quarta-feira, 8 de agosto de 2018



First Reformed, Paul Schrader, 2017

Dois grandes filmes recentes, não necessariamente inseridos na vinheta do contemporâneo, projectam pelos meios essenciais do cinema várias matérias da ordem do invisível: o encontro de almas, o som do silencio, as vozes do silêncio.

“Frantz” e “First Reformed” comportam atrás de si duas guerras diferentes: na do primeiro ainda se fazia ponto de honra em não matar pelas costas o oponente que calhou em sorte ser inimigo; na do segundo a cobardia, a carnificina e o passo seguinte do horror total impõe-se. Num e noutro o Pai insistiu com o filho para se alistar, os rostos dos sobreviventes adquirem a carne viva e defunta que sobrou dos estilhaços bélicos, adquire ainda o espírito do que tombou pelas suas mãos ou pela sua ordem, sendo a coragem a única via de uma possível salvação arrancada às trevas mudas de razão.

Em Ozon o ser que matou o próximo aproxima-se de quem chora a sua vítima e da impossibilidade lógica desse encontro brota uma luz improvável e preciosa composta da honestidade dessas emoções partilhadas que a todos cede um caminho.

Schrader faz o avanço possível do caos abstracto que se alastrou de “Taxi Driver” para uma espécie de novo mundo em êxodo, furado por novas pragas, pejado de existências cercadas nos poços da evolução terráquea, vislumbrando-se um Apocalipse capaz de deixar todos e cada um em estupefacção. O tema continua a ser o do Génesis, o embate com o Paraíso e os jardins do Éden sujos, imperdoavelmente vilipendiados, a expulsão eminente; para lá da rasura formal de Robert Bresson, a violenta austeridade original de John Ford faz os ajustes dos gonzos mestres da criação.

Mas para além da altercação oficial que legaliza e saca o sentido à morte, o Padre, o ambientalista e a sua mulher prenha são metralhados por duas guerras que ocupam todo o seu centro e interior: o silêncio divino, a noite na alma conhecida por todos os homens em todos os tempos, o desespero; e o mal que a raça concedeu ao mundo e à criação, desprezando a natureza, o sagrado. O imemorial e o novo feitos um só bloco de culpa. Irreconciliável.

Pode Deus perdoar-nos? É a pergunta capital para todas essas guerras. Sendo Deus a natureza, a viúva, os pais, ou o desespero. “Frantz” começa por ser negro dos interiores obscuros das casas até às águas brilhantes que não redimem, para o arco-íris complexo mantido na origem dos seres ressuscitar e devolver a ventura. “First Reformed” talvez termine com uma morte de uma atrocidade insuportável que antecipa a esperada desde a primeira tosse que lhe ouvimos, talvez termine com um sonho e uma ilusão, certamente abre para um nascimento.

O rosto dos quarenta anos de Ethan Hawke é um rosto velho e sofrido de falhas inadmissíveis que lá dentro sustenta um olhar de criança preso por finos liames indestrutíveis. Olhar puro que encontra a certeza da mulher prenha que quer seguir em frente rumo a uma união que só pode despegar desta terra e do nosso colete de forças cósmico. Da mais horrível imagem do cinema contemporâneo – o tecido preto da batina sacerdotal violado pela abjecção do colete de explosivos – vamos ficar a planar na dimensão do sonho, parente da coragem e da pureza que assim enfrenta o terror do aleatório que mata pelas costas.

“Frantz” e “First Reformed” abrem triturados, aninhados e sem atalho para a luz e acham qualquer resquício fundamental dela no acreditar mais básico, num acreditar de criança, uma irresponsabilidade que responde a um mundo virado do avesso e sem moral da história. Olhar puro, o verdadeiro Tema das duas obras.

«Bem-aventurados aqueles cujos caminhos são íntegros e que vivem de acordo com a Lei do Eterno!» - palavras que saem da boca do Padre, dos Salmos, do Fiódor Dostoiévski de Schrader ou veladas na libertinagem dos poetas dos amados de "Frantz".

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