“The Last Run” é de 1971 e assim encontrámos
Richard Fleischer já fora do grande ou do pequeno estúdio, por outras terras
que não as da Califórnia. Trabalho carpinteirado ainda com mais artesanato e
calejamento do que quando se aventurava entre fumos e maquetas em série e por
si apropriadas, pertence à estética, cheiro e combustão orgânica que sobretudo
desde “The Boston Strangler” começou a tomar conta de um lado da sua riquíssima
obra, lado de uma certa doença geral e de uma certa desilusão sem filtros. Soturnos
contos banhados por doenças que porém nunca surgem sublinhadas ou
ostensivamente demarcadas pelas mantas habituais da sociologia ou da psicologia,
tudo faz parte da derrapagem a que estamos sujeitos e o olhar de cineasta é
sempre preciso, decantado e desencantado. O deformado split screen (shame on
you série 24!; We Can't Go Home Again rules!) e a pressão demencial e sem
explicação do filme de 1968 que acaba com uma fusão a branco do corpo e da
cabeça de Tony Curtis com o ecrã uno e abismal do buraco negro que por natureza
o cinematógrafo é, será de uma vez o auge e o alastramento para o grito da
nossa impossibilidade de controlo, alinhamento, paz. Sem maniqueísmo e com uma
disponibilidade e logo ambiguidade que vai de Dostoiévski a Renoir. Por isso
mesmo em “10 Rillington Place” já está tudo doente e não somente o eunuco bebé
envelhecido de Richard Attenborough, mas também o bebé efectivo e o que está
numa barriga, o casal com todas as esperanças e sonhos, bem como todo o espaço
daquela casa assombrada mas também a rua, as montanhas longínquas que acusam
ainda mais, a derme e a epiderme e todo o cavo que a câmara olha e perfura sem
freios. Assim fecha em paralítico final – olhem bem o mal e vejam se não o
confundem com a mais inocente pedra da calçada pisada por todos. Do mesmíssimo
ano de Last Run e 10, três petardos num ano já é coisa do antigamente,
Fleischer ainda voltou a uma Inglaterra mais interior do que a de Rillington, observando
o estoico corpo sem olhos e à deriva pelo cosmos de Mia Farrow perigado por uns
olhos desencorpados e sem credo que atrofia e impossibilita cada plano. Em “See
No Evil” ou “Blind Terror” chamado, tudo é ainda ordenado pela batuta da Mãe
natura e do universo ecoante, mal metafisico em contacto com uma pureza e
apenas o acaso como eventual salvação, num subestimado filme que jamais é só
exercício ou sucedâneo do sucesso de “Rosemary's Baby”, pois, se quisesse ir
mais além diria que este terror adjacente da normalidade pode assustar mais do
que as ceitas de Polanski. Depois do filme em que me vou meter que se veja igualmente
e para efeitos comprovativos ou de dor de barriga a mortandade imparável,
casual e lamentavelmente lógica que arrebenta em “The Don Is Dead”, companheiro
de todos os Padrinhos de Coppola e antecipador dos Scorseses mafiosos,
estratosférica violência encenada com a secura de Robert Bresson a Donald Siegel.
E que não se menospreze a saga americana da terra e da honra na qual Charles
Bronson em underacting desossado protege contra tudo e todos as suas melancias
da corrupção, “Mr. Majestyk” é já de 1974. Mais e mais obras ou simples passagens
de viagens fantásticas ou aventurosamente infantes poderia atirar para a mesa.
“The Last Run” é então tempo e também espaço
para coisas surpreendentes e comoção aguda, daquela quando se sabe que o tempo
não perdoa e que tantos paraísos já secaram. Tempo, esse escultor e justiceiro
maravilhoso mas também o impiedoso. Temos o grande muito grande Sven Nykvist
saído de Ingmar Bergman para possuir literalmente imagens justas porque sujas,
borradas de manchas de um tempo e de tipos infelizmente “novos”. Jerry
Goldsmith com a sua música na ponta da navalha. E a geografia inigualável
porque tão marcada de passado que começa por terras Portuguesas em serras e
mares algarvios mas escarpados, serras outras e planícies outras sem legenda,
tão bonitas e tão ameaçadores, atravessa fronteiras Espanholas e chega a pisar
França. E como cada piso cada língua, e cada brilho e odor, até neste
particular a que muitos, inclusive os grandes desprezaram a favor de outros propósitos,
o cineasta se aplica e por isso a gama dramatúrgica vai ficando cada vez mais
encorpada, pintura e coro. Quanto a estas coisas, tudo faz parte da empreitada
e poderia ter sido por aqui ou no lado oposto, com estes ajudantes ou outros,
que tudo se comporia no olhar camaleónico e na mão atraente porque fiel de
Fleischer, sem desculpa ou sem divagação. Nunca comércio, turismo ou
palmadinhas nas costas para coproduções futuras ou amabilidades criticas
flanqueadoras.
Numa vilazinha piscatória vamos encontrar Harry
Garmes, tronco sabido e consequentemente sem muitos sorrisos ou palavras a não
ser o essencial que costuma doer quando sai, e vamo-nos lembrar muito da sua
personagem também já reformada da policia que respirou em “The New Centurions”,
sim, aquele que não tinha muito para fazer e que meio tímido voltava à velha
esquadra e aos velhos comparsas, que se descobria mesmo assim desamparado e
virava o cano da arma contra si e puxava de gatilho. Vamos ter com ele a uma
velha garagem escura, ao automóvel de guerra e de sobrevivência, aos trabalhos
de mão e ao apagar de uma luz antes do tremeluzir de outras. Vamos acelerar a
seu lado de modo suicidário, mas sozinho vai recusar-se a morrer a pior das
mortes, a que vem muito lentamente antes da inexploração de toda a
incomensurabilidade da raça. E vai, vai à luta, vai provar que as veias ainda
têm sangue, o coração pulsa e o medo real e a transgressão essencial existem.
Uma última missão, uma última corrida, dizem as
parangonas: que do argumento então é largar a sua pesca fictícia e a sua
prostituta honesta, a sua espera pelo que não há-de vir, meter-se com
criminosos e não saber o dia seguinte, resgatar um puto fala-barato com a
namorada mais esperta e bonita do que ele, apaixonar-se novamente ou
aparentemente, largar bala e fazer escorrer sangue, orientar ou esmurrar os de
amanhã e os amanhãs, debater-se com a sua religiosidade…desenganar-se
definitivamente. Isto é a acção, e é fulminantemente filmada, montada, vivida,
sentida pelas guelras em direcção a voos outros de significâncias e
transcendências para além da impagável fruição. Lugares e medidas recônditas
para além do cinema e das suas superfícies. Pois o fundamental é de outra
ordem: começa desde a primeira aparição pesada e enrugada de Scott mas pode ser
centrada no momento em que ele prega dois socos ao jovem feio espertinho que é Rickard.
Scott tem a gentileza de o fazer fora do alcance da namorada dele e assim expor
a sua dimensão moral, que é a de que mesmo fazendo coisas do diabo e podendo
algures ser o pior deles, é Homem que acredita, Homem teimoso. Algo que naquele
tempo como hoje ainda mais não faz qualquer sentido para a maioria. E pode ser
ridículo ver esse homem pausado, duro e frágil a sentir-se leve por se ter
confessado ao ar ou a fantasmas numa igreja que calhou.
O que temos é então o encontro entre duas
Humanidades distintas, que poderão ser dois Mundos, duas Sociedades, e a
clivagem pasmosa. Uma a morrer e sem parentes, outra a propagar-se como o pior
dos vírus. Paul Rickard, esse engraçadinho que trata tudo como objectos
dispensáveis, como lixo, apesar de tudo ainda vai aprender algumas coisas à
custa de muita cabeçada – se o filme fosse refeito agora não aprenderia nada de
nada. É um palhacinho, um irónico, um pós-moderno como tantos de hoje com as
suas maneiras de estar e a sua arte de pacotilha. Ainda num outro dia um amigo
me dizia verdades verdadeiras, por causa do melhor programa televisivo de que
me lembro, chamado Play-Off e realizado autoralmente pela Sic Notícias, sobre o
irreconciliável que é o embate entre o velho Lobo que é Toni Oliveira, o nosso
John Wayne com o único bigode hoje em dia admissível, e o tecnocrata com todas
as certezas feitas que é o Rui Santos das pantufas e das estatísticas sem
margens para dúvidas. Jamais Santos irá compreender do que trata o olhar e as sentenças
que surgem como marteladas bem assentes do grande Toni, humildade e saber que vem
de um tempo com outros valores, limpidez e possibilidades inclusive mitológicas.
Tempo em que o amor e as serenatas faziam sentido e os lamechas não eram
“lamechas”. Tempo em que se vibrava com Camões. Às vezes, ali no quadrado
ilusório dos raios catódicos ou nos nossos passeios quotidianos, parece-me ver
robôs a interagir ou a tentar interagir com pessoas, frieza e calculismo contra
agitação e abertura. Um boi a olhar para um palácio. Um lingrinhas para um
monstro.
O novo e o velho é aqui o foco, tal como o era
em Eisenstein, não como saudosismo ou lamurio inútil, sim como constatação do
declínio e do degredo presente bem como das utopias de outrora. É como passar
das lágrimas e das fundações a cimento de David W. Griffith e de Frank Borzage
ainda cultivadas pelo actual e já ameaçado James Gray, para os bonecos,
caricaturas balofas e água-de-colónia insuportável do “actual” e tão acarinhado
Wes Anderson. “The Last Run” é sobre a utopia e é algo em si utópico e já ali
anacrónico, com o milagre da sua construção e da progressão em dimensões ainda
gigantescas, cravado em química e por física que não só virtual – coisa que só
alguns grandes com muitas feridas atingem lá para o fim.
Fim, é o que Scott entrevê quando olha para o
relógio antes de ir para a cama com a jovem resistente. Dizendo-lhe de chofre e
sem pré-aviso que o tempo é o único inimigo. E os ponteiros vão-se cansando,
cansando. Até se deterem na tragédia final que apesar disso é mais cante de
cisne, melodia e pincelada a ver com quedas que metem pena mas belas apesar do
resultado, e nunca subordinação mas ousada e derradeira insurreição. Confessando-lhe
também que aceitou não pertencer a lado algum. Daí que não será citado entre os
imortais da imortal história. Aceitando-se mortal e apenas um normal das singelas
recordações de aldeia, e Fleischer a par dele com a devida irmandade, sem usura
ou solenidade, oferecendo-lhe uma morte tão sacra e silenciosa como a que deu
ao Robert Forster no “The Don is Dead” - algo a remeter para a qualidade
impossível da luz milagrosa e tenebrosa que vai certificando e atormentando o
colosso aninhado de "Barabba" (1961) depois da suposta libertação e
das respectivas visões na mais visionária das suas criações? Se Scott muito
mudou de lugar e muito usou de contradição, o seu “I Stay”, à imagem do de Curd
Jurgens de “Bitter Victory” é humanista, a ver com o berço, necessário. É um “eu
resisto”, não me emporcalho, nem que morra todo.
Apetece-me ir outra vez de guinada ao início da
narrativa e à cena do quarto da prostituta que só o é profissionalmente e não
de coração, e estou a citar Scott, quando ele fala da sua mulher que igualmente
fugiu, mulher de corpo de prata e seda, olhos azuis brilhantes. Virando-se surpreendida
a sua nobre companheira e reconhecendo diferenças, mesmo que ele só ali esteja
por necessidades animais. É já sintomático porque mais que romantismo ou poesia
ou cavalheirismo, é verdade exposta, alma e carne e vida, sem hipótese de ser
doutra maneira. Ninguém lhe falaria assim, ninguém lhe confiaria dinheiro
vital. E essas pausas dele, essas ponderações, dúvidas, cigarros pensados e
vilipendiados, rumorejos finos, dores de costas e de ossos, rosto de incalculáveis
relevos e rupturas a sorriso e choro, rosto duro talhado sobre o granito da memória,
interior convulso e indigestões mas também apaziguamento crepuscular, é a força
dele e a ousadia da firmeza. Estamos perante um duelo e o realizador e o
descomunal actor principal que pode ser cada um que queira não vai facilitar.
Quanta mais força melhor. A moral que importa, a moral custosa. No fundo de um
buraco de chafurdanço como em noites longas (e tão brancas…) olha-se para o
tecto e vê-se claramente visto, é a droga da adrenalina procurada por Scott e o
terrível que é estagnar. É preciso suar ou só andamos aqui a brincar. Scott
antecipou que a jovem não o queria, mas tiveram o seu recatado céu. Sem
rendição.
E não pondo de parte que John Huston é citado como
co-realizador e terá feito umas coisas, o que faz todo o sentido e acrescenta
mais camadas poéticas e vísceras, pois tal como Hawks, o já citado Duke ou o
anjo Mitchum, era dos que bebia dias e noites seguidas e depois perguntava aos
que não bebiam, quando o trabalho urgia e tinha de ser feito, o porquê de eles
estarem tão cansado. Pumba. Tiro e queda. Já devia ter acabado, mas, só para
conversar mais um bocadinho, a modernidade da arte como do dia-a-dia sempre
esteve em arranjar as formas adequadas ao que se trata, ao que se tem na frente,
se sente. Em todos estes filmes que citei, é assim, e então agora, faça-se lá
as contas outra vez.
Sem comentários:
Enviar um comentário