Os bons ganham sempre, constata em portentosa
irrisão Robert Duvall para um ensanguentado Joe Don Baker no termo do
fidelíssimo “The Outfit”, logo após terem reduzido a pó cabecilhas mafiosos e
deixado de mãos a abanar os seus empregados agora desempregados. John Flynn
sempre seguiu fiéis e justiceiros, de forma cerrada, implacável, fazendo da sua
encenação uma quase matemática das pulsões que perpassam o enquadramento, onde
tudo arrebenta de dentro para todos os foras, depois de concentrações intoleráveis.
“Out for Justice” é um cúmulo e uma complexificação disso, onde o polícia
despedaçado de Steven Seagal vai firme até resolver o que há para resolver, e o
ritmo frenético da acção e da respiração a par como estaria o seu parceiro
perdido, sem traições. A teimosa e primitiva individualidade na omnívora guerra
aplanadora e abstrata.
A trama parece igual a tantas outras, um durão
da lei caído em desgraça, com a vida pessoal num caos graças ao ganha-pão
atribulado, o cavalgar louco da máfia e do mal geral, e a morte inexplicável do
seu melhor amigo. Depois, tudo se complica. O que não tem só a ver com
descobertas de traições, relações perigosas ou intimismos inesperados. Estamos plantados
e podemos constatar vias-lácteas já para lá do negro, da sujidade dos
princípios, honra, palavra ou moral, ou seja, do lado da condenação. Nada a ver
com o Bem parece fazer sentido, a não ser o que parece que não irá durar muito,
como uma criança sincera no meio da dança de cadáveres que caem aleatoriamente
como tordos, ou um pequeno cão atirado janela do carro fora que não mente.
Apagada a luz, enterrada quase toda a bondade,
possibilidades de duração, seguimento da causa, somos colados à démarche do
lobo negro numa única noite que ainda assim não consegue ser tão negra como os
agentes da fealdade que todos os limites perpetraram. E então, raios, Seagal
não persegue um maluco que vai fazer tudo para não ser preso, mas sim um suicida
modificado pela droga ou pelas vicissitudes da sua genética, espécie de homúnculo
sem resquício de criador, corpo fétido, mente fétida, sem alma, sem espirito; nada
a ver com alguma recordação humana, orgulha-se e puxa o gatilho por puxar
quando assim o entende, que pode e mata Pai e Mãe e Irmão e demais, desprovido
de qualquer reflexão. Se algum assomo de longínquo desejo há nele, é esse que
ainda obscurece tudo o mais – quer morrer no seu bairro, sem traição. Nessa
noite eterna, infinita, desesperante, vai ser um dançarino do apocalipse, incendiando
quem se chegue perto e assim apagando a ilusão de qualquer paraíso remoto.
Ritche, assim foi baptizado com uma melodia que não mereceu.
E as paralelas a tudo isto, esse agora policia
que nasceu na máfia e queria ser mafioso na infância, que vai tendo mais
relação e disponibilidade para alguns desses seus opostos, confiando e usando
mas sem os dispensar; e mais fundo ainda – trata como Pai o Pai do diabo em
questão que nessa noite tem obrigatoriamente de abater, a Mãe como outra Mãe,
vai buscar a irmã desse ao seu antro e tranca-a ambiguamente por proteção na
prisão boa; solta boca fora aquelas verdades retrancadas que quando têm de sair
saem todas da mesma vez como trovões cagados, aos amigos de infância, à esposa,
à viúva, a muitos que ele parte a cara e a relação. Sem rei nem roque parece
tanto ser a sua deambulação alumiada pela sorte e pelos atributos dos seus
músculos, como a sua coerência de sentimentos. Como estamos num piso amoral, a paralela
dele concorre obviamente para o trilhamento com a do lado, mas na visão do
choque e da reviravolta, na cena mais triste e bonita do filme, ele rasga-se à
mulher e fala-lhe de uma criatura abandonada por todos, sem interesses, que
perdeu o respeito próprio e morreu não de patologia clínica mas do despedaçamento
do coração. Steven Seagal, ou Gino, curto e incisivo nome como as suas falas e
carácter, exeptuando os anjinhos já referidos e o final que pode não querer dizer
o que a imagem aparenta, estará sempre desgraçadamente solitário nessa correria
utópica e impossível, largado aos cães sem pena, figura e joguete sacrificial
que aguenta como só os raros escolhidos. E então deve é correr tanto pois
lembra-se do destino paternal. O destino que mais dói.
Deus é um titereiro que nos manipula como quer,
dizem mais coisa menos coisa a Seagal, que responde que esse tal deve ter um
estranho sentido de humor. Mas é outra frase surgida ainda mais ilogicamente
que dá a sentença ou tira a prova dos nove a qualquer equação ali possível: matem-nos
a todos e depois Deus que os separe. É o que vai acontecendo pela métrica e
aritmética desta imersão infernal, mata-se até nada mais haver para tombar, sem
o tal do rei nem o tal do roque, e quem os criou que se desenvencilhe do arrumo,
que procure a gaveta adequada ou que descalce a bota sem tamanho. Condenação da
alma às penas eternas, foi o que achei nos sinónimos de Danação. Quem quiser
que cave mais fundo.
Nesta arena de eterna morada para alguns, seria
expressamente proibido ou altamente desaconselhada a atitude teórica do
antropólogo encolhido ou o discurso neorrealista do “moderno” consciente, para
não falar nos existencialismos intelectuais; os dali marcam o território tão
laconicamente como os cães e as suas mijadelas. Assim posto, era matar ou
morrer, matar-se no seu ofício e como sujeito, e a questão seria sempre: como
me equiparar. Claro está, confrontar a artilharia de cinema à artilharia de
fogo seria um bom começo, isto sem esses romantismos do que é esta chamada arte
que alguns consideram somatório de outras. Vestir a farda, impor regras só para
as destruir em limites percebidos, comandar o exército, pôr coisas na linha.
Mas, acima de tudo, como Richard Fleischer no seu tempo ou o prisioneiro John
McTiernan agora (se os Cahiers du Cinema ainda existissem punham este génio
atado na capa, disse-me uma vez o Bruno), acreditar só nele, na sua força
expressiva tremenda, nas especificidades sempre inexploradas, sem querer ser
artista plástico ou enfatizado pintor; antes sugar ao osso as suas
possibilidades de magnetismo com a tremenda realidade que se apresenta defronte
ao visor, fazer reviver os créditos finais e essenciais de um filme clássico.
O que se passa no salão de jogos a meio da negra
floresta não é fogo-de-artifício de género cinematográfico, antes faz parte da
profissão de fé que esse Seagal quase desenho animado acolhe para si; perde a
cabeça, o senso, trata cada um por escória; arrisca-se, expõe-se, também como
que se proclama suicidário e convida a que o furem. Mas o objectivo é tão
valioso, a meta é tão preciosa, que ele aposta tudo e vê-a ao fundo de um túnel
poeirento. Poe-se a corte. Dado esse passo, como os predestinados solucionam
enigmas seculares ou Santidades ousam milagres, tem a noção que todas as balas
lhe passarão ao lado, os socos se desviarão ou não farão mossa, enfim, que é
ele o titereiro em trabalhos. Litania superior a quem de direito ou aplicada a
si próprio, bruta detonação de energia pactuada com a câmara, de onde a
montagem tudo conserva e sublima ainda à carne e às escalas.
Cinema. Acção. Fúria. Sam Fuller. Desde a sua
estreia com a panela de pressão que é “The Sergeant”, até galgar para esta cova
escancarada, Flynn não se comediu ou toldou, sempre obcecado pela justeza e
comprometimento entre o assunto e a forma, verdade e testemunho, sem se desviar
um segundo ou milímetro da responsabilidade de traçar as distâncias e carburar
as velocidades que regem e apanham a emoção, sem destilar uma única pincelada
destoante ou falhar escandalosamente uma nota. Hip-hop ou rap, sonoridade de
arquivo alheio ou foleiragem, bruto som descarnado das coisas inteiras e
presentes ou o sussurro de um susto, qualquer deles pode comungar com planos e
composições rapidíssimas e fugazes no meio da selva urbana, como servir
ergonomicamente equilíbrios sonhados nos quartos de família. “Out for Justice”
são noventa intensos e apoteóticos minutos, que não dão para fumar um cigarro
ou então só com o maço todo se aguentam, onde o escuro obscurece, a possível
coerência se torna demência, os mortos parecem ter mais sorte do que os vivos,
indo desembocar algures onde se safarão do irremediável onde tanto sofreram. Os
bons ganham sempre, constata em portentosa irrisão Robert Duvall para um
ensanguentado Joe Don Baker no termo do fidelíssimo “The Outfit”…
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