sexta-feira, 24 de março de 2017

"Paterson", Jim Jarmusch, 2016

Sem tradução precisa.


Aproximação de coisas muito diferentes. Olhar as distâncias em perspectiva nova. Deixar que as esferas e os elementos díspares se conheçam e falem entre si. A luz da noite e a luz do dia envolvidos. “Paterson” é o mais essencial (primeiro) dos filmes de Jim Jarmusch pois não força os encontros no caos da realidade cronometrada mas vislumbra um mundo perfeito que nos indica todas as possibilidades e combinações infinitas. Desenterra os paraísos perdidos e acende novas luzes. Para Paterson, o poeta que conduz autocarros, encontra poesia em tudo e vê em cada um outro poeta, não há limites nem barreiras na realidade. O seu constante sorriso tudo abarca e aceita. Tudo, o gesto central deste poema inaugural e inteiro que tem as propriedades das grandes curas. Como quem limpa as feridas ou tira os pecados do mundo.

Poema da banalidade. A pura poesia dos sonhos da sua mulher, Laura. O autocarro a largar a garagem e os reflexos, as sobreposições, cintilações, as palavras disso tudo a serem escritas na tela. Ruas, céus, água, pessoas, palavras. Tudo encontra parte em tudo, diferente e um num só corpo. Poesia inscrita no corpo da paisagem. Extraída a ela e logo devolvida. Dádiva, aceitação e retorno de mãos vazias. O tempo. Dentro do autocarro: dois miúdos a falarem de “Hurrican Carter”, o culpado inocente; dois solitários envergonhados a enumerarem as “conquistas” efémeras; um rapaz e uma rapariga novos demais no auge da anarquia – histórias e poesia que Paterson já conhece “fora do filme”. Paterson, o filme, é um instante cadente na marcha impávida e pasmosa do tempo. Já não basta a câmara frontal, a luz vergada, a montagem de sentidos, o aterro na superfície falha. É preciso o interior em primeiro plano e a ordenar organicamente.

A sintonia com a sua mulher. Os flocos circulares do pequeno-almoço e a arte circular dela. A desmultiplicação dos gémeos. Os poemas começados por ele e acabados por ela. O poema que ela é e a concretização dele. Paterson a agradecer-lhe o jantar. Laura a gostar do seu cheiro de cerveja quando se deita junto a ela na noite. Ainda os gémeos – ponte curta e vacilante entre sonho e realidade.
 
Lá fora, e no bar, nesses limites quotidianos, o universo todo. O barman a jogar xadrez consigo próprio, a sua parede das estrelas preparada para Paterson, o conselho «sempre digo que tentar mudar as coisas pode torna-las piores». A luta do amor, sempre e ainda - Romeu e Julieta como Antônio e Cleópatra ou Abbott & Costello. De uma ponta à outra da satisfação, o romanesco integral e a revelação.
 
Nos passeios, como junto a uma valeta ou a um charco, ou na clandestinidade do lugar mais inóspito da noite, a poesia da banalidade. Uma menina de dez anos que encontrou Emily Dickinson e transforma água em cabelo contendo lá dentro nuvens e prédios. Poema como os dele, confirma Laura. Method Man, o rapper mais bonito do clã, na lavandaria de zé-ninguém, ainda underdog profissional no seu laboratório privado e luxoso que é onde calhar e a vénia total de Paterson, poeta e cidade. Como a lancheira com as imagens de Laura e Dante Alighieri unidas com rosas – sem um o outro não existe. Encaixe ousado e perfeito nas manhãs da noite.

No complains, ao contrário de quem Paterson faz questão de escutar os novos problemas diários, disponível. Mas há o cão que não se dá bem com Paterson, ainda pistolas apontadas pelo amor, o caderno devorado, a arte indelevelmente perdida. Mas paterson não consegue parar de olhar (escutar) nem mesmo no cinema de terror. «A mais pequena desatenção conduz à morte» disse Frank O'Hara, o poeta da escola de Nova Iorque que escondido forjava poemas na hora do almoço.

William Carlos Williams, o espírito que rescende em Paterson, a cidade e o poeta, que os molda e os liberta - em casa de Paterson e de Laura, na ancestral cascata que é um homem, uma mulher, no visitante mais estranho e comum, em caracteres Japoneses. Espírito de amor e riso.

Antes de mais sonhos e do imprevisto do acordar, a aproximação de coisas muito diferentes. Como o Ghost Dog que comunicava perfeitamente com o seu melhor amigo estrangeiro nesse filme sublime como o encontro de igual para igual com a menina, alguém do outro lado do planeta lhe oferece o mais valioso dos presentes – a página em branco.

O mundo que funcionava perfeitamente antes dos telemóveis e nenhuma saudade disso. Paterson confia nos mágicos e silenciosos relógios do universo planante. Quem não conseguir escutar (olhar) a complexa e básica música de Paterson, o filme, já se conduz triste para a morte. O acaso é a única coisa que não é por acaso.

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