domingo, 3 de fevereiro de 2019



All Is Lost, J.C. Chandor, 2013


“All Is Lost” traz à baila dos solitários e dos preguiçosos um pensamento gratuito, ainda antes de um desejo, que em certa época se tornou recorrente: se nos tornássemos a única pessoa no mundo, não teríamos de repetir incessantemente banalidades como fazer a barba, cortar o cabelo, ir às aulas, apanhar sermões, etc. Mas O Nosso Homem do contido Robert Redford é um clássico, e então decide barbear-se quando já começa a perceber que tudo está perdido e que é o único ser à face da terra, e sobretudo o único homem no mar. Sendo assim, esse acumular de gestos, ideias, instintos rudimentares, soluções, desespero, esperança, realismo e delírio, que acontecerá nos cento e poucos minutos de metragem e nos poucos dias da narrativa, vão-nos ser dados pela velha e generosa escala de planos apurada por Hollywood: planos médios, americanos, grandes-planos, pormenor, e por aí fora. Seria muito fácil ter sido Tarkovskiano, exótico ou estático conforme a estética radical escolhida, mas o caminho escolhido pelo realizador J.C. Chandor acompanha a batida do Nosso Homem, a cadência, os sinais vitais até a luz se tornar cada vez mais bruxuleante e o outro lado da vida mostrar a carantonha.
 
O final é fabuloso como uma revelação cósmica de outros Seres ou como um escavamento hieroglífica e resume a perdição em causa mas também a floresta da vida de cada um: certo dia, a certa hora, uma salvação qualquer clamará por nós, mas nós, por causa de deixarmos de acreditar ou já não sentirmos nada, por causa de tanta rotina e usura, tapamos os ouvidos até ao mais sublime dos clamores; ou então é só uma ilusão e nem ao sonho se olha. A partir daí a luz apaga-se mesmo e cada espectador traz para si, ou não, a salvação. Depois até aquela oração nos créditos, tal como o embalo de acompanhamento anterior na banda-som, pode ser bem escutada, ou não, pode ser uma sinfonia do rumor agudo do mundo, ou apenas um enchimento de chouriços. O filme mais cerrado pode ser, bem vistas as coisas, o mais elíptico.
 
François Truffaut disse certo dia a propósito de Roberto Rossellini que o génio dele tinha também a ver com a falta de imaginação. No centro de tanta aridez e de tanto nada, Chandor e Redford não procuram soluções engraçadas nem criativas, antes seguir o afluxo do sangue nas veias e o choque das sinapses e do medo em colisão com o fluxo imperturbável da água. Nos tais sonhos dos solitários ou dos preguiçosos em que se sonha estar sozinho na extensão toda do mapa, sonha-se ainda que algures estará uma rapariga e que em tantos anos um ou outro irá ouvir um grito. Em “All Is Lost” não temos Deus nem sabemos se a carta escrita será para essa rapariga, tudo o que não é explicado só o é pelos mecanismos da câmara de filmar e do próprio náufrago, é ver ou acreditar para querer.

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