segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

 
 
“A atracção pelo abismo faz esquecer o perigo da morte que é, dentre as coisas prometidas pela vida, a única que está garantida.”
Manoel de Oliveira, em conversa com Antoine de Bacque e Jacques Parsi
 
 
“The Green Berets”, segunda experiência de John Wayne creditado como realizador, aqui ajudado pelo homem dos visual effects duros e subtis que foi Ray Kellogg, dificilmente será alguma vez visto sem o boca-a-boca do filme pró-guerra, fascista ou intolerante. Mais coisa menos coisa, para quem se estiver a borrifa para endeusamentos cegos ou solenidades com pés de barro ou pelo contrário considerar Wayne um deles, tudo o que os tão inteligentes a partir dos laptops e do rabo estatelado na poltrona disseram sobre Cimino, Coppola, e mesmo Ford, Hawks ou Walsh, ou, para ir aos tempos das penas e da tinta, Griffith e companhia. Tornando-se tais discursos com pretensões superiores de uma maldade e simplismo tão perigoso do que aquilo que acusam. Ora aqui está uma daquelas não-obras-primas que importam, formalmente montanhosa e bruta como os prepósitos, precipícios e ar que habita, emocionalmente escancarada e viva demais como as verdades complexas, ardente e esconsa e sem os filtros das uniformizações de qualidade de embrulho. Por vezes um pouco tosca, por vezes sincera em demasia pois feita pelo homem convulso e não pela fria máquina em série, a falha com as suas misérias ao invés da perfeição rumo ao declínio; às vezes tão elegíaca como os mais elegíacos clássicos ou orações.
 
O Senhor David é racista, o Senhor Raoul só mostra o lado Americano e dizima o resto, o senhor Michael pisa orgulhosamente cadáveres alheios. Duke, o conservador e republicano furibundo, o tal que vota Goldwater, é, neste libelo que vai espraiando as sedes e destinos de quem pela terra desfilou, antigos testamentos e testemunhos ou 2001 Odisseia no espaço, corpos nus em terras virgens até zeros e uns revolucionários, o homem que comanda os boinas verdes treinados para matar, esses que como se diz na partida apenas respondem por si em nome de algo superior que os abarca e os reduz. Assim posto, vamos segui-los ao Vietname que funciona como palco pulsional e natural da sobrevivência, confluência de paixões sem volta a dar e de ódios sem remetente, onde vão ser eles mesmos. E de repente a data 1968 deixa cair os contextos e o caldo politicamente comprometido para se transformar na mais duradoura das nossas questões. Destruímo-nos para quê, porquê, como e quando, estas e mais as dúvidas soturnas que nem sabemos pôr.
 
“The Green Berets” é um filme no qual o chefe bebe whiskey com o subalterno à hora negra da morte deste, um homem perdoa a uma mulher a sua perdição velha como o resto, uma criança é adoptada vezes sem conta até à meta da eternidade. Que fecha a cair-do-sol quente e jovem, alaranjado, efabulatório, não desistente. Mas, sobretudo sobretudo, que é tão articulado pela criança sem lados ou manhas que pulula solta como o vento ou as balas, como pelo jornalista a que David Janssen dá corpo e permite maleabilidades que adensam toda a dramaturgia da irresolução que é o centro nuclear. O seu confronto com Wayne e consigo decidem tudo e é a imagem que se solta flamejante deste movimento infernal. No seu primeiro mano a mano o jornalista interpela de lado o guerreiro, diz-lhe que não acredita na necessidade de invasão. O guerreiro pergunta-lhe se já lá esteve na arena onde tudo se decide. Perante resposta negativa quem a deu nem merece mais diálogo, antes um virar de costas e ignorância com causa. Um é muito fácil falar no conforto, exactamente como os críticos de cinema ou especialistas em assuntos gerais acima referidos. A coisa vai evoluindo, o jornalista vai à guerra. E vê corpos a capitularem derradeiramente. No segundo confronto em grande-plano entre os dois, a coisa já pia fininho, já se respeitam frontalmente. O que vais escrever nesse teu jornal? Se escrevesse o que queria perdia o emprego. Reconhecem-se na circunstância e nos ecos longínquos percebem-se, dão a mão, o guerreiro até lhe oferece trabalho. No terceiro momento significativo de Jansen, já está liberto da sombra da experiência e do calejamento que até ali o rebaixou ao seu lugar merecido, e assim mesmo é ele que decide entrar no pelotão. Que se percebe nesse momento sinceridade própria. Lição produtiva onde se pensa que elas não entram.
 
Em tão grandes conflitos e tensões e antes do The End crepuscular, que resolução, resultado, prognóstico? É o plano-geral já isolado do rosto magoado de Wayne, que não sabe para onde mas sabe que tem de caminhar, que pode fornecer uma luz redentora entre os escuros esverdeados e os dias queimados que a paleta do imenso Winton C. Hoch acorda com a natura e com o Deus inerente que vai quebrando o devastador silêncio. Rosto sem qualquer resquício Heroico ou sobre-humano mas antes opacidade e ferida inevitável. Campo de todas as contendas, dialécticas, certezas e contradições. Impenetrável e revelador, de onde uma imagem-afecção de Gilles Deleuze não teria qualquer sentido. E, segurando-o, um corpo envelhecido, pesado, sem a elasticidade ziguezagueante de um Ethan Edwards, o que agrava tudo ainda mais, para lá de limites e idades para se ter juízo.
 
Num lado dessa cena, a uma panorâmica ou a um travelling, depois de um piscar de olhos e uma respiração funda, toda a força da raça e todo o amor em potência. Uma nova mão mais tenra aguarda o aperto. E há que aclarar que este palavreado é só o sentimento de uma prespectiva de quem nada disso cheirou, neste caso este pobre escriba, contra uma prespectiva que mais do que cinema ou arte é feita abissal, porque sem ilusões como aconteceria com Michael Bay ou Ridley Scott, os directos sem edição de muita televisão e documentário. Os realizadores americanos vão com os americanos e jamais temos partidarismo ou panfletos, antes o medo comum, terror prolongado, debate de Criadores e ordens com o nada. “The Green Berets”, titulo parcial como tudo o que mexe, está fendido a círculos ou a raides estilhaçados e não concordantes, e aglutinado na possibilidade eterna da superação. Num caso ou noutro, e no que escapa, fazendo do instinto um credo maior. Na guerra e na paz.


1 comentário:

Antônio LaCarne disse...

simplesmente maravilhado com o conteúdo do blog. parabéns, tudo muito inspirador. :)