segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019



Goin' South, Jack Nicholson, 1978


Para sul, sempre para sul. É esta a ideia do outlaw de Jack Nicholson em “Goin' South”, a sua segunda realização. Filmado na região de Durango, em pleno México, a fazer de pleno Texas, acaba como começa, mas ao contrário, seguindo o lema do escritor Charles Bukowski, bandoleiro da índole deste Jack - A Sul de Nenhum Norte. No pontapé inicial – literalmente – esse Henry Lloyd Moon foge a sete pés da lei, enterra-se no Rio Grande, desagua do outro lado e encontra-se salvo. Mas os compatriotas, sem jurados à vista, ignoram o curso e a fronteira e encaminham-no para a forca, depois de até o cavalo do fugitivo não ter acreditado na danada da sorte. No apito final, ou já no prolongamento, Moon foge novamente, mas agora com a senhora Moon que o salvou de ser carne para abutres, apetrechados de ouro, não para a Filadélfia dos desejos da princesinha, mas sim para todas a ilusões do outro lado da América.

Sob o tom da comédia desgarrada e perto do deboche, assumindo as caricaturas e a irrisão para lá do aceitável pelas regras do script, estamos perante a mais estranha das escolhas de Nicholson depois da chuva de reconhecimento e de óscares. Devendo muito aos acordes retorcidos do “The Missouri Breaks” de Arthur Penn, mas reinventando e regressando a uma desregra outra que depois do cinema clássico e em plenas guerras e paranóias absurdas já não parecia possível. Assim, Nicholson pôde dar todo o alarido ao seu overacting que só ficaria famoso em “Shining” e arrastar toda a sua trupe com ele (de Christopher Lloyd a John Belushi, baixando para o Danny DeVito; só as mulheres parecem pessoas normais, sobretudo a bela Mary Steenburgen que se calhar só é bela assim pois foi olhada da maneira especial que essas belas normais merecem). Mais do que isso, arrastar para aí toda a narrativa mítica americana da febre do ouro. E da pena de morte. Da guerra civil e das desconfianças do outro. E do amor quando e aonde menos se espera. “Goin' South” é uma entrada muito válida na história do western pois vemos esse género fundador revisto pela demência das comédias Hawksianas tipo “Bringing Up Baby” ou o Capra de “Arsenic and Old Lace”.

No rodopio do vagabundo a tentar desflorar a madame, das explicações válidas para o que é natura e contranatura através de metáforas escavadoras, nas perseguições macho-fêmea em todo o terreno emulatório da animalada com cio, no mijo quente de cavalo que afasta a desconfiança, ou pelas minas da perdição em duplo sentido, aproxima-se e até se funde o perpétuo ridículo da demência sexual com a demência argentária e guerreante, tendo como combustão instantânea o progresso nos caminhos-de-ferro que tudo ameaçam. E neste pandemónio, uma bonita e absolutamente rídicula história de amor surge aos trambolhões, tendo na mina o berço dos amantes miticos e ilicitos. A primeira vez, logo depois do vagabundo ter salvado a senhora Moon das garras de um ultra-civilizado, passada a chuva diluviana e acabando no quarto como por magia bíblica, o passo natural depois da outra salvação às garras dos casais de bandidos e senhoras normais já oficializados. A segunda depois da humilhação com morcegos, do balanço feito dos sonhos, de se terem tornado amigos, entre afectos e mimos inesperados, acabando pela descoberta do ouro no rosto dela, com todas as ironias e ambiguidades laçadas e entrelaçadas em beijos dourados, aí sim, deventes da pintura sentimental.

Entre tantos amigos da onça que o vil metal vai destrinçar, matando ainda mais o ridículo e o tom excessivo, os magnatas vão conseguir todos os terrenos para os cavalos de ferro, mas é lá no escuro do buraco e no fundo dos fundos das almas que uniram o condenado à morte com a Senhorinha que vai estar o busílis da questão. Pelo ridículo se mata, pelo ridículo se vence, e o casal revoluciona e faz tremer todas as convenções até ao referido plano final que dura, e dura, calmo, dorido e pacificado, depois de reverter mais uma vez as regras do assalto a uma caravana. Néstor Almendros, o deus dos Deuses do reino encantado da película que tinha acabado de chegar de Alberta, no Canadá, que serviu de Texas para o Terrence Malick de “Days of Heaven”, tendo chegado à poesia inicial da criação e ao seu corromper lógico, e já a caminho da cegueira, aterrou na maluquice de Nicholson e serviu-lhe de bandeja a merecida limpidez que permitiu focar apenas, e tudo, a febre, e a pureza complexa do amor que no veneno se constrói honestamente. A Sul de Nenhum Norte, e o rumo arrancado às próprias trevas que ali são o poder, já esse que hoje em dia quer construir o Muro da Vergonha e fechar uma das mais fascinantes e encantatórias terras. Se por mais não fosse e tal já tivesse sido feito em 1978, não teríamos o boomerang da cena inicial até ao fecho e todo o off político-vergonhoso que chega a esta Casa Branca. Uma valente entrada no western, esta coboiada sem pés nem cabeça.


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