Os ordinários embebedam-se a whiskey, os
extraordinários com poder. A força cria líderes, mas também acaba por os
destruir. Isto são coisas que um médico literalmente cospe à autoridade trucidante
de uma cadeia de alta segurança cercada por água. Estamos em 1947, numa América
recôndita representada nos estúdios da Universal, e com o infinito alcance que
os grandes e implacáveis filmes de Julles Dassin sempre bradaram. Sem perdão,
remissão ou abébias para quem as não merece. Como “Un condamné à mort s'est
échappé” só aparentemente estamos num prison movie típico, onde a personagem de
Burt Lancaster (aqui com o sangue a ferver mais próximo de Siodmak do que de
Visconti) não é o artista principal, como não o é o fabuloso médico de Roman
Bohnen, o grupo de cinco da cela R17 ou qualquer outro que se imole por uma
fuga sonhada nas noites de suor, paixão ou insónia. Daqueles cinco a que Dassin
se coloca lado a lado connosco, para escutarmos jogadas, promessas e sonhos, todos
eles e nós e filme vamos ter um paraíso que rasga o infernal presente. Em
flashbacks que suspendem o tom ostracizante e vingativo em causa mas que por
outro lado insuflam de gravidade e de energia armazenada, de carga explosiva
para gastar no momento devido.
“Brute Force” trabalha a duas grandes pulsões
opostas, jamais reconciliáveis, e que logo sabemos irão chocar
devastadoramente, em proporções desconhecidas. A sede de poder da tal
autoridade cega chamada Capt. Munsey, contra o inaceitável totalitarismo que
faz no último segundo os fugitivos embarcarem numa missão que descobrem ser cientificamente
suicida, dispensando o acomodamento como o paraíso. O Capt. Munsey quer ser Gengis
Khan, Alexandre o Grande, César, isto é o que lhe cospe ainda com mais subtil
força o tal médico-borrachão-filósofo que funciona como divindade tal como
aquele preso cantante se faz cruel palhaço. E por datas e tempos destes também
está ali senão um Hitler, pelo menos um Hitlerzinho. Enquanto Lancaster, o seu
bando, o jornalista do também soberbo e discreto Charles Bickford neste
festival de actores soberbos, os outros trinta ou quarenta ou umas centenas ou
uma terra inteira, apenas, e que apenas, vão guinar o seu plano primeiro e os
beijos às suas amadas para matarem a Força Bruta. Mais do que a liberdade, o
amor, ali, naquele palco inconcebível, intolerável, naquelas insuportáveis
visões de planos gloriosamente contrapicados à Leni Riefenstahl em que um
monstro glutão do globo se agiganta, o que importa é exterminá-lo. Ainda por
maior amor. Pode-se?
Para tamanho impacto, tamanha missão, cisão e pacto,
a encenação de Dassin, para fazer sentido, teria de estar à altura da encenação
do mal absoluto. Para sequer a luta ser possível antes de resultados práticos
de combate. E é preciso ser-se tão guerreiro, feito de aço e generoso como os
fiéis presos para que as formas desde logo e cada vez mais se revistam de indestrutibilidade,
um metal intransponível de luzes e sombras, uma capa retaliadora. Dassin está à
altura e vai de frente com tudo. Leva-se mesmo o absurdo até ao fim e aqueles
homens com as suas fardas, chapas, olhos e pertences confundem-se ou fundem-se
com os fundos, as grades, as poucas máquinas, o soro outro da choça, o nojo, o
despojamento e o céu deles escondido. Vai ser preciso extrair a frio a
humanidade àquela massa una e chafurdada, frio das balas de metralhadora e dos incêndios
contraproducentes, e obviamente que as fundações vão gripar, pôr-se em questão.
Lancaster leva um tiro em cheio mas não cai, caminha morto e elimina com a sua
força sobrenatural toda aquela metafisica em acção de quem quer ter o mundo na
palma das mãos. Não por acaso se tinha fechado o tiranete numa sala a música
clássica e a tortura e chamado o Chaplin de “The Great Dictator” a terreiro e a
testemunho.
Um homem a fundir-se noutro, o noutro em vários
e esses nas massas que como numa sequela de “Metrópolis” despertarão e
fuzilarão sem pedir licença a quem de direito. O movimento da violência e da
contrarresposta final, bem como a superação de Lancaster, a superação geral,
esse movimento atómico e viscéreo em que as carnes e garras dos homens fazem
corpo com a estética do cinema que não se coloca acima do que está em causa, é
indefinível e como a grande arte ou a vida plena só faz sentido no acto da
experiência. Uma chance em um milhão e a vitória da derrota. O lançamento ou
apagamento final deste projéctil de uma silenciosa e drástica poesia
entrecortada a uivos de não desistência é o definitivo cortar da distância ou
truque da ficção. O médico olha-nos, olha-nos cortantemente e desconcertado
como sempre actuou ou respirou, e fala-nos da nossa teimosia. Da teimosia e da
força. “Brute Force” é o mais terrível horror, mas também a mais sublime
dádiva.
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