Sem tradução precisa.
Aproximação de coisas muito
diferentes. Olhar as distâncias em perspectiva nova. Deixar que as
esferas e os elementos díspares se conheçam e falem entre si. A luz
da noite e a luz do dia envolvidos. “Paterson” é o mais
essencial (primeiro) dos filmes de Jim Jarmusch pois não força os
encontros no caos da realidade cronometrada mas vislumbra um mundo
perfeito que nos indica todas as possibilidades e combinações
infinitas. Desenterra os paraísos perdidos e acende novas luzes.
Para Paterson, o poeta que conduz autocarros, encontra poesia em tudo
e vê em cada um outro poeta, não há limites nem barreiras na
realidade. O seu constante sorriso tudo abarca e aceita. Tudo, o
gesto central deste poema inaugural e inteiro que tem as propriedades
das grandes curas. Como quem limpa as feridas ou tira os pecados do
mundo.
Poema da banalidade. A pura poesia dos
sonhos da sua mulher, Laura. O autocarro a largar a garagem e os
reflexos, as sobreposições, cintilações, as palavras disso tudo a
serem escritas na tela. Ruas, céus, água, pessoas, palavras. Tudo
encontra parte em tudo, diferente e um num só corpo. Poesia inscrita
no corpo da paisagem. Extraída a ela e logo devolvida. Dádiva,
aceitação e retorno de mãos vazias. O tempo. Dentro do autocarro:
dois miúdos a falarem de “Hurrican Carter”, o culpado inocente;
dois solitários envergonhados a enumerarem as “conquistas”
efémeras; um rapaz e uma rapariga novos demais no auge da anarquia –
histórias e poesia que Paterson já conhece “fora do filme”.
Paterson, o filme, é um instante cadente na marcha impávida e
pasmosa do tempo. Já não basta a câmara frontal, a luz vergada, a montagem
de sentidos, o aterro na superfície falha. É preciso o interior em primeiro plano e a ordenar
organicamente.
A sintonia com a sua mulher. Os flocos
circulares do pequeno-almoço e a arte circular dela. A
desmultiplicação dos gémeos. Os poemas começados por ele e
acabados por ela. O poema que ela é e a concretização dele.
Paterson a agradecer-lhe o jantar. Laura a gostar do seu cheiro de
cerveja quando se deita junto a ela na noite. Ainda os gémeos –
ponte curta e vacilante entre sonho e realidade.
Lá fora, e no bar, nesses limites
quotidianos, o universo todo. O barman a jogar xadrez consigo
próprio, a sua parede das estrelas preparada para Paterson, o
conselho «sempre digo que tentar mudar as coisas pode torna-las
piores». A luta do amor, sempre e ainda - Romeu e Julieta como
Antônio e Cleópatra ou Abbott & Costello. De uma ponta à outra
da satisfação, o romanesco integral e a revelação.
Nos passeios, como junto a uma valeta
ou a um charco, ou na clandestinidade do lugar mais inóspito da
noite, a poesia da banalidade. Uma menina de dez anos que encontrou
Emily Dickinson e transforma água em cabelo contendo lá dentro
nuvens e prédios. Poema como os dele, confirma Laura. Method Man, o
rapper mais bonito do clã, na lavandaria de zé-ninguém,
ainda underdog profissional no seu laboratório privado e
luxoso que é onde calhar e a vénia total de Paterson, poeta e
cidade. Como a lancheira com as imagens de Laura e Dante Alighieri
unidas com rosas – sem um o outro não existe. Encaixe ousado e perfeito nas manhãs da noite.
No complains, ao
contrário de quem Paterson faz questão de escutar os novos
problemas diários, disponível. Mas
há o cão que não se dá bem com Paterson, ainda pistolas apontadas
pelo amor, o caderno devorado, a arte indelevelmente perdida. Mas
paterson não consegue parar de olhar (escutar) nem mesmo no cinema
de terror. «A mais pequena desatenção conduz à morte»
disse Frank O'Hara, o poeta da escola de Nova Iorque que escondido
forjava poemas na hora do almoço.
William Carlos Williams, o espírito que rescende em Paterson, a cidade e o poeta, que os molda e os liberta - em casa de Paterson e de Laura, na ancestral cascata que é um homem, uma mulher, no visitante mais estranho e comum, em caracteres Japoneses. Espírito de amor e riso.
Antes de mais
sonhos e do imprevisto do acordar, a aproximação de coisas muito
diferentes. Como o Ghost Dog que comunicava perfeitamente com o seu
melhor amigo estrangeiro nesse filme sublime como o encontro de igual
para igual com a menina, alguém do outro lado do planeta lhe oferece
o mais valioso dos presentes – a página em branco.
O mundo que
funcionava perfeitamente antes dos telemóveis e nenhuma saudade
disso. Paterson confia nos mágicos e silenciosos relógios do
universo planante. Quem não conseguir escutar (olhar) a complexa e
básica música de Paterson, o filme, já se conduz triste para a
morte. O acaso é a única coisa que não é por acaso.
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