais que certo dia – quando havia os grandes, Daney, Shorecki, mais atrás, Rivette, Bazin – foram grandes e que agora se vergam perante a primeira mediocridade ou fanfarronice que se exalta consigo própria, se envaidece, se grita e que paradoxalmente expõe a sua farsa. Só não vê quem não quer... são o "som e a fúria", vila do conde, os doutorandos das cartas brancas, os Nicolaus, os novos Cahiers que deveriam ser velhos... Neste cinema do tecnicamente correcto, dos raccords mais do que perfeitos, da luz uniforme, da procura da vedeta, da próxima "next big thing", das intricadas técnicas narrativas, museus de cera onde não existe uma folha que mexa, nada que mexa...Zero absoluto. 

Em tempos assim... que bom é voltar ao anonimato, ao tempo em que a pobreza se tornava força, aos filmes de necessidades vitais, aos visceralmente amadores tal como Jean Douchet ou o outro Jean, o Eustache, nos ensinaram...

Mário Fernandes..."Lost West", autor ou obra, a ordem tanto faz. Ninguém desse maravilhoso mundo oficial do cinema o conhece, ninguém viu os seus filmes, estão-se nas tintas pois não lhes proporcionará um chavelho e os sentimentos, os verdes anos, há muito que se foram. Vou tentar explicá-lo: um western a preto e branco de três horas em que se canta, se fere emocionalmente, se ama e se mata, onde se percorrem vales e montanhas, rios e saloons, o céu toca na terra e ambos parecem fazer amor, onde o passado embate brutalmente com o presente e vice-versa, onde o que um dia foi já não mais poderá ser...cowboys em fúria cowboys impotentes, tiranos gigantes meninos que as armas e o mimo não conseguiram largar...ninfas em branco...os contra-luz que arrebatam auroras e crepúsculos, escuro escuríssimo cerrado, tanto whisky para o dia passar, as memórias se esvanecerem, a coragem irromper, os amores...da salvação ou da redenção não falo porque isso cada um a verá e a terá como merece...

Também não importa muito, não importa nada o reconhecimento, foi o Mário que me mostrou o filme em secretismo e que não o quer mandar para festivais, quer mostrá-lo só aos seus ou na cinemateca sua segunda casa. Também eu vim de longe e de boca aberta fiquei mas isto já não interessa nada...

Contradigo-me e agora ainda falo mais eu: lembro-me daquele primeiro plano, Kit Carson de pernas estendidas, chapéu para baixo, parecia-me Henry Fonda. O coldre descarregado à sorte pendurado na árvore. A inseparável harmónica e aquele som que tantas vezes embalará o filme. De repente...tão repente...um daqueles putos desamparados do Nicholas Ray, qual dancing kid, a entrar em campo, rouba-lhe a arma, aponta-lhe mas não sabe o que fazer, treme por todos os lados. Claramente ainda não foi introduzido ao mundo em que vivemos. Kit sobe o chapéu, dá-lhe conta do seu erro e atira-lhe profeticamente: "a partir de agora não podes mais voltar atrás", é assim que me lembro, é assim que conto. Lembro-me de logo a seguir um belo cavalo rasgar a paisagem lentamente e de a música continuar nessa sinfonia da perdição que guiará todo o seu percurso por El Cabalero. Subidas e descidas, altos e baixos, caminhos rectos e tantos labirintos armadilhas. E quando ele chega ao riacho e encontra uma das duas mulheres de branco vestidas, as suas indecisões e recuos em contraste com as certezas com que do gatilho não hesita em puxar quando assim tem que ser...isso também não me esqueci, como não me esqueço do imperial e operático Beralt Tin de olho tapado como Walsh ou Ford o tinham tapado, as suas manobras de terror e os seus discursos sobre os destinos dos homens por debaixo de si. Poder-me-ei porventura esquecer daquele momento no topo da montanha em que o par Kit-Martha – ela de tão belo vestido comprido e esvoaçante - olha o horizonte e tudo tão velozmente mas tão suavemente escurece e assim ficamos numa indizível contemplação? Tem a mesma força e delicadeza ou candura do beijo daquela gruta que me remete ao John Wayne que pega em Natalie Wood resgatada aos índios e lhe promete o lar perdido no "The Searchers". Cúmulo da ternura, cúmulo do lirismo que tantas vezes invade o filme. Um pouco à frente, praticamente no final a bem dizer, Kit entra na lavaria, o local onde o minério se purifica, e deambula muito, tão perdido movimentos e olhar em torno para lado nenhum, desilusão latente, desaceleração, apaziguamento, tudo filmado na mais acabada certeza, sem espaço para dúvidas ou delírios que não assim – "o que é, é" - a câmara a tomar o pulso a um homem, homem de carne e osso, a sentir-lhe os ofegares, os medos, dúvidas, raivas porventura, suores e tudo o que adivinhar não se pode. Assim, sem mais nada querer em troca. Ou, momento supremo, o meu favorito: a mizoguchiana barca e as mizoguchianas águas em que Martha leva o corpo abatido de Tito até às margens para o eterno descanso. Evidentemente, uma inexorável doçura. Repito para que não se esqueça, supremo. E se falei em Tito, Kit, Martha, Beralt Tin, tenho que falar em Carlito Quijote, um dos do bando da pérfida e o mais exuberante de todos, de negro vestido de negro composto, da roupa aos olhos à aura, sempre bigger than life tanto como o seu chefe, numa das rimas e oposições mais secretas e significativas e escuras da obra. Carlito Quijote sempre tão sozinho sempre tão desesperado e acossado numa urgência que não se deixa entrever, de destino traçado como qualquer um dos que já referi. Falta-me o momento do duelo final, naquele espantoso cenário da boca do inferno, um em cima, outro em baixo, composição assumida da mítica dos velhos duelos do velho oeste para logo destruir tudo e acabar em êxtase. Êxtase que só se dá depois do hawksiano disparo, tão seco como o que já tinha perfurado Carlito Quijote nesse estranhíssimo e sensual bailado no rio. O corpo do vilão a rebolar pelas areias abaixo, um abalo prestes a habitar o único destino que o aguarda, lá em baixo. Ele sabia, aposto que ele sabia.

Ia a dizer, pôr-se no meio de um mundo, o do western, amar-lhe aquilo tudo que só esse magnífico género conseguiu ser, utopia e arte eminentemente perdida, retribuir-lhe os segredos, as audácias, a memória e...e ser logo outra coisa.
Não há dinheiro mas há a ousadia e saber, de com a câmara digital pequena e barata, e só ela, querer captar as paisagens conhecidas da mesma forma total e desmesurada com que John Ford captou o seu Monument Valley. Entra-se no referido saloon, El Passadiço, e num funcionalismo formal em que o plano da ponta da arma a entrar em campo nos dá conta das lições funcionalistas e humildes e concisas de Howard Hawks para nesse espaço concentracionário e meio irrespirável fazer tudo explodir tudo estilhaçar...eles cantam eles começam a cantar e tudo estoura pelas costuras como os campos de batalha de Sam Fuller estouravam e instalavam a loucura. "I´m drinking a cup of whisky" poderia ser o mote e o estertor para toda essa fragilidade de meios e de tudo cavalgar em fúria estonteante e incontável tal seu tão amado Sam, outro Sam claro está, Peckinpah.

Aceitar a pobreza, viver com ela como com a vida que se tem de viver, tostões no bolso cigarros valiosos, pegar nos amigos e vesti-los com aquela classe que só os vândalos e os vagabundos e os foras da lei e os taberneiros e os poetas poetas conseguem ter...pedir que se escrevam canções como aquela que nos versos sopra "...Gone with wind". Não ter medo da ficção à Shakespeare como "Pursued " ou outros Walsh o eram e no mesmo tempo ser o mais acabado documento de um tempo, de um passado em que aquelas minas que lá se mostram e se escondem eram o país dos outros humildes e então alvo fácil dos poderosos. Documento de amizades e de vidas que o filme cruzou e alterou. Documento de cinema porque alguém teve tomates para mostrar que se por paixão for só não filma quem não quer...e que pode ser assim, assim sem cheta e assim grande, onde se beija, se corre e se pára, se ama...se volta as costas porque já não se pode regressar a casa. Onde se canta, insisto, onde se canta sem medo de ridículos, anacronismos, esses incendiários fogos próximos da libertação ou da revelação como quando no "Forty Guns" o actor principal desatava a cantar sobre o palco onde os homens tomavam banhos, tão inverosímil mas tão fulminado pela força do coração. 

"Lost West" filme que rebenta pelas costuras. "Lost West" filme límpido e sem efeitos. Sem efeitos porque a sua lógica, como foi construído e como existe na sua forma final, é um manancial e um orgasmo de desejos e de olhar, o olhar de alguém sobre uma época, uma paisagem e uma narrativa dos afectos que próxima da farra e da amizade e do companheirismo não permite golpes baixos ou exibicionismos técnicos, piruetas, masturbações, esses estilismos inúteis que o "pós-modernismo", abjecta palavra e conceito, faz normalmente funcionar quando se pega no que foi e no que já não parece possível. Amizade, é preciso repetir para que não se esqueça, porque todo o imenso coração de Kit Carson é obviamente projecção do coração de todos os que ergueram e se esforçaram para levar as coisas para a frente, e isso vê-se no documentário de rodagem chamado "Oeste Reencontrado", peça que urge descobrir para que a experiência fique completa.

"Lost West", grito também o título, filme de um herói, filme de um primitivo de olhar lavado que tudo conhece e que não tem o mínimo medo de não separar filmes e vida, ódios e paixões, toda a genuína grandiosidade perdida e toda a humanidade. "A partir de agora não podes mais voltar atrás" foi o aviso de Kit Carson e é a moral e a ética desta obra de e para "happy fews".

O western, seja de que formas acontecer, nunca acabou, Mário Fernandes sabe-o como o sabem alguns dos grandes cineastas contemporâneos. De Manuel Mozos a Clint Eastwood, de Vincent Gallo a Pedro Costa a Michael Cimino, Quentin Tarantino. Os que fazem ainda fé numa pureza qualquer e respeitam as suas convicções, sem os rótulos ou os catálogos dos modernismos ou dos pós-qualquer coisa. O western nunca acabou. Raio de esperança meu, o cinema também não.

José Oliveira

1 comentário:

João disse...

Não conheço o filme, nem sequer o realizador. Mas foda-se, grande texto!