First Reformed, Paul Schrader, 2017
Dois grandes filmes recentes, não
necessariamente inseridos na vinheta do contemporâneo,
projectam pelos meios essenciais do cinema várias matérias da ordem
do invisível: o encontro de almas, o som do silencio, as vozes do
silêncio.
“Frantz” e “First Reformed”
comportam atrás de si duas guerras diferentes: na do primeiro ainda
se fazia ponto de honra em não matar pelas costas o oponente que
calhou em sorte ser inimigo; na do segundo a cobardia, a carnificina
e o passo seguinte do horror total impõe-se. Num e noutro o Pai
insistiu com o filho para se alistar, os rostos dos sobreviventes
adquirem a carne viva e defunta que sobrou dos estilhaços bélicos,
adquire ainda o espírito do que tombou pelas suas mãos ou pela sua
ordem, sendo a coragem a única via de uma possível salvação
arrancada às trevas mudas de razão.
Em Ozon o ser que matou o próximo
aproxima-se de quem chora a sua vítima e da impossibilidade lógica
desse encontro brota uma luz improvável e preciosa composta da
honestidade dessas emoções partilhadas que a todos cede um caminho.
Schrader faz o avanço possível do
caos abstracto que se alastrou de “Taxi Driver” para uma espécie
de novo mundo em êxodo, furado por novas pragas, pejado de
existências cercadas nos poços da evolução terráquea,
vislumbrando-se um Apocalipse capaz de deixar todos e cada um em
estupefacção. O tema continua a ser o do Génesis, o embate com o
Paraíso e os jardins do Éden sujos, imperdoavelmente vilipendiados,
a expulsão eminente; para lá da rasura formal de Robert Bresson, a
violenta austeridade original de John Ford faz os ajustes dos gonzos
mestres da criação.
Mas para além da altercação oficial
que legaliza e saca o sentido à morte, o Padre, o ambientalista e
a sua mulher prenha são metralhados por duas guerras que ocupam todo
o seu centro e interior: o silêncio divino, a noite na alma
conhecida por todos os homens em todos os tempos, o desespero; e o
mal que a raça concedeu ao mundo e à criação, desprezando a
natureza, o sagrado. O imemorial e o novo feitos um só bloco de
culpa. Irreconciliável.
Pode Deus perdoar-nos? É a pergunta
capital para todas essas guerras. Sendo Deus a natureza, a viúva, os
pais, ou o desespero. “Frantz” começa por ser negro dos
interiores obscuros das casas até às águas brilhantes que não
redimem, para o arco-íris complexo mantido na origem dos seres
ressuscitar e devolver a ventura. “First Reformed” talvez termine
com uma morte de uma atrocidade insuportável que antecipa a esperada
desde a primeira tosse que lhe ouvimos, talvez termine com um sonho e
uma ilusão, certamente abre para um nascimento.
O rosto dos quarenta anos de Ethan
Hawke é um rosto velho e sofrido de falhas inadmissíveis que lá
dentro sustenta um olhar de criança preso por finos liames
indestrutíveis. Olhar puro que encontra a certeza da mulher prenha
que quer seguir em frente rumo a uma união que só pode despegar
desta terra e do nosso colete de forças cósmico. Da mais horrível
imagem do cinema contemporâneo – o tecido preto da batina
sacerdotal violado pela abjecção do colete de explosivos – vamos
ficar a planar na dimensão do sonho, parente da coragem e da pureza
que assim enfrenta o terror do aleatório que mata pelas costas.
“Frantz” e
“First Reformed” abrem triturados, aninhados e sem atalho para a
luz e acham qualquer resquício fundamental dela no acreditar mais
básico, num acreditar de criança, uma irresponsabilidade que
responde a um mundo virado do avesso e sem moral da história. Olhar
puro, o verdadeiro Tema das duas obras.
«Bem-aventurados aqueles cujos
caminhos são íntegros e que vivem de acordo com a Lei do Eterno!»
- palavras que saem da boca do Padre, dos Salmos, do Fiódor
Dostoiévski de Schrader ou veladas na libertinagem dos poetas dos
amados de "Frantz".
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