Um Aidan Quinn não por acaso apelidado de Rourke (, Johnny) no filme inicial de James Foley, “Reckless “, trajado a couro, cabelo solto aos ventos e pela terra de todos ao Deus dará, cessa mais uma etapa de uma obsessiva rotina – pôr a vida à prova. Cenário capital esse precipício, descobriremos a pouco e pouco. É ao fundo dele que o seu pai diariamente se consome, se tenta esquecer da mulher que pôs fora de casa ao pontapé, se afoga ao retardador no álcool que lhe apaga da memória a herança do filho ou a puta ousada. É igualmente nessa fundura que se desvela de frente como um irremediável golpe de misericórdia o destino cinzento, pesado, como o fumo negro, como o aço imperturbável. É o futuro dele, é o que espera a quem por ali se acomodar. Resultado imediato: escapa folgado, a coisa irá piorar.
Corpo pulsante em carapaça falsamente niilista que é a imagem do grito e da urgência de Foley - é um filme positivo, pela vida, pelo constante espanto, fugas em estradas perpétuas. Todos a Rimbaud se confessam. Ámen. Um corpo e possivelmente um espirito sempre esvanecente, esfumado, como o cano de escape que lhe afia os instintos. Próxima cena, a mesma velocidade. Um carro carregado de juventude corta fulminantemente o ar e entra no campo de mira que a moto de Rourke cria. Ela, a condutora Tracey, loira de boas famílias, chefe de claque, supostamente perfeita, não se quer desviar dele e deixa germinar mais um pouco o grão de loucura e de verdade que secretamente habita em si. O momento é tenso e separa as águas, quem é quem, e como no anterior abismo todos se safam à última da hora. Como os anjos suspensos que alguns reconhecem.
A narrativa é óbvia, simples, eterna. Que seja Chris Columbus a lançá-la só aclara mais o tabuleiro e a disposição das peças. Transposta para filme por um humilde e calejado pela vida, torna-se essencial. Podiam ou podem ser os rebeldes e outsiders de Coppola, Romeu e Julieta, Adão e Eva, Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, epifania e libertação, corte umbilical, etecetera. Mas as dúvidas desaparecem quando o filme mete a outra mudança. Lucidez é a palavra de ordem. Rourke e Tracey são tão esteticamente belos juntos como passíveis de abanar as fundações morais de uma sociedade, é a paga à inocência. E aí, na sua singeleza e arco clássico, “Reckless” é denso, tão obscuro em relação ao presente e aos seus partos como efusivo em relação à saída de tudo isso. Ela despedaça em coragem última o enxoval parentalmente adquirido, em consequência caí também o namorado capitão de equipa do liceu, outro perfeito. Viraram o mundo.
A outra velocidade, dizia, é a que dispara quando esses dois ali e sempre anjos se desejam e depois se tocam – e Deus aparece e a sua aura, em cinemática forma. Tudo se acalma, tudo se vê claramente visto, um sentido qualquer de repente. Quando se banham como nessa magnífica cena aquecida a azul sereia. (Uma vez por década uma cena assim) Um só grande atrofio nessa retorcida linha: quando mais uma vez ele volta ao local do tudo ou do nada, ao referido buraco, segura Tracy pelos braços e lhe mostra onde eles cairão se não ganharem asas. Estranho mas reconhecível paradoxo: só enfrentando de frente uma das caras da morte se vê o escape. Obviamente o desaparecimento do seu pai, apesar da carga, funciona como lamento, Rourke partiria de qualquer modo.
Primeira mudança, segunda mudança, prego a fundo - embates atordoantes. Águas derretidas. Vermelhos e rosas congelados, distantes, desolados. Mas não vale convocar um Rudolph Arnheim da vida ou uma psicologia da cor. “Reckless” é tão fugidio e inesperado como proletariamente descomprometido. Tudo ali serve para todos. Tão comprometido com a flutuação desta vida e com a inteireza como essa câmara que não se virando para nenhum estilo ou tempo específicos pode conter esses tempos todos e essa gama de ângulos.
E partem, a todo o gás e mais algum, ao som de uma balada anos oitenta, deixando a estrada vazia para quem os quiser seguir. Foley usa aí a música como usou quase sempre, houve um ou outro facilitismo que não mancha e ainda amplia humanidade, dito de rajada: estamos num tempo que para sempre se quer assinalável mas também na basta abstração redentora. Arquivo e sagrado. Onde quer que seja alguém sonha um rumorejado horizonte. Ele foge, foge, desafia. Quantas vezes morrer para viver.
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