The Hired Hand, Peter Fonda, 1971
No começo dos anos mil novecentos e setenta Peter Fonda era o tipo mais cool do universo, mas também um fervoroso activista, vivendo por inteiro a contra-cultura nas suas mais variadas explosões e solidões, de Thomas Pynchon a Dennis Hopper. Filho do lendário Henry Fonda, cresceu na sombra da cepa da árvore do classicismo, talvez olhando estupefacto ou agradecido as experiências finais do pai, em filmes de Sergio Leone ou de John Leone. Os valores firmes e severos de John Ford e a humilhação política e humanista contra a guerra do Vietname, o mundo electrónico e a deriva sob o ritmo estupefaciente, em forças de acção / reacção primordiais, moldaram harmonicamente – ou nessa impossibilidade - a sua primeira e fabulosa experiência na realização com “The Hired Hand”.
No prelúdio – à Mozart intoxicado -
temos três vagabundos, forasteiros mesmo nas terras onde nasceram ou
se fizeram homens, fugindo sem saberem do quê e com sonhos de
encontrarem o grande oceano da libertação última, mas vai ser a
tristeza a sobrepor-se a um deles e a precipitar a tragédia. “The
Hired Hand” é um filme sobre a tristeza de um tempo sem lar nem
pátria, e Peter Fonda fez um Western ao invés de um “Apocalipse
Now” ou de um “Five Easy Pieces”, expondo os movimentos e a
tectónica das placas das fundações e do desenrolar da história
americana, nesse vaguear sem causa nem justificação, sem meta nem
ameaça definida, sempre na forja de uma nova odisseia para se continuar um espectáculo qualquer, assim mesmo capaz de provocar as mais terríveis
altercações. E, sem justificação credível, o jovem morre, à
imagem de milhares de jovens na guerra nova da nova altura, e ficam
os dois mais velhos. Um deles teve um dia família e vai procurar a
mulher e a filha. O outro, sem nada para fazer, acompanha-o.
Nam June Paik ou Stan Brakhage e
Rembrandt, eis a ousadia e o triunfo de Peter Fonda. Passado o tempo
do mito e dos grandes pistoleiros, sem sombra de um Gerônimo nem
mesmo de um romântico Billy the Kid, em terrenos cravados de
guerrilheiros incompetentes, de matéria solar esquisita, as
sobreposições numéricas e os sinais eléctricos - como na
maravilhosa composição doente e lírica de Fonda e Warren Oates a
debaterem-se num céu esventrado a fogo crepuscular que os cospe das
pinturas históricas – são os glóbulos que nos transportam o
oxigénio, os gases, oferecendo-nos imunidades e os mais
incompreensíveis anticorpos, uma química extasiante que
paradoxalmente lembra e fala com os elementos naturais. Toda esta
demência e desregra pictórica tenta encontrar um rumo e uma beleza
possível em qualquer meio do nada, gravuras rupestres revistas pelo
presente, aspiração a um êxtase místico no alucinógeno e
venenoso caos circundante.
Tentado o resgate da lenda e do mito,
no centro do pó, aguarda-os, nos confins do mundo, uma mulher e uma
menina de braços abertos, num incognoscível reduto de pureza que
somente os interiores, as velas, e a tinta (neste caso a película do
deus Vilmos Zsigmond) transformada em luz diáfana de um Rembrandt ou
de um Rubens, podem fazer aceder. Como nos velhos escritos, uma
mulher abandonada pelo marido ainda é uma mulher impura, e toda a
sua exposição e clamação ao amado só vai funcionar em instantes
perfeitos que durarão breves momentos em roubos clandestinos à
eternidade – o passado, a propensão e fatalidade erráticas e a
guerra suja vão deitar a sua garra e apenas deixar vivo o mais
estranho e imune de todos,
Oates.
Nessa
clandestinidade, nessas composições equilibradíssimas abarcadas
pela luz de Deus, só se dizem verdades confirmadas pelos rostos, do
desejo sexual por si só até às diferenças das perguntas feitas
por um homem ou por uma mulher, pelo melhor amigo ou pela esposa, com
as diferentes dores dissecadas, o diverso amor, uma ordem harmónica
que se vai esculpindo na inscrição da tragédia. Em “The Hired
Hand” podemos perceber o peso bruto da roda de uma carroça
primitiva através da simples angulação correcta da câmara de
filmar, verificar uma queimada em fogo real em contraposição à
física desvanecida da moderníssima era Sex and drugs and
rock and roll. Peter Fonda,
ainda a refazer-se da experiência de “Easy Rider” e apadrinhado
pelo Roger Corman de “The Trip”, no mesmo ano da calamidade
derradeira que ainda é “The Last Movie”, puxou mais os limites e
a pacificação deles, numa orquestração musical realmente de
acompanhamento, momento a momento, de forma sensível e sem fórmula.
No fim, no réquiem langoroso e estranhamente calmo, uma entrada em casa que não é somente a possível mas a
superior, a escrita no destino ou nas estrelas. Ainda, depois de
tudo, a herança. Ai de nós, sem guia.
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