terça-feira, 30 de outubro de 2012
É tramado o Werner Herzog de “Into the Abyss”. Ele, o cineasta que se assume completamente e dá o corpo às balas, assustadoramente cru, áspero e sem contemplações ou moralismos normalmente preservados nos almanaques do bom documentarista. O filme, que é uma imparável circulação e alastramento de morte como eu já não me lembrava desde “Körkarlen” de Victor Sjöström, onde não vingam descrições sobre um suposto despojamento. Se a morte vai acabar por escorregar de plano para plano, pingar, perfurar, carcomer, matar, tudo absorver e afectar, naturalmente um idílico qualquer, um sorriso altivo, um arco-íris de costa a costa vai brotar não se sabe de onde, possivelmente de umas entranhas.
Tudo, mas quando digo tudo pode ser mesmo tudo e os seus limites, cabe nesta paralisante espera pela destruição de um corpo e de um ser que se quer o mais anónimo possível. Esse abismo que vai do quarto do condenado e da sua faustosa refeição final até aos dez passos guiados por quatro guardas, a maca e a injecção letal, a bênção do Padre a seus pés, a plateia e o tempo que orquestra, a entrada do médico, a outra maca já funerária, o cadáver, o seu depósito algures, é o ponto de estupefacção e móbil onde assenta o projecto de Herzog e para onde inevitavelmente se estende a sua investigação policial e humanística. Tudo pode caber em direcção à cortante verificação - a recuperação das impressões de realidade em primeiro grau dos vídeos feitos pelos polícias, a reconstituição passo a passo, o possível preenchimento de espaços vazios, as visitas às casas de todos os parentes, amigos ou burocratas de algum modo associados ao caso, um dos guardas chefes que um dia sucumbiu à falta de respiração, coração, cabeça e estômago; uma mulher que se apaixonou à distância pelo jovem que apanhou uma espécie de perpétua e que sabe-se lá como dele engravidou; o Padre que enterra as vítimas, aparece na primeira sequência que por acaso é a mais aterradora, seca, inacreditável da possibilidade da indiferença entre os homens.
A sequência é assim: o reverendo Richard Lopez, capelão da casa dos mortos, enquadrado fixo e rente às cruzes de um cemitério que ele bastamente ergueu. O que também é tramado aí é que apesar de ele tanto os ter conhecido já não os pode distinguir. Aqueles ali em descanso, que são os que literalmente não tiveram onde cair mortos, alguém que os recolhesse, só por números são identificados. Um número sem nome, sem rosto, sem rasto. Esse Padre diz que vai às terminais cerimónias sem expectativas, basicamente alienado, vivenciar o que Deus preparou para ele, para eles, para todos os envolvidos, entrega-se completamente a Deus, acredita num sentido superior, deixa que as coisas aconteçam de acordo com o tempo. Por que Deus permite a pena capital, pergunta Herzog. O Padre responde que não sabe a resposta. Acredita que há sempre um propósito que leva Deus a autorizar que coisas assim aconteçam. O Padre chega às lágrimas quando conta que nas suas divagações pela natureza consegue parar o seu carro de golfe a tempo de não matar dois esquilos e que…não pode fazer o mesmo na sala fatal das injecções. Chora, toma posição, despe a bata.
Assim mesmo, Herzog escava sempre fundo, põe em perigo a enxada, quer o relato, os comos e porquês, o que foi e o que teria sido, causas e consequências, emoções e gritos de revolta, transparências e intimismos. Defende a sua dama, a crença de que a pena de morte é um crime, um mal monstruoso de lógica e de ética, etc. E se enfrenta sem meias medidas os monstros do corredor da morte que afinal parecem meninos, frontalmente, sinceramente, tudo lhes crendo sacar; se relembra aos envolvidos os piores momentos e o pior de tudo, se igualmente não perdoa coisas e até reafirma, também no final deseja tudo de bom ao estranhamente pacificado e complexo Michael Perry que já sente a agulha e, principalmente, utiliza o meio pelo qual moldou a sua démarche, ou seja, a câmara de filmar, para que todos façam a sua catarse, cheguem à sua verdade, possam até arrumar a casa, seguir em frente possivelmente.
Como o cinema já serviu e pode continuar a servir para isto…neste frio e directo Herzog há igualmente perdão para toda a gente. Tal como o Pai do referido jovem que apesar de tudo ainda poderá sair aos sessenta anos, esse Pai de dois metros que não para de verter lágrimas pela cruz carregada, que pediu aos juízes para ser ele a cumprir a pena do filho Jason Burkett, assumindo-se culpado pela má formação; Pai que não se perdoa de um dia o terem algemado ao filho e que vive na cadeia em frente onde a sábia e inflexível montagem do alemão une e torna a dor inexoravelmente aguda e as certezas dúbias. Verdadeiramente dialéctico, amarrado e desamarrado por brutas forças contraditórias e complementares, é o essencial e vital gesto político porque correspondente ao sensível. Nunca se esconde. É por isso que “Into the Abyss” será das coisas que presentemente fazem mais sentido, absolutamente cravadas no real e nas suas leis, absolutamente imerso em pantanosos terrenos da delicadeza da memória, dos afectos, singularidades, escuridão final…ficção. Personagens num enublado berço universal. Ainda se escutam ecos, senhor Renoir, senhor Tolstoy.
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