«The most dangerous game,
termo aplicado tanto à caça como à guerra, se se não quiser
pensar (e “Man Hunt” força-nos a pensar) no amor»; é João
Bénard da Costa sobre o filme de Lang e a velha aproximação entre
guerras, caças, homens contra homens e homens contra animais. Depois
vai a Hitler, ao mal abstracto e absoluto, à caçada do amor, aos
abismos consanguíneos, ao homem como o mais perigoso dos
animais. E acaba por meter na
mira “In The Line of Fire” ajustando e cruzando «essa síntese
diabólica entre todos os jogos mais perigosos (…) no jogo de morte
entre Clint Eastwood e John Malkovich».
Wolfgang Peterson não chegará às convocações totais e totalitárias de Lang, mas este encontro, este ajuste a partir de um desajuste, de uma folga terrível da máquina que não nos deixa comer a todos e a cada um, só nos deixa respirar esse doentio mal endémico, de rosto indefinido, com culpa distribuída por entidades e parafusos a mais. O agente secreto de Clint está emplacado entre a moral e a mítica de Abraham Lincoln, a culpa que sente em relação à morte de John F. Kennedy e uma redenção que só poderá advir desse mesmo mal diabólico e de eterno retorno.
E ao dar de frente com um John Wilkes Booth, deformidade treinada ao mais alto nível para proteger a América, derrotado pelo sonho patriótico e tornado monstro das suas sombras, vai enfrentar o limite do mais antigo dos pesadelos: o que se vê no escuro quando os demónios aparecem. “In The Line of Fire” é uma caça entre gato e rato calibrada ao milímetro irrespirável por engenheiros da acção e do suspense cinematográfico, onde se fica a perceber que um profissional que tem de estudar tudo ao pormenor e eliminar o erro humano, ao nível do topo da maior nação do mundo, pode ter a vida privada totalmente destruída e sem esperança nem exemplo. É ainda uma caçada ao amor executada nos pólos de maior tensão onde a circunstância dita o tudo ou o nada – o florescer ou o último prego no caixão. Mas o que faz transcender e tornar a obra temerária é a inclusão de toda a caçada no grande jogo americano, ou seja, numa arena onde não pode haver empates.
E é a personagem de Malkovich, mais admiradora do Booth que saltou para o palco depois do tiro do que do cobarde Lee Harvey Oswald, que lança os dados, as bolas ou as balas, e os regulamentos. Faz entrar em campo o Heroísmo e o Absurdo, ligando-os ao sentido da vida e às livres escolhas, metendo a narrativa pessoal de Clint e a justiça poética ao barulho: como é que um pianista cheio de talento e com tanto para dar só tem a ambição de levar com a bala de alguém que pode ser muito menos valioso do que ele. E nessa táctica desnuda as hierarquias, as reversibilidades, a matemática e o talento. É o louco que tenta mostrar ao são que o mal totalitário consiste em deixar que a mediocridade alastre.
Mete medo, pois a acreditar no louco que Malkovich é, um colapso eclodiria o jogo que a todos conforta. Mas é na variante mais puramente subjectiva, porque humana, que se percebe que Clint tenha aceite este petardo alheio quando estava no pleno das suas capacidades como cineasta: é mais uma vez no topo da pirâmide e no equilíbrio cósmico que ele prefere o instinto, o trabalho e o faro ao existencialismo distendido, à metafísica retardadora e, precisamente, à falta de acção. Clint acredita na expressão e profundidade dos olhos e é assim que ainda caça o mais terrível dos animais. O final é bonito e justo e inspirador não apenas pelo crepúsculo primaveril mas porque se percebe que a mola fundamental da cruzada, o combustível ou a vitamina da besta que cada um traz em si no bem ou no mal, foram essas pequenas insignificâncias que são o absoluto: se ela olhar para traz mais uma vez, gosta de mim; vais ver que é o pombo colorido a levantar primeiro do que o branco. O diabolismo sem olhos e o insignificante completamente presente e despido. Eis a contenda.
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