segunda-feira, 29 de outubro de 2012


Se o cinema apareceu para apontar ao mundo, cativar o mundo, conquistá-lo, devolver a quem o olha em sombras, luzes e fantasmas a sua indizível (e sempre banalizada pelos simplórios) complexidade e os seus flamejantes mistérios, nada como ele para nos mostrar a vida dos homens, a sua colossalidade que só à terra apegada encerra sentido, os esconsos soterrados. E como sussurrou Bachelard: “Que importam as flores e as árvores, o fogo e a pedra, se não amo e não tenho lar? É preciso ser dois - ou, pelo menos, ai de nós, ter sido dois” (…) Nada como esta grande arte das chamas e do físico, olhares, ânsias, fomes, zénites, lógicas e absolutos, para nos entregar aos poucos e de uma só vez um início do mundo, novas auroras, a dança cósmica da atração e a consumação explosiva. Filma-se dois seres desejantes da forma como deve ser e fica-se a ver que o tal do cinema foi inventado para isso. Retinas alinhadas ao mesmo percurso no mesmo tempo, um incêndio que se desprende, lábios molhados que ateiam. Falta de fôlegos. Peles coradas. Indistinção entre o firme solo e o navegante etéreo. A morte a poder verter-se vida e a indiferença a isso. Uma obra que lavrou pegadas sem medo ou com muito medo por estes terrenos. 1984.

Um Aidan Quinn não por acaso apelidado de Rourke (, Johnny) no filme inicial de James Foley, “Reckless “, trajado a couro, cabelo solto aos ventos e pela terra de todos ao Deus dará, cessa mais uma etapa de uma obsessiva rotina – pôr a vida à prova. Cenário capital esse precipício, descobriremos a pouco e pouco. É ao fundo dele que o seu pai diariamente se consome, se tenta esquecer da mulher que pôs fora de casa ao pontapé, se afoga ao retardador no álcool que lhe apaga da memória a herança do filho ou a puta ousada. É igualmente nessa fundura que se desvela de frente como um irremediável golpe de misericórdia o destino cinzento, pesado, como o fumo negro, como o aço imperturbável. É o futuro dele, é o que espera a quem por ali se acomodar. Resultado imediato: escapa folgado, a coisa irá piorar.

Corpo pulsante em carapaça falsamente niilista que é a imagem do grito e da urgência de Foley - é um filme positivo, pela vida, pelo constante espanto, fugas em estradas perpétuas. Todos a Rimbaud se confessam. Ámen. Um corpo e possivelmente um espirito sempre esvanecente, esfumado, como o cano de escape que lhe afia os instintos. Próxima cena, a mesma velocidade. Um carro carregado de juventude corta fulminantemente o ar e entra no campo de mira que a moto de Rourke cria. Ela, a condutora Tracey, loira de boas famílias, chefe de claque, supostamente perfeita, não se quer desviar dele e deixa germinar mais um pouco o grão de loucura e de verdade que secretamente habita em si. O momento é tenso e separa as águas, quem é quem, e como no anterior abismo todos se safam à última da hora. Como os anjos suspensos que alguns reconhecem.

A narrativa é óbvia, simples, eterna. Que seja Chris Columbus a lançá-la só aclara mais o tabuleiro e a disposição das peças. Transposta para filme por um humilde e calejado pela vida, torna-se essencial. Podiam ou podem ser os rebeldes e outsiders de Coppola, Romeu e Julieta, Adão e Eva, Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, epifania e libertação, corte umbilical, etecetera. Mas as dúvidas desaparecem quando o filme mete a outra mudança. Lucidez é a palavra de ordem. Rourke e Tracey são tão esteticamente belos juntos como passíveis de abanar as fundações morais de uma sociedade, é a paga à inocência. E aí, na sua singeleza e arco clássico, “Reckless” é denso, tão obscuro em relação ao presente e aos seus partos como efusivo em relação à saída de tudo isso. Ela despedaça em coragem última o enxoval parentalmente adquirido, em consequência caí também o namorado capitão de equipa do liceu, outro perfeito. Viraram o mundo.

A outra velocidade, dizia, é a que dispara quando esses dois ali e sempre anjos se desejam e depois se tocam – e Deus aparece e a sua aura, em cinemática forma. Tudo se acalma, tudo se vê claramente visto, um sentido qualquer de repente. Quando se banham como nessa magnífica cena aquecida a azul sereia. (Uma vez por década uma cena assim) Um só grande atrofio nessa retorcida linha: quando mais uma vez ele volta ao local do tudo ou do nada, ao referido buraco, segura Tracy pelos braços e lhe mostra onde eles cairão se não ganharem asas. Estranho mas reconhecível paradoxo: só enfrentando de frente uma das caras da morte se vê o escape. Obviamente o desaparecimento do seu pai, apesar da carga, funciona como lamento, Rourke partiria de qualquer modo.

Primeira mudança, segunda mudança, prego a fundo - embates atordoantes. Águas derretidas. Vermelhos e rosas congelados, distantes, desolados. Mas não vale convocar um Rudolph Arnheim da vida ou uma psicologia da cor. Reckless” é tão fugidio e inesperado como proletariamente descomprometido. Tudo ali serve para todos. Tão comprometido com a flutuação desta vida e com a inteireza como essa câmara que não se virando para nenhum estilo ou tempo específicos pode conter esses tempos todos e essa gama de ângulos.

E partem, a todo o gás e mais algum, ao som de uma balada anos oitenta, deixando a estrada vazia para quem os quiser seguir. Foley usa aí a música como usou quase sempre, houve um ou outro facilitismo que não mancha e ainda amplia humanidade, dito de rajada: estamos num tempo que para sempre se quer assinalável mas também na basta abstração redentora. Arquivo e sagrado. Onde quer que seja alguém sonha um rumorejado horizonte. Ele foge, foge, desafia. Quantas vezes morrer para viver.

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