quinta-feira, 28 de novembro de 2013

 
“The Last Run” é de 1971 e assim encontrámos Richard Fleischer já fora do grande ou do pequeno estúdio, por outras terras que não as da Califórnia. Trabalho carpinteirado ainda com mais artesanato e calejamento do que quando se aventurava entre fumos e maquetas em série e por si apropriadas, pertence à estética, cheiro e combustão orgânica que sobretudo desde “The Boston Strangler” começou a tomar conta de um lado da sua riquíssima obra, lado de uma certa doença geral e de uma certa desilusão sem filtros. Soturnos contos banhados por doenças que porém nunca surgem sublinhadas ou ostensivamente demarcadas pelas mantas habituais da sociologia ou da psicologia, tudo faz parte da derrapagem a que estamos sujeitos e o olhar de cineasta é sempre preciso, decantado e desencantado. O deformado split screen (shame on you série 24!; We Can't Go Home Again rules!) e a pressão demencial e sem explicação do filme de 1968 que acaba com uma fusão a branco do corpo e da cabeça de Tony Curtis com o ecrã uno e abismal do buraco negro que por natureza o cinematógrafo é, será de uma vez o auge e o alastramento para o grito da nossa impossibilidade de controlo, alinhamento, paz. Sem maniqueísmo e com uma disponibilidade e logo ambiguidade que vai de Dostoiévski a Renoir. Por isso mesmo em “10 Rillington Place” já está tudo doente e não somente o eunuco bebé envelhecido de Richard Attenborough, mas também o bebé efectivo e o que está numa barriga, o casal com todas as esperanças e sonhos, bem como todo o espaço daquela casa assombrada mas também a rua, as montanhas longínquas que acusam ainda mais, a derme e a epiderme e todo o cavo que a câmara olha e perfura sem freios. Assim fecha em paralítico final – olhem bem o mal e vejam se não o confundem com a mais inocente pedra da calçada pisada por todos. Do mesmíssimo ano de Last Run e 10, três petardos num ano já é coisa do antigamente, Fleischer ainda voltou a uma Inglaterra mais interior do que a de Rillington, observando o estoico corpo sem olhos e à deriva pelo cosmos de Mia Farrow perigado por uns olhos desencorpados e sem credo que atrofia e impossibilita cada plano. Em “See No Evil” ou “Blind Terror” chamado, tudo é ainda ordenado pela batuta da Mãe natura e do universo ecoante, mal metafisico em contacto com uma pureza e apenas o acaso como eventual salvação, num subestimado filme que jamais é só exercício ou sucedâneo do sucesso de “Rosemary's Baby”, pois, se quisesse ir mais além diria que este terror adjacente da normalidade pode assustar mais do que as ceitas de Polanski. Depois do filme em que me vou meter que se veja igualmente e para efeitos comprovativos ou de dor de barriga a mortandade imparável, casual e lamentavelmente lógica que arrebenta em “The Don Is Dead”, companheiro de todos os Padrinhos de Coppola e antecipador dos Scorseses mafiosos, estratosférica violência encenada com a secura de Robert Bresson a Donald Siegel. E que não se menospreze a saga americana da terra e da honra na qual Charles Bronson em underacting desossado protege contra tudo e todos as suas melancias da corrupção, “Mr. Majestyk” é já de 1974. Mais e mais obras ou simples passagens de viagens fantásticas ou aventurosamente infantes poderia atirar para a mesa.
 
“The Last Run” é então tempo e também espaço para coisas surpreendentes e comoção aguda, daquela quando se sabe que o tempo não perdoa e que tantos paraísos já secaram. Tempo, esse escultor e justiceiro maravilhoso mas também o impiedoso. Temos o grande muito grande Sven Nykvist saído de Ingmar Bergman para possuir literalmente imagens justas porque sujas, borradas de manchas de um tempo e de tipos infelizmente “novos”. Jerry Goldsmith com a sua música na ponta da navalha. E a geografia inigualável porque tão marcada de passado que começa por terras Portuguesas em serras e mares algarvios mas escarpados, serras outras e planícies outras sem legenda, tão bonitas e tão ameaçadores, atravessa fronteiras Espanholas e chega a pisar França. E como cada piso cada língua, e cada brilho e odor, até neste particular a que muitos, inclusive os grandes desprezaram a favor de outros propósitos, o cineasta se aplica e por isso a gama dramatúrgica vai ficando cada vez mais encorpada, pintura e coro. Quanto a estas coisas, tudo faz parte da empreitada e poderia ter sido por aqui ou no lado oposto, com estes ajudantes ou outros, que tudo se comporia no olhar camaleónico e na mão atraente porque fiel de Fleischer, sem desculpa ou sem divagação. Nunca comércio, turismo ou palmadinhas nas costas para coproduções futuras ou amabilidades criticas flanqueadoras.
 
Numa vilazinha piscatória vamos encontrar Harry Garmes, tronco sabido e consequentemente sem muitos sorrisos ou palavras a não ser o essencial que costuma doer quando sai, e vamo-nos lembrar muito da sua personagem também já reformada da policia que respirou em “The New Centurions”, sim, aquele que não tinha muito para fazer e que meio tímido voltava à velha esquadra e aos velhos comparsas, que se descobria mesmo assim desamparado e virava o cano da arma contra si e puxava de gatilho. Vamos ter com ele a uma velha garagem escura, ao automóvel de guerra e de sobrevivência, aos trabalhos de mão e ao apagar de uma luz antes do tremeluzir de outras. Vamos acelerar a seu lado de modo suicidário, mas sozinho vai recusar-se a morrer a pior das mortes, a que vem muito lentamente antes da inexploração de toda a incomensurabilidade da raça. E vai, vai à luta, vai provar que as veias ainda têm sangue, o coração pulsa e o medo real e a transgressão essencial existem.
 
Uma última missão, uma última corrida, dizem as parangonas: que do argumento então é largar a sua pesca fictícia e a sua prostituta honesta, a sua espera pelo que não há-de vir, meter-se com criminosos e não saber o dia seguinte, resgatar um puto fala-barato com a namorada mais esperta e bonita do que ele, apaixonar-se novamente ou aparentemente, largar bala e fazer escorrer sangue, orientar ou esmurrar os de amanhã e os amanhãs, debater-se com a sua religiosidade…desenganar-se definitivamente. Isto é a acção, e é fulminantemente filmada, montada, vivida, sentida pelas guelras em direcção a voos outros de significâncias e transcendências para além da impagável fruição. Lugares e medidas recônditas para além do cinema e das suas superfícies. Pois o fundamental é de outra ordem: começa desde a primeira aparição pesada e enrugada de Scott mas pode ser centrada no momento em que ele prega dois socos ao jovem feio espertinho que é Rickard. Scott tem a gentileza de o fazer fora do alcance da namorada dele e assim expor a sua dimensão moral, que é a de que mesmo fazendo coisas do diabo e podendo algures ser o pior deles, é Homem que acredita, Homem teimoso. Algo que naquele tempo como hoje ainda mais não faz qualquer sentido para a maioria. E pode ser ridículo ver esse homem pausado, duro e frágil a sentir-se leve por se ter confessado ao ar ou a fantasmas numa igreja que calhou.
 
O que temos é então o encontro entre duas Humanidades distintas, que poderão ser dois Mundos, duas Sociedades, e a clivagem pasmosa. Uma a morrer e sem parentes, outra a propagar-se como o pior dos vírus. Paul Rickard, esse engraçadinho que trata tudo como objectos dispensáveis, como lixo, apesar de tudo ainda vai aprender algumas coisas à custa de muita cabeçada – se o filme fosse refeito agora não aprenderia nada de nada. É um palhacinho, um irónico, um pós-moderno como tantos de hoje com as suas maneiras de estar e a sua arte de pacotilha. Ainda num outro dia um amigo me dizia verdades verdadeiras, por causa do melhor programa televisivo de que me lembro, chamado Play-Off e realizado autoralmente pela Sic Notícias, sobre o irreconciliável que é o embate entre o velho Lobo que é Toni Oliveira, o nosso John Wayne com o único bigode hoje em dia admissível, e o tecnocrata com todas as certezas feitas que é o Rui Santos das pantufas e das estatísticas sem margens para dúvidas. Jamais Santos irá compreender do que trata o olhar e as sentenças que surgem como marteladas bem assentes do grande Toni, humildade e saber que vem de um tempo com outros valores, limpidez e possibilidades inclusive mitológicas. Tempo em que o amor e as serenatas faziam sentido e os lamechas não eram “lamechas”. Tempo em que se vibrava com Camões. Às vezes, ali no quadrado ilusório dos raios catódicos ou nos nossos passeios quotidianos, parece-me ver robôs a interagir ou a tentar interagir com pessoas, frieza e calculismo contra agitação e abertura. Um boi a olhar para um palácio. Um lingrinhas para um monstro.
 
O novo e o velho é aqui o foco, tal como o era em Eisenstein, não como saudosismo ou lamurio inútil, sim como constatação do declínio e do degredo presente bem como das utopias de outrora. É como passar das lágrimas e das fundações a cimento de David W. Griffith e de Frank Borzage ainda cultivadas pelo actual e já ameaçado James Gray, para os bonecos, caricaturas balofas e água-de-colónia insuportável do “actual” e tão acarinhado Wes Anderson. “The Last Run” é sobre a utopia e é algo em si utópico e já ali anacrónico, com o milagre da sua construção e da progressão em dimensões ainda gigantescas, cravado em química e por física que não só virtual – coisa que só alguns grandes com muitas feridas atingem lá para o fim.
 
Fim, é o que Scott entrevê quando olha para o relógio antes de ir para a cama com a jovem resistente. Dizendo-lhe de chofre e sem pré-aviso que o tempo é o único inimigo. E os ponteiros vão-se cansando, cansando. Até se deterem na tragédia final que apesar disso é mais cante de cisne, melodia e pincelada a ver com quedas que metem pena mas belas apesar do resultado, e nunca subordinação mas ousada e derradeira insurreição. Confessando-lhe também que aceitou não pertencer a lado algum. Daí que não será citado entre os imortais da imortal história. Aceitando-se mortal e apenas um normal das singelas recordações de aldeia, e Fleischer a par dele com a devida irmandade, sem usura ou solenidade, oferecendo-lhe uma morte tão sacra e silenciosa como a que deu ao Robert Forster no “The Don is Dead” - algo a remeter para a qualidade impossível da luz milagrosa e tenebrosa que vai certificando e atormentando o colosso aninhado de "Barabba" (1961) depois da suposta libertação e das respectivas visões na mais visionária das suas criações? Se Scott muito mudou de lugar e muito usou de contradição, o seu “I Stay”, à imagem do de Curd Jurgens de “Bitter Victory” é humanista, a ver com o berço, necessário. É um “eu resisto”, não me emporcalho, nem que morra todo.
 
Apetece-me ir outra vez de guinada ao início da narrativa e à cena do quarto da prostituta que só o é profissionalmente e não de coração, e estou a citar Scott, quando ele fala da sua mulher que igualmente fugiu, mulher de corpo de prata e seda, olhos azuis brilhantes. Virando-se surpreendida a sua nobre companheira e reconhecendo diferenças, mesmo que ele só ali esteja por necessidades animais. É já sintomático porque mais que romantismo ou poesia ou cavalheirismo, é verdade exposta, alma e carne e vida, sem hipótese de ser doutra maneira. Ninguém lhe falaria assim, ninguém lhe confiaria dinheiro vital. E essas pausas dele, essas ponderações, dúvidas, cigarros pensados e vilipendiados, rumorejos finos, dores de costas e de ossos, rosto de incalculáveis relevos e rupturas a sorriso e choro, rosto duro talhado sobre o granito da memória, interior convulso e indigestões mas também apaziguamento crepuscular, é a força dele e a ousadia da firmeza. Estamos perante um duelo e o realizador e o descomunal actor principal que pode ser cada um que queira não vai facilitar. Quanta mais força melhor. A moral que importa, a moral custosa. No fundo de um buraco de chafurdanço como em noites longas (e tão brancas…) olha-se para o tecto e vê-se claramente visto, é a droga da adrenalina procurada por Scott e o terrível que é estagnar. É preciso suar ou só andamos aqui a brincar. Scott antecipou que a jovem não o queria, mas tiveram o seu recatado céu. Sem rendição.
 
E não pondo de parte que John Huston é citado como co-realizador e terá feito umas coisas, o que faz todo o sentido e acrescenta mais camadas poéticas e vísceras, pois tal como Hawks, o já citado Duke ou o anjo Mitchum, era dos que bebia dias e noites seguidas e depois perguntava aos que não bebiam, quando o trabalho urgia e tinha de ser feito, o porquê de eles estarem tão cansado. Pumba. Tiro e queda. Já devia ter acabado, mas, só para conversar mais um bocadinho, a modernidade da arte como do dia-a-dia sempre esteve em arranjar as formas adequadas ao que se trata, ao que se tem na frente, se sente. Em todos estes filmes que citei, é assim, e então agora, faça-se lá as contas outra vez.
 


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