quarta-feira, 7 de junho de 2017


"The Sunchaser", Michael Cimino, 1996


«Watch out for the Judas, man!» grita o condenado de Jon Seda prestes a salvar-se para o raptado Woody Harrelson pouco depois deste lhe ter agradecido outro tipo de resgate. Nesse topo do mundo, pertíssimo dos céus e dos deuses que dizem existir de maneiras diversas, à beira dos lagos das montanhas mágicas e envoltos nos espíritos e nas formas transcendentais da natureza, não se esquece o que se viu lá em baixo, nas urbes viciadas demais que são as maquinações dos infernos possíveis. Nos segundos de respiração derradeira, visto o outro mundo, tocada a pureza, Seda, Harrelson e Cimino agradecem às montanhas e às nuvens mas ainda não perdoam às polícias e às restantes amordaças enfatuadas.

É este o percurso sideral que o filme atravessa cadentemente e une, tentando desfazer o primeiro mundo no último paraíso, a construção na abstracção, à imagem do mergulho final do “doente” prestes a limpar-se. Numa lancinante claridade, “The Sunchaser”, filme de juventude e de sangue na guelra e filme de velhíssimo curandeiro que tudo observou pasmado e impassível, pronto para colher acalmias e tempestades, mostra-nos, à medida e altura do voo da águia e dos helicópteros que por lá planam (a máquina e o “antes de nós”), como nos comportamos e o que criámos através da técnica e da ciência do cinema como lupa e espelho; que tendo sabido da deambulação romanesca da literatura ou da féerie da pintura, percebido a música ou falando com a modelação comum, nos permite sentir o interior e analisar perfeitamente a superfície só com o subjectivo de cada um – cúmulo da cosmologia e transfiguração do Cinema Americano e exemplo supremo da fusão do presente com a eternidade.

Na primeira parte Cimino cola a câmara aos passeios sujos e às chapas amolgadas, aos canos de escape tunados e à combustão carnívora no planeta de concreto; faz com que o cheiro da borracha queimada e dos cadáveres dos gangues negros e demais da California dos anos 90 seja só aquilo mas desperte barulhentas e arruínadas Romas e ressuscite Herodes (palácios ou berços, sempre o poder - «Então cumpriu-se o que foi dito pelo profeta Jeremias: Ouviu-se um clamor em Ramá, Choro e grande lamento; Era Raquel chorando a seus filhos, E não querendo ser consolada, porque eles já não existem», Mateus 2:16-17, citando Jeremias 31:15 - que diferença para os infanticídios dos 2Pac ou Biggie e as mães desprotegidas sabendo que o choro imediato é apenas a menor das catastrofes?); graffita o genérico a cores e temperaturas berrantes e mete em pé de guerra a consciência terminal de um cancro com o espectáculo pueril e perigoso da moda e das aparências (a respeitabilidade e o brilho falso que Seda arrancará a Harrelson), metendo o rap em feat com o clássico “What a Difference a Day Makes”, os engravatados na mesma carreira dos dreads, a arquitectura pós-moderna a ser engolida pelo deserto e pelas reservas originais e o fogo das metralhadores a calarem-se no silêncio cósmico; depois de tanta festa e tanta cor o medo e o temor do desconhecido... Assim, faiscando no presente tenso até entrar em campo a fabulosa personagem da Fordiana Anne Bancroft e de se ordenar em prespectiva e relação irresolúvel a medicina, a mitologia e Tupac Shakur - They Got Money For Wars But Can't Feed The Poor (adeus escória, prefiro o outro mundo). E falando de Massacre dos Inocentes, Cimino estará assim tão afastado de Rubens ou é mais uma sequela?

Partida essa barreira entra também em cena Monument Valley e definitivamente o sagrado que tudo aceita. Mas em resistência ao transcendental continuam as lutas e mais lutas dos dois ainda condenados, tentam-se novos regressos aos cheiros insustentáveis dos hospitais, experimentam-se os degredos e tentações do meio do caminho... começando algures, sem óbvio plot de argumentista, a advir em filigrana e na paz dos anjos o entendimento, a constatação do próximo, o encontro dos contrários, o semelhante diferenciado, a reciclagem e os recomeços, o prometido no preto & branco dos sonhos, a Natureza. Como escreveram e cantam Mundo Segundo e Sam the kid, agora:

«Também faz parte
Pensei num péssimo e disse inicio
Pra vir encarar á pressa ou começa no sacrifício
Em cada fim há um ínicio, em cada ínicio uma história
É hipótese duma nova trajetória, porque a glória


Também faz parte»


O cometa vai pressentindo a terra prometida e o thriller que também foi policial e filme-negro chega fatalmente ao western, e volta a encontrar um novo mundo, já triste demais em comparação com o cinema clássico ou apenas lógico na mescla de motores, gasolina, índios, cavalos e tecnocratas invasores, mas com tudo intacto a explorar para além do que a vista alcança. «Apenas um monte de pedras e neve. E tristeza. Uma grande tristeza. Mas para os Navajos, ali é onde habitam os espíritos. A forma que a terra encontra para contar histórias», avisa uma super-mulher no centro do centro do nada que tudo comporta, indicando a direcção para todos os lugares e todas as horas. Do primitivo e directo anjo e demónio Tupac para o simbolismo e subtileza de Andrew Wyeth ou Hopper, Americanos por excelência. Até que todo o ecrã e toda a profundidade são abarcados pelo ser primitivo que percebeu Dibe' Ni'tsaa e as lyrics dos genocídios de bairro, ouvindo as orações e os escarros úteis de linguagem com o mesmo interesse – essa personagem monumental e indecifrável, de beleza, singeleza e imponência devastadoras é o homem Michael Cimino, muito antes do artista. Tal como tinha sido vândalo ou águia, gangsta ou Bancroft, aí, funde-se no absoluto - «I wrote a song 'bout every damned thing I've seen» cantou no seu livro “Big Jane” ou reinventou e levou a elevado lume Marta Ramos a partir de mais essa viagem a todo o rumor inexplorado.

O mergulho, salvação e ilusão finais comentam pacíficos os suicídios inaugurais e provam que estamos perante um cineasta tão panteísta e de alcance infinito como alguém plantado no seu tempo, investigador e personagem activo no teatro que o acolheu, um realista lúcido e atento, torturado e enternecido mas que não dá tréguas, imiscuindo-se nos pântanos do Mal para só daí tentar alcançar as águas de Deus, os Édens e a forma elementar. Cimino que amou Jackson Pollock e Rembrandt, o estilhaço e o composto, as tripas e o cristalino azul do oceano, o semelhante e o longínquo. Cimino que no meio dessa década explosiva fez a obra definitiva sobre os boyz n the hood (respect to Singleton and Ice Cube), da raivosa música ao bailado chamado basquetebol, da intolerância à justiça poética, estando toda a carne e toda a alma, toda a iconografia e mito, representados no seminal Jon Seda que lá no cúmulo também canta como sorri «Flying like an eagle through rainbows (...) the outlaw and the Indian flew (...) roll big chief roll...» do citado romance. “The Sunchaser” é o mais puro canto, porque panorâmico e com todos os tons e harmonias, do findar de milénio. Tudo nos convoca e oferece e todos os traçados e atalhos nos propõe. Que muitos não tenham querido ver, não pudessem ver cegos de tanta publicidade, ou tenham participado no apagamento tal como apagaram Cimino; que outros tivessem visto e arriscado e que mais ainda possam ir a tempo, é parte e todo da dádiva. O lago inesgotável.

É Bob Dylan, o romântico baladeiro e o selvagem, o místico assilvestrado e andarilho sem moda, que certo dia como Cimino percebeu que o hip-hop não era só antro de milhões e de pussys mas no essencial uma cultura e movimentação primitiva, original, autóctone, enfim, pertencente à terra e nascida nela, pioneiros com causa, cientistas, sedentos, escrevendo assim:

«Danny perguntou-me o que é que eu tinha andado a ouvir e disse-lhe o Ice-T. Ficou espantado mas não devia ter ficado. Uns anos antes, Kurtis Blow, um rapper de Brooklin que teve um êxito chamado “The Breaks”, convidou-me para entrar num dos discos dele, e familiarizou-me com aquela coisa. Ice-T, Public Enemy, N.W.A., Run – D.M.C. Aqueles tipos não estavam mesmo para aguentar tretas. Andavam a bater nos tambores, a partir tudo, a dar cabo do sistema. Eram poetas e sabiam bem o que estava na berra. Mais cedo ou mais tarde, estava destinado a aparecer alguém diferente que conhecesse aquele mundo, que tivesse nascido e sido criado nele... ser tudo aquilo e mais qualquer coisa. Alguém com uma cabeça talhada para ser o melhor da paróquia e com poder na comunidade. Ele seria capaz de se equilibrar só numa perna numa corda bamba esticada pelo universo e seria reconhecido quando chegasse – não há ninguém igual a ele. O público seguiria aquela tendência, e eu não os censurava. O tipo de música que eu e o Danny estávamos a fazer era arcaica. Não lhe disse isso, mas honestamente era o que sentia. Com o Ice-T e os Public Enemy a abrir caminho, um novo interprete estava destinado a aparecer, e nada como o Elvis. Não iria abanar as ancas e ficar a olhar para as rapariguinhas. Utilizaria palavras duras e trabalharia dezoito horas por dia.»

Blue como Cimino. O descomunal índio e a descomunal magia. Percurso sideral por essa música e profecia e liderança. Do sonho ao possível. Do fascinante ao absoluto. Da carne e da gravidade ao voo livre das almas. Para lá disso tudo. Do conhecido. Quem acredita, verá, tão velho e tão novo quanto isso.

Watch out for the Judas, man!

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