“He
Got Game” é o grande filme de Spike Lee nos anos noventa, e o
filme americano que melhor representa esse tempo. Em Portugal foi
largado como uma foleirada para nerds
directamente para as prateleiras dos videoclubes no saudoso porque
vivo, orgânico, palpável, de autoimolação, formato VHS. Ainda
hoje permanece um segredo a desvendar na sua plenitude universal que
condensa feliz Michael Jordan e William Shakespeare, os Public Enemy,
a Bíblia Sagrada e um movimento operático de rua que possibilita a
aceitação de todas as formas cinematográficas revestidas
pelo movimento da emoção – infinitas velocidades e ritmos e
somente a velocidade e o ritmo únicos da emoção. Congrega,
devorante, o esventramento de Jackson Pollock e um ressuscitar agora
da arte contemplativa, contrastada e clínica de Andrew Wyeth; a
alucinante realidade em primeiro grau de Auguste e Louis Lumière e o
speed MTV redimido.
A
narrativa começa básica e antiga como a sede de poder. Um pai que é
libertado provisoriamente da prisão para tentar convencer o seu
filho a assinar um contracto de atleta com a universidade que
pertence ao governador que lhe pode reduzir a pena caso siga os seus
intentos. Para deste modo a história se tornar trágica e complexa
na aproximação do pai, do filho, e das várias santíssimas
trindades que chegam do passado e escancaram o futuro. A nostalgia,
os cacos do presente, a edificação e a luz – tudo em alta
rotação. Num dos grandes momentos do filme o Pai revela ao Filho
que o seu nome é Jesus não por causa de Jesus da Galileia mas antes
porque muito depois desse existiu um Jesus das quadras de basquetebol
que era a verdade, um
Jesus da Filadélfia do Norte, um Jesus dos parques de diversão, dos
recantos mais inóspitos do planeta. Um Jesus preto, mas um Jesus sem
sombras para dúvidas. Um Jesus que também tiveram de abafar, mas
isso já são outros quinhentos... o que Spike nos diz, bruto e
carinhoso como o ser que educa, e já nos tinha feito ver isso no
genérico fresco e bonito como uma primavera inaugural, é que o
brilho precioso, o tesouro de qualquer progenitor, de qualquer pai de
qualquer raça ou credo ou classe, a redenção de uma humanidade,
pode acontecer nos berços de ouro de Nova Iorque ou de Lisboa ou num
meio fétido plantado no cú do mundo que mesmo assim possa permitir
a uma criança desenvolver o talento e a paixão. Trabalhando todas
as horas como Jordan... sofrendo as chagas seculares... as
humilhações... justificado.
“He
Got Game” está ao lado de “The Pride of the Yankees”, de “Bull
Durham” ou de “Forget Paris” numa lista dos melhores filmes
alguma vez feitos sobre desporto, mas acima de tudo dos que
transcendem essa categoria para serem primeiramente sobre o respeito
próprio (o self respect acatado
e transmitido por Stallone na saga “Rocky”, outro dos melhores
filmes de sempre). O Jesus Shuttlesworth de HGG, o recordista das
divisões secundárias que não o conta a ninguém encarnado por
Kevin Costner em BD ou o árbitro a morrer de amores de Billy Cristal
vão com certeza cair nas mais diversas tentações para se manterem
firmes na noção também mitológica de que se seguires o
teu coração não trabalharás um único dia na vida.
Obviamente a única via para o sagrado que não permitirá que se
queira tomar banho mais cedo
para ir dar uma queca ou snifar uma linha, largar o escritório antes
das cinco da tarde, conseguir um atestado de baixa médica pelo amigo
da amiga, contar os dias para as férias, querer ter férias... Em
“He Got Game”, o filme que escolho para homenagear Francisco
Rocha e o seu projecto de mãos vazias agora chamado My Two Thousand
Movies, ninguém que aparece ali por inteiro tem um trabalho
mas antes uma vida plena à Jack
Kerouac ou à Huckleberry Finn, e quem levou a premissa original para
lá dos limites acabou por matar a sua paixão e passar a penar nos
infernos dos que demais amaram nesta terra das regras.
Parabéns,
Francisco do Sobral de Monte Agraço, you got game!
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