1.
A vingança é deste mundo e
fora deste mundo. “High Plains Drifter” (1973) ou é o mais realista dos
filmes de Eastwood ou o mais bizarro dos filmes do cinema americano.
Logo depois de ter aplicado a facada sem recurso de Don Siegel em
“Play Misty for Me” a entrada neste Western parece tudo ligar aos
spaghetis de Leone, mais ainda, aos Italianos demenciais como Damiano
Damiani e companhia. Tudo se passa entre dois planos esfumados, onde
aparece e desaparece uma alma, penada, salva ou desclassificada. O
genérico com as variações entre longe e perto, o ribombar, a
propulsão barroca; para tudo se tornar aparentemente mais nítido e
“americano”: o desconhecido que conquista o terreno ferido a
violência, é promovido a herói, reina à sua livre vontade, morre
ou querem que ele morra com os mesmos ferros: isto é, a história de
uma nação, o seu nascimento. Ou com sombras para dúvidas, visão
do inferno, volta dos mortos para reposição, optimismo pelo outro
mundo: não só em sonhos ou pesadelos mas em visceral figuração
materialista nesse encarnado de caldeirão tosco. Fundido o delírio
ou a metafísica, ou ainda a fé, com a perene vontade dos homens em
erguer e deitar abaixo para diversão ou lavagem ou redenção a todo
o custo, é uma chave demoníaca e terrível para a chacina final e
plantada num tempo que acontecerá na civilização de “Unforgiven”.
Noutros termos, classicismo torcido e desnivelado pela constatação
lancinante da impossibilidade de Um Mundo Perfeito.
2.
«Das cinzas às cinzas...
do pó ao pó...» O homem que começa esta frase já não é o mesmo
quando a termina. “The Outlaw Josey Wales” (1976) é por isso bem mais
dorido e transversal aos mundos outros do que “High Plains
Drifter”. Ao contrário do sem nome daquele filme, Josey Wales viu
o outro mundo no mundo em que todos habitamos. O sem nome não se
importava de violar mulheres ou o que fosse, este já nem isso lhe
apetece. Depois de enterrar mulher e filho, depois do cineasta montar
os tiros da recruta e da morte dos sinais vitais com os elementos
orgânicos da natureza e logo da sua impassibilidade, dança lúgubre
e reveladora num Eisenstein fugaz mas de lição proveitosa, Wales
não mais enterrará ninguém, cuspirá a tudo e todos morte do
sangue da ferida, entregará o sagrado aos abutres e aos vermes. Mas
a narrativa deste monte altíssimo de Clint é essa hemorragia
suspensa que só explode no final, depois de ele ter visto os vales e
montanhas e as crenças de John Ford, um grupo de pessoas e um lar
que o impede de cuspir, dando a sua palavra de vida ao ser mais
longínquo de si. Decide não assobiar o hino que der jeito. Depois
de perceber que a palavra de morte está do lado dos legisladores e
dos supostos vencedores que eternamente farão a batota do poder cego
do ouro. Ensina a luta que vale a pena ao grupo e ao lar, recolhe o
amor e a virgindade salva em branco, entrega-se por um recomeço
possível. Estrela cadente que desaparece no ouro do sol redescoberto
o novo grão. Daí ao vendaval de “Honkytonk Man”, passados os
carreiros e as carretas de Faulkner e de Cormac MacCarthy, a entrega
à missão Ford. Apagamento, genuína união e dádiva sublime.
3.
“The Gauntlet” (1977) parece
acordar na manhã seguinte de onde escureceu “The Outlaw Josey
Wales”. Só que milhões de tempo depois. E já com a podridão
outra vez em estado de decomposição. Planos limpinhos de uma ponta
à outra, em varridelas suaves e nítidas aos espaços, para por uma
só vez tudo ficar registado sem o nervo da carne passar à máquina.
Clint é o policia bêbado, Sondra Locke a prostituta com uma
quilometragem a perder de vista. A missão parece de zé-ninguém, e
vai sê-lo, só que a um nível muito mais triste do que as opções
que cada qual pode tomar por si. Mais uma vez se escancara
fulgurantemente e fundamente a corrupção em todos os cantos e
diplomas, para isso se tornar banal em direcção à transcendência
e ao encontro do par mais improvável a poder ser feliz para sempre.
No meio do deserto um agentezinho já comido pelo grande monstro
pergunta à prostituta pelas companhias, pelas posições, buracos,
por tudo e mais alguma coisa que ele pensa ser porco. Ela
responde-lhe que basta tomar banho para se purificar, enquanto os da
laia dele ficam com o lixo incrustado para todo o sempre. Primeiro
grito no deserto. Mas é logo depois que no esconderijo mítico dos
amantes ela diz ao bêbado que a missão impossível onde estão
metidos visa limpar o sebo à escumalha que ele é tanto como ela.
Insultam-se mutuamente mas dá para perceber que é a segunda
vitória. E é naquele comboio como tantos outros que ele leva nas
trombas por ela e ela se abre derradeiramente por ele. Caminho
aberto para no casebre mais ordinário e típico da americana
junto à auto-estrada, entre rosas, ele lhe confessar dos sonhos de
futuro e de enlace. Tudo o que não vemos é o céu dos kamikazes
pela felicidade arrancada ao nosso destino rasteiro. Também é nessa
cena que Clint explica aos simplórios que acusam Siegel, Dirty Harry
e ele mesmo de fascismo - “escolhi ter no bolso o distintivo e o
canhão para poder fazer as coisas que os que têm demasiadas
responsabilidades ou estão acomodados na vidinha não podem fazer,
mesmo os bons” - palavras não dele, é isto – justiça dos
altos, reposição a ferro e fogo do primordial. Daí também o
realismo ridículo das cenas de acção, que faz o bêbado e a
prostituta sobreviverem a três diluviais tiroteios que só
super-heróis ou Deuses resistiriam – para tornar mais ridícula a
cena final – aquele pobre chefe a borrar a cara cheia de merda,
para falarmos a língua certa dos simples. Outro crepúsculo, com
certeza a fuga para a beira dos campos e dos rios, e o aviso – isto
não fica por aqui, malhem duro.
4.
Desde que triste e vazio
começa “Bronco Billy” (1980) até à felicidade final e aos sonhos que
valeram a pena, Clint só se dirigiu aos espectadores, aos de lá e a
cada um de nós do lado de fora. «Era um filme à moda antiga.
Talvez obsoleto demais, já que não fez tanto sucesso quanto
esperávamos. Mas se, em toda a minha carreira como cineasta, eu já
quis dizer alguma coisa, isso está em “Bronco Billy”». Ou seja,
a velha história entre o velho e o novo, a história da Hollywood
vital que sempre caminhou para a frente e que soube que para trás
mija a burra. Se nos westerns anteriores a personagem de Clint foi
mau como as cobras ou o diabo em pessoa, aqui já é só um
palhacinho, como fere a letra da canção inicial. Mas um palhaço
profissional, que não admite que alguém de fora da trupe altere o
diálogo ou goze com quem acredita naquilo que quer ser e é
inteiramente. Um sonhador profissional, um cowboy profissional num
tempo inadmissível para eles, um encenador profissional que despreza
o vale tudo e a ausência de crença e de moral. “Bronco Billy” é
ainda a passagem da realidade, da nascença da nação e crescimento
ao homem feito e ao mito; da violência primitiva ao espectáculo do
seu conto; do sangue à luz. Visto desse lado, tanto se pode ligar a
“Hatari!” como a “Space Cowboys” - o grupo que permite que a
tradição vá para a frente e evolua como deve ser, e o poder do
homem sem idade. Mas o mais fascinante e obviamente radical está
mais uma vez ligado a Sondra Locke, figura que aparece miserável,
desprezível e fria como as grandes corporativas que esmagam sem
freios, passando para o lado de lá da barricada de mansinho, para o
lado dos diletantes que quiseram permanecer crianças e nunca mais
voltar às grandes cidades. Clint e a sua trupe a darem o litro e a
estourarem-se todos para trazer nem que seja só mais uma alminha
para o lado das lareiras de Ford, abraçando Buster Keaton e
companhia. E ela, como qualquer um outro, ensinando-lhes também
qualquer coisinha. Debaixo da chuva que os encharca ou humilhando-se
nas prisões e com as autoridades, naquele assalto que é um dos
momentos mais simbólicos e lamentáveis para a nova Hollywood ver ou
na entrega patética ao amor que acontece na suíte nupcial do asilo
de loucos, tudo vale a pena se a alma não é pequena – isto é, se
se quiser ser cowboy no século tecnológico, presidente do país de
faz de conta ou homem na lua. Cada um à sua maneira. Evidentemente,
à moda antiga.
5.
Nova luz sobre “Firefox” (1982) depois de “Sully”. Não só por causa das aterragens milagrosas em solos desaconselháveis, nem mesmo pela estrutura narrativa atormentada, esburacada e terrorífica – suada de flashbacks, pesadelos, futurologia e neste caso tangentes ao Apocalipse – mas sim pelo que acontece quando já não se está a obedecer a ordens oficiais, quando a máquina, o virtual, e os homens à imagem e semelhança de Deus não procedem e emperram nas suas entranhas, quando as nações e mesmo a lógica programática e cientifica ficam suspensas no equilíbrio terrestre; e fica um ser contra um ser, homem contra homem, inteligência e instinto em estado puro, na corda bamba, a lutarem pela sobrevivência geometricamente com as mesmas condições dos nossos irmãos das cavernas. Que todo este duelo no espaço tenha sido despoletado por outro intolerável erro crasso puramente humano – o fantasma de Clint a perdoar a machadada final ao próximo no momento indicado na lei – coloca o patamar de complexidade infinitamente além do filme de acção que também o é superiormente. Na luz da primeira manhã. Com a mesma comida ou combustível. Igual fome e desejo. Inocência e violência. Bichinhos atarantados entre céu e terra. Moral e manufactura que tanto poderia agradar a Robert Bresson como a Howard Hawks.
6.
Suprema actualização ou
delírio ainda mais terreno a partir de “High Plains Drifter”,
“Pale Rider” (1985) é o primeiro cúmulo estético de Eastwood; ficando
só em Westerns, as idílicas miragens do filme de 1973, todos esses
fundos inacessíveis aos seres já estão na sua rotação; e o motor
enérgico que abala a câmara em “The Outlaw Josey Wales”,
sacudindo a paisagem e os corpos a partir das pulsões motivacionais
e das contradições fundadoras, gripou precisamente pela pressão
com que o meio se impôs. Cúmulo estético no sentido em que já não
há busca premeditada ou sacudidelas descontroladas, mas um
centramento que permite focar a fantasmagoria intemporal. O morto ou
o mito que o Padre de Clint mais uma vez é, espírito materialista
da crença feita carne ou a imaterialidade da catedral americana,
mistura dos futuristas da saga “Terminator” de James Cameron com
a sombra anacrónica de “Million Dollar baby”, integra o presente
e os seus ecos, visível e invisível, tal como a oração que tudo
interroga no funeral da menina ao animal de estimação. Momento que
funde com a mais bela declaração de amor da sua obra, essa entrega
e absoluto da menina ao padre, em que tudo se consuma no romantismo
da perfeição e da sua impossibilidade, tanto como os parcos dias
que valeram a vida toda em “The Bridges of Madison County”. Ao
mesmo tempo documentário do progresso a mata-cavalos como fantasia
em ares e alturas e auras de Frankenstein, mais uma vez fica
prometida a justiça neste ou no outro mundo. Um até já.
7.
Coração de Clint. Mas
pelos trilhos mais enviesados como as tortas linhas de Deus. O
sargento anarquista Highway que decide meter na ordem uma nova raça
de fuzileiros que trata os superiores como esterco contribui
inesperadamente ou não (pois é da cepa de “Honkytonk Man” e
familiar directo do anunciado “The Rookie”; para não ir ao cego
e ao assassino de “Unforgiven”) com muitas novas e intrincadas
achas para a fogueira do compósito Clint. Assim começa outro tipo
de educação ou exercício proveitoso que só teve hipótese de
sobejar depois das cinzas provocadas pela hecatombe Dirty Harry. O
movimento e a severidade que percorre “Heartbreak Ridge” (1986) comporta
o inacreditável e a simplicidade bíblica: os miúdos que começam
por odiar o suposto velho ressabiado percebem nele o mais jovem;
aquele que lhes desperta os instintos e o organismo vital; o que vai
contra a lei rançosa em direcção à justiça evidente; um
imprevisível que lhes dispara tiros de metralhadora à queima-roupa
no tempo certo para os levantar da lama no tempo errado. Das
altercações do primeiro encontro ao piscar de olho adulto, todas as
dádivas, no carinho e no grotesco. Por vezes, mas só por vezes e só
num tempo que não se percebe bem qual, é preciso ser duro como um
imperialista para se chegar à mais acabada forma democrática, quer
dizer, ao humanismo pungente. Tudo se poderia resumir ao
campo/contracampo entre o sargento e o esqueleto que assusta o
soldado – assustamo-nos tanto com o outro mundo que estamos sempre
com as falsas falinhas mansas neste. Humanismo pungente – o
sargento de ferro a derreter-se pela eterna ex-mulher que faz parte
de si como um dos seus órgãos nucleares. Improvisar, superar,
adaptar. O credo de Clint e o abismo necessário para o milagre
final: o dito anacronismo abraçado ao Hendrix que rejeitou a pizza
todos os dias, o cabelo comprido e as horas extraordinárias de sono
para seguir a catarse não pedida. Dos dilúvios que despejam um sol
claro. John Wayne e Ricky Nelson, o grande xerife e o rockeiro
amicíssimos em "Rio Bravo"?
E é um dos seus filmes mais brutos, com a matéria e a luz a quererem sair constantemente pelas bordas, a quererem escorrer mas a serem emplacados pela moral clássica do ordenamento original, longe do polimento dos filmes de guerra posteriores e lembrando-se e estando ao lado de Cimino e de Siegel.
8.
Em “White Hunter Black Heart” (1990) Clint vai ao continente Africano para se atirar a um aparente (e falso) filme dentro do filme e realiza como se estivesse no bairro onde nasceu ou nos estúdios onde se fez homem; nada de exotismo, exaltação épica ou mesmo technicolor para prémios; mesmo o acompanhamento musical tocante e dolorosamente simples que costuma entrar quando a faca vai mais fundo fica de fora – tudo isso deixa para os créditos finais, em cinismo proveitoso; estamos mais do lado do documentário, muito menos antropológico mas sim a registar e a escancarar o negro dos ensejos humanos. Fala-se do realizador e do argumentista como Deuses, vai-se a Hemingway buscar a redução da vida aos seus termos mais simples e logo absolutos, tenta-se compreender o incompreensível para avançar para a frente ou poder gritar «acção», ganha-se o respeito dos nativos, ganha-se o coração negro sendo de pele branca... e o que fica no término é a perdição de quem quis ver demais e se calhar a cor negra só reflecte da maldade a todos prometida.
O que é
igualmente espantoso é que nem por um segundo se cai em domínios
pretensiosos ou pedantes, pois hoje sabe-se ainda melhor que Clint
ultrapassou em radicalismo todas as ambições do realizador
fictício; se esse John Wilson já despreza o mundo das pipocas e da
acéfala entidade una dos espectadores, se se queima pelo livre
pensamento, o realizador que o controla foi até ao fim estoicamente;
Clint Eastwood pode não beber como John Huston, nem chupar charutos
como John Ford, mas já no final da primeira década dos anos 2000
acabou “J. Edgar” com dois velhos a amarem-se sem a pirotecnia
gráfica ou a insinuação pornográfica do “pós-modernismo” ou
do “contemporâneo” mas antes recuando à ternura e eternidade de
Frank Borzage. Penoso é o caminho de quem nada faz sem se querer
sentir em casa; negra, totalmente eclipsante, pode ser a moral ou a
compreensão. Clint abriu-se, atirou-se a esse buraco e aos gumes
vários da lâmina, e filmou com simplicidade a busca. Simplicidade,
complexidade - “White Hunter Black Heart” é assim testamentário.
Para além da redenção.
9.
Ao mesmo tempo que teve
necessidade de calçar as botas de John Huston para tentar entender
por que é que certos homens vão a certos lugares para enfrentarem
certas sombras quando tudo parecia ganho e pacificado, Clint dirigiu
um filme de género convocando todas as regras, do salvamento no
último minuto que ninguém acredita até ao golpe de humor que abre
e fecha cada ciclo lógico. Mas não dá para esquecer que isto
chegou ainda na ressaca do seu mergulho mais profundo às trevas que vêm
agarradas com o cordão umbilical, na homenagem e na justiça a
Charlie Parker, cometa que foi avisado da hora em que ia embater e
apagar-se algures e assim ousou consumir-se antes do impacto;
percurso e combustão gravados com a câmara a olhar e a percorrer
esse mesmo fogo por dentro. “The Rookie” (1990) só poderia ser o que é
– um conto de iniciação mesmo que também ele nos pântanos dos
infernos, onde todo o panorama monstruosamente realista e sujo é
redimido nessa viagem ao fim da noite, ao fim de si, da criança de
Charlie Sheen que se transmuta homem, renascendo e bebendo do próximo
mais longe de si, o Clint largado e escorraçado na terra e com as
pragas todas que se volve Pai. Sheen ganhou dois pais nesse vórtice
do tudo ou do nada quando meteu de lado ou aceitou o medo, e o quadro
com os dois charutos saídos de um é isso mesmo. «E trata de ti. Se
não o fizeres, alguém o fará por ti.», no centro do degredo, a
ilha da genuína porque lúcida inocência. O mundo é um lugar que
poderia ter sido perfeito, só que agora só por linhas tortas...
mais uma variação do mesmo conselho.
10.
Na abertura, Clint como
fantasma, como ladrão, como pintor a cinzelar espectros e a ignorar
as composições equilibradíssimas. De seguida o equilíbrio
periclitante, a gravidade do scope e dos personagens em causa,
a grande narrativa, o presidente da maior nação do mundo e do
mundo, sexo violento, as facções da lei e do poder em rota de
colisão, suspense cortante, heroísmo do avesso em relação a
“Sully” ou a "Sniper", o motor oleado; mas vamos perceber que
Clint, o fantasma, o ladrão e o pintor só quis fazer este filme e
urdir tamanha grandeza para chegar ao plano final – o quarto do Pai
com a Filha e todos os pecados aceites. Em todos os casos, a calma
profética é sempre da mesma. “Absolute Power” (1997) é a máxima
comoção da monumental filmografia pois dispensa a grandiloquência
ou o orgulho da exposição fria da corrupção política e
relacional – inclusive o momento em que se promete a vingança e se
volta para trás, cena magistral do aeroporto – para ficar com uma
fininha narrativa, um filetezinho de narrativa, que só se deixa ver
ao de leve e por segundos mas que está ao nível da grandeza total
dos 132 minutos de coração e estômago rasgado de “Million Dollar
Baby” - o pai todo nu a pedir à filha que fuja com ele, à beira
da carícia e protecção do vento e do murmúrio da água, por
debaixo do céu prenhe; a descoberta de que o fantasma quis ser Pai à
sua maneira incompreensível, nesses retratos de amor não
partilhados; o fantasma a repor os alimentos necessários no
frigorifico à sua criança descuidada; o ladrão de injustiças e de
piedade a pintar o seu anjo incomparável depois de dispensado o
clímax milionário. Da exposição da máquina de acção
Hollywoodiana em função do primeiro calor lancinante, a ousadia e
caminho dos duros demais. Estraçalhante pudor, ou vergonha, ou
descrição... um Pai a aconchegar o seu bebé no frio e no escuro da
noite.
11.
“Midnight
in the Garden of Good and Evil” (1997) poder ser e com certeza tem dos
momentos mais bizarros e necrófilos de todos os Clints. Bizarro pois
é um filme onde podemos dizer que não se passa nada, nada no
sentido da narrativa armadilhada e carregada de lógica construtiva,
causa e efeito o mais fresco possível, como num filme;
necrófilo, lúgubre, pois acredite-se ou não em mundos paralelos ou
espirituais, a estranheza do ar do tempo, das deformações ou das
crenças para lá do sentido racional fazem parte da matéria e das
texturas dos lugares, e vice-versa, numa metamorfose omnívora que
flui dos tentáculos das arvores de cemitério, passando pelo
estatuário orgânico e caindo nas casas com olhos até à senhora
que comunica com o esquilo ou ao travesti que parece o ser mais vivo;
massa que ainda contém visceralmente e sem medida o pecado, a
intolerância, preconceitos e afins.
Não se
passa nada, não dá para vender na sinopse curta, trata-se do conto
de um repórter que chega ao fim do mundo, por essas terras onde
Judas perdeu as botas, para escrever algo e de lá não consegue sair
pois vislumbrou ao de leve o que na grande metrópole há muito se
ridicularizou. Visto assim, é uma continuação escavada de “White
Hunter Black Heart”, ou um remake na terra e civilização que
dizemos conhecer sem segredos. John Cusack, o jornalista, por lá se
perdeu e por lá se achou, sem saber da verdade e acatando talvez as
palavras finais do críptico e verdadeiro Kevin Spacey - «a verdade,
como a arte, está nos olhos de quem a vê». Sequência, e Clint
realiza um dos mais bizarros, mais do que voodoos ou os
sermões ao esquilo, movimentos de câmara de sempre: vários 360º
do ponto de vista do último suspiro, até à figuração do outro
lado, o qual cada espectador pode aceitar ou rechaçar, como a
verdade ou a arte.
Mais
deambulação menos deambulação – depois de ter acontecido de
tudo pelo filme, dos tribunais aos funerais, festas de natal e festas
de sexo, assassinatos e nascença do amor - e surge o anjo de pedra
com a balança e os equilíbrios do bem e do mal, que é a demanda de
Cusack e a nossa: temos um e o outro lado com o mesmo peso, temos a
perspectiva de cada um, temos inclusive a possibilidade da
transcendência, e só podemos fiar-nos num ou noutro piscar de
olhos, numa ou noutra expressão, no sentimento ou no cheiro que
certa vez pareceu absolutamente inelutável. Bizarro e lúgubre, mas
é o mundo não perfeito. Mais cedo ou mais tarde, apareceria de
algures “Hereafter”, conectado com os primeiros Westerns. Para os
incautos, o mais clássico dos cineastas a entrar no século XXI é
ainda o que vai com toda a firmeza às dúvidas. A olhar pasmado,
disponível, sem impor nem julgar, sem ironia e de frente, a
contemplar e a tentar perceber. Todo o espaço para toda a gente.
12.
“True
Crime” (1999) ramifica-se todo mal abre, dando-nos o cenário, os
intervenientes, motivações e o passado a não colar com o presente.
A correnteza ou a torneira sempre aberta na mesma medida que se diz
ser o estilo Clint começa logo aí a soluçar. Há um condenado à
morte, um caso resolvido, a tragédia da curva da morte e um
jornalista de má fama a querer provar que está no caminho certo. E
assim o filme seguinte a “Midnight in the Garden of Good and Evil”
vai muito mais fundo nas aparências e localizações do bem e do
mal. A cena triste e patética da volta rápida ao zoo com a filha do
jornalista de segunda que se quer tornar de primeira para poder dar
voltas lentas pode ser o centro da questão moral pois mostra o lado
oposto do claro heroísmo e bem da sua cruzada. Clint dorme com as
filhas ou as mulheres dos patrões e está-se a borrifar para os
deuses e as justiças deste mundo ou dos outros, para o bem e o mal,
tem um cheiro que lhe diz que um inocente pode ser morto e decide ir
até ao fim em consonância com a sua (falta) de ética. Praticar a
coisa certa ou levantar-se da lama e dar a volta lenta no zoo? Raça
dos que se queimam no trabalho, no seu modo de vida, por aquilo para
que nasceram, na acção; sem chances de constituir uma boa família,
mas que mesmo assim querem mostrar que podem.
«Todos
mentimos, amigo, eu só o vim aqui escrever», dispara o jornalista
ao polícia antes da cena do cheiro. Cheiro que para ele funciona
como o Jesus para o preso prestes a morrer. Se cheirar bem, ele está
bem. Se cheirar mal, é o inferno. E é esse o móbil que lhe faz
exigir ao condenado toda a verdade. Com gente de sobra a assistir,
com todo o mundo a assistir, Clint faz depender o bem e o mal desse
orgulho, do seu motivo particular. Um acidente levou-o ali e ele
atira-se a ele, transformando a curva da morte em curva da vida, o
tortuoso no certo, e acabando só depois de ter distribuído a sua
prenda no natal.
Ou pode
não ser nada disso e tratar-se apenas da transcendente redenção
também a todos os humanos resguardada. E estaria certo. Tal como
salvou as pessoas certas independentemente dos motivos. Os seus
esgares no encontro derradeiro com a mulher que perdeu o neto e
ganhou um coração de ouro vêm das entranhas, conectadas com o
órgão vital. É a grande questão e a grande dúvida de um imenso
tratado de múltiplas leituras. Mas que Clint assuma no final que
anda sempre sozinho como o Pai Natal, é amargo demais, depois de ter
salvado três ou infinitas vidas. Sem zona, área ou luz de conforto.
O peso do bem e do mal... sempre a depender do cheiro... do instinto
que também é o tudo ou nada deste cinema. Fica a calma final,
rasgando ainda mais para todos os lados.
Lembram-se
da acalmia e do percurso para o escuro e para a luz da Angelina Jolie
no final de “Changeling”?
13.
“Blood
Work” (2002), encravado entre a coralidade metafísica da condensação de
todos os tempos e idades no presente e na ausência de tempo em
“Mystic River” e o plano da terra à lua ao som de Sinatra em
“Space Cowboys”, parece um biscate para testar localizações,
películas ou ângulos de um grande cineasta a preparar as
obras-primas finais. Só que... mete no epicentro a imagem e o órgão
fundamental de toda a sua caminhada – o coração. E desde logo
pode ser o inverso de “True Crime”, percebemos que o detective
reformado de Clint gostava de ser uma estrela policial e depois de
lhe terem trocado de coração (e para quem acreditar noutras coisas,
de alma) se escondeu no escuro de um canto para lá da terra plana.
Só que... continuou a viver porque o mal foi praticado, e já não
estamos longe do filme de 1999. E como num conto de fadas negro de um
Frank Capra ou na realidade corriqueira que os ultrapassa sempre e
inventa de novo o novo inverosímil, esse coração vai exigir que o
bem se reponha, seja pelo ser de Clint ou da falecida. Ou seja, tudo
parece jogo de argumentista, óbvio demais para quem começa a unir
pontas e a adivinhar – dificilmente não se cheira e se desmascara
o criminoso muito antes de quem está lá dentro abrir os olhos,
percebendo-se as dependências e as fantasias macabras da mente
perversa, envolvendo chicanas sexuais post-mortem e mais dessas
torções inacreditáveis.
O que
torna “Blood Work” fundamental no seu secretismo – para lá do
classicismo formal elevado à perfeição de Deus com os Anjos, não
há plano, palavra ou reflexo a mais, encaixe pleno de todas as
matérias - é o que nos diz laconicamente o título: o trabalho do
sangue, melhor dito: o trabalho subterrâneo e o indizível, como num
sonho ou o que não nos lembramos entre morte e nascimento, como o
definir da circulação. Sendo então tudo terreno, com o peso
marcado dos corpos na terra e a física em imposição, estamos nas
grandes questões originárias, matriciais, da origem das espécies
mesmo e de como isto do sangue bombado pelo coração funciona e nos
dá vida e une todos. Clint muda e ganha nova vida pois uma nova vida
entrou nele quando o rasgaram. E ao acatar essa vida, esse chamamento
e pulsão, tudo floresceu. Está lá, no pôr do sol ou no nascer do
sol com que fecha o filme. Infinitas vidas novas. (Passada a tormenta
do duelo final a vermelho naquele grande órgão podre onde é
extraído mais um cancro deste meio).
14.
“Hereafter” (2010)
é o todo mais planante de Clint, como se os fugazes instantes
eternos das visitas fantasma à filha em “Absolute Power” (ferida
mais funda e pungente da sua obra) fossem distendidos até a uma
duração plena, antes do filme e depois do filme, como o seu tema. E
tema é coisa que não há aqui, não se defende nada nem se ataca
nada, e a morte e o outro lado é tão central como esta vida e o que
fazer dela, o que encontrar e o que perseguir. Ecos dos ecos, sangue
do sangue, intuição da intuição, segredos dos segredos – são
todos os filmes de Clint numa condensação estelar, acima da terra,
precisamente na carne do espírito. Três seres aflitos em busca da
sua resposta, como todas as existências da terra em todos os tempos.
E a câmara de filmar a aconchegá-los nos seus quartos, de lado, ao
lado, com toda a ternura e carinho. A câmara de filmar a dizer «eu
estou aqui». Sem aflição.
«Pinta um quadro que possa ser pendurado na cela de um homem condenado à morte, sem que seja uma atrocidade.», escreveu Paul Cézanne, e é o trabalho e a crença de um cineasta amigo. Aproximar-se da máxima gravidade, olhar de frente – como os momentos em que Matt Damon transmite o que recebe – e amparar. Estrutura fragmentada que nunca é mosaico nem pirueta, antes os sublimes encontros em prática, de onde os aviões ou as grandes distâncias são abolidas pelos mínimos suspiros enlaçados – repare-se como tantas vezes se fica mais tempo com uma das personagens ou um dos pares, opção perfeitamente parcial, pois a comoção não permite montar ou mudar de faixa – aí surge a mais bela cena do cinema americano da década: a da cozinha, dos cheiros, da música, sentidos e espírito, resumo de todas as perguntas e respostas. Cena tão bela como quando a câmara decide despegar do chão e subir até ao espaço dos anjos, depois de comungar na terra com esses tais. “Hereafter” é um filme para puxar para cima, para todos irmos atrás da luz. E desde a espantosa catástrofe inicial que de tão simples e silenciosa quase não se dá por ela, abrindo para o interior, até ao abraço final, estamos num enlevo para lá das nuvens dos Wu-Tang Clan, no despojamento sacro de Robert Bresson, num andamento absoluto de Mozart, numa sonata doce de um apaixonado. E também na dança sem género com que fecha “Jersey Boys”. Revelados e amparados.
15.
«Agora que vimos o que poderia ter
acontecido, podemos ouvir o que realmente aconteceu?» é a frase
chave que sai da boca do co-piloto de Aaron Eckhart quando o ridículo
já matou todos os que duvidaram da primazia do humano e logo da sua
condição errática em "Sully" (2016). O que Eastwood mete em questão absoluta a par
dos tremores do inigualável e comum Tom Hanks – mártir/super-herói
que apenas fez o seu trabalho e isso o defini - é a eterna pulsão
do homem comum e do humanismo em querer atingir o patamar dos Deuses,
do indestrutível, da perfeição e imortalidade. Pode ler-se
entreportas o controlo, análise e decisão suprema da estrutura
americana para com o resto do mundo, mas será muito mais importante
sentir a condição humana sem bandeira nem época, rimando com a
decisão do Pai para com a filha no final de “Million Dollar Baby”.
No cinema recente, só “Rocky Balboa” assim humildemente destruiu
o maquinismo a favor de todas as preciosas possibilidades em aberto.
Seco, conciso e urgente como a melhor série-b. Pacificado como um
pedaço de crepúsculo que sabe trazer consigo uma verdade antiga.
Constitui ainda um díptico com o anterior “American Sniper” tão inseparável como “Flags of Our Fathers” é campo ou contracampo para “Letters from Iwo Jima”: no céu ou na terra, dentro do quarto de casal ou na toca do bicho, o mérito e a maldição depende tanto do coração de cada um como do batimento ou da garra do resto do mundo. Épicas e serenas lutas com o Éden violado.
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