Maquinismos gélidos como só eles, ferro, cabos,
torres; cheiro a seco, cilindros, rodas, motores, cronómetros; uma pequena criatura
no meio, minúscula. E estouram as nuvens, com os raios, a precipitação e o
ataque. É o que acontece na primeira meia dúzia de segundos em “Manpower”, o
caminho da poderosa invenção Terrena até ao domínio dos Deuses. O combate continua,
vomitam-se faíscas descarregadas do céu que nos ofuscam, interrompe-se
profanações de corpos humanos, torrentes de águas marítimas aliam-se às águas
da chuva, falésias resvalam como castelos de cartas de um magnata caído em
desgraça; o nosso auge tecnológico humilhado e clama-se socorro às autoridades,
como no antigamente se clamava para todos os Santos e para Santa Bárbara em particular. Deste lado do tempo e do
lugar já não planamos pela limpidez mas sim escorregámos na sujidade, no ruído,
na completa descarga eléctrica que o filme de Walsh produz. Um minuto e muito
pouco, a planos de dois e três segundos ou menos, que se rasgam, chocam,
interlaçam. Planos imensamente mais fulminantes e breves do que os de qualquer
jovem MTV esfomeada, mas que largam um rasto inapagável. Planos de dois ou três
segundos com a mesma totalidade do inicial de “Saskatchewan”, só que se esfumam,
indelevelmente manchados. Flashes subliminais, clarões ameaçadores, atmosfera
fosca que rara luminosidade deixa passar, e por aqui toda a mestria do cineasta
– na brevidade de cada plano, o máximo de intensidade, fulgor, carga;
paralelas, obliquas, explosões aleatórias, uma batalha impossível entre a
selvagem força da natureza e a ordenação formal das orgulhosas sociedades
modernas. Em intuição aguçada e em ascetismo puramente materialista iremos
pairar, com os problemas e misérias dos pés assentes no chão e o salto no
escuro dos medos, toda a tensão em ebulição.
Edward G. Robinson e George Raft estão
umbilicalmente ligados numa amizade sem preço, e vagueiam pela vida à procura
de rumo como vagueiam nos mais recônditos cimos até que caiam electrocutados ou
sem rede, super-heróis das companhias que fornecem luz às casas e outras coisas
reconfortantes. Homens de poder, energia, borracha, sempre a afrontarem o
movimento imemorial da criação com o seu movimento genial, inventivo, novo,
para o resultado ser eternamente o mesmo, o nosso rebaixamento, tortura,
colocação no devido lugar. Mas este par jamais se trairá ou jogará nos
mesquinhos jogos e passatempos das horas vagas; em causa estão homens que
obrigatoriamente e normalmente se passam dos carretos aparentemente sem causa e
em hiatos insignificantes, formas de compensação de quem toca demasiadas vezes
a morte como se não fosse nada. E do nada, sem nunca o terem esperado, aparece Marlene
Dietrich e o invólucro loiro e luminoso como peçonha, dilúvio ou outro tipo de
magnetismo tão letal como, e lentamente os vai começar a afogar ou a queimar. A
cena da sua aparição é sintomática como uma sentença; está ela a sair da
cadeia, a ignorar o Pai e, no momento em que pede um cigarro, o plano-médio já
está em Raft, que tem a chama com ele; que Robinson se perca inocentemente de
amores por ela, que se case e ignore as instruções do seu ofício, são apenas os
elãs de uma tragédia ali prometida como destino ou crueldade do acaso. O amor e
o poder da carne ou as ensurdecedoras tempestades?
A encenação vai ganhando ainda outra explanação
e ritmo, Walsh como noutras vezes enquadra tudo de frente e monta tudo em
lógicas dramatúrgicas implacáveis, podem ser papéis, cartas, jornais, datas, o
que for preciso irromper no ecrã, com a devida escala; Ritmos e explanações que
numa gravidade surda, mesmo nos trovões e nas bocas dos infernos, preparam o
leito final onde os três se vão encontrar em composição sacra do nacimento do
Salvador, nascendo outro tipo de amor asseverado pela morte; foram precisas
muitas coordenadas estranhas e partidas dos sentimentos se combinarem para
esses dois amados terem deixado que as loucuras momentâneas normais a que
estavam sujeitos tivessem funcionado entre os dois no mais alto grau. Toma
conta dela, diz Robinson para Raft imediatamente antes do seu apagão final,
depois a caravana parte e outro par fica efectivamente. Cinema, máquina entre
as luzes e as sombras, ilusória cartografia das paixões, sempre a vaguear entre
espectros. Das várias alianças e discórdias existentes em “Manpower”, a mais
capital é com o que está para lá do nosso cerrar de olhos. O escuro, que ali
teve de ser a única luz em que acreditar.
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