terça-feira, 18 de junho de 2019

PEDRO COSTA de Carlos Melo Ferreira



A propósito do livro PEDRO COSTA de Carlos Melo Ferreira



No Quarto da Vanda foi o primeiro filme de Pedro Costa que vi. Na verdade, talvez antes tenha assistido a Casa de Lava e Ossos, numa caixa de DVDs da Atalanta Filmes. Marcou-me bastante esse díptico, tendo-o visto antes ou depois de Vanda, mas, apesar das suas singularidades, conseguia perceber neles muitas coisas das centenas de filmes que eu consumia anualmente por esses anos em que estudava cinema no Porto. Muitas coisas, certas ou erradas, de Roberto Rossellini a Robert Bresson, passando até, imagine-se, por Tarkovski. Se alguém que estuda filmes ou faz filmes só vê filmes, não tem saída, os seus filmes ou a maneira de falar sobre os filmes chegará somente dos filmes. Mas No Quarto da Vanda não me fez lembrar o cinema.

Recordo-me das condições em que ele literalmente me deixou KO como se fosse agora: um auditório gelado, com a luz do dia a entrar por todos os buracos, ecrã barato e coçado destinado às apresentações PowerPoint dos arquitectos que dominavam a escola, cadeiras duras de café, um cubículo concebido para tudo menos para se projectarem filmes. Também me lembro bem do formato, das condições da cópia e da qualidade do projector: cassete VHS, possivelmente gravada da televisão, com a janela possivelmente cortada, uma linha carcomida a ocupar a parte superior da imagem, típica do analógico e da sua matéria e compatibilidade sempre flutuante, o som vibrante, rugoso, estridente, as colunas baratas a não acompanharem o revolucionário trabalho sonoro que rivalizou com as composições pictóricas, o projector quase de slides tantas vezes a ceder e a esmagar a comunhão e a guerra entre os dourados e os negros. Uma sessão catastrófica, tecnicamente e porque bem perto da entrada da sala, que não tinha porta, passavam professores, alunos, empregados de limpeza, que talvez fizessem de propósito para falarem mais alto devido à tentativa de apagão do seu espaço de excelência e ofendidos pela banda sonora de tosses, cuspes, vómitos, hip-hop, e amiúde, heresia, uma peça clássica de um tal György Kurtág nos interstícios de toda aquela degradação. Também da parte dos colegas de turma houve de tudo, dos olhos esbugalhados até ao desespero, passando pelas longas idas à casa de banho, mas sobretudo, para o bem e para o mal, os olhos esbugalhados.

Quentin Tarantino, outro cineasta que dizem estar nos antípodas do cinema de Pedro Costa, atirou que se um filme for bom, cinematicamente e humanamente forte, resiste a tudo. Confessou ainda que durante a montagem dos seus filmes transfere uma versão dos 35 mm para VHS foleira e que se o filme ainda assim resistir numa televisão antiga, com os enquadramentos falsificados e as cores manhosas, muitas vezes até a preto e branco propositado,  a coisa está lá, existe filme. O que aconteceu naquela tarde de 2006 nesse infame auditório improvisado da ESAP, onde Carlos Melo Ferreira leccionou por décadas a fio, partindo pedra lentamente para que um dia fosse possível mostrar No Quarto da Vanda ou a resistência de Straub / Huillet (que também nos mostrou) foi ainda assim histórico. Foi histórico duplamente, ou seja, mesmo ou até por causa dessas condições, uma obra de arte transcendeu-se para lá de todas as contrariedades, foi a sessão de uma vida.

As aulas de Carlos Melo Ferreira eram especiais porque generosas, entre o profissionalismo Hawksiano e uma ruptura académica que sempre me pareceu vinda da nouvelle vague francesa de que ele tanto nos falava. No início, antes ainda de ter que marcar falta aos estudantes de cinema que desprezavam a história do cinema, perguntava aos alunos que filmes viram durante a semana, o que leram, etc. Depois seguia-se uma exposição sobre o filme que iria mostrar na parte final da aula, exposição que normalmente consistia na leitura de um texto seu, a maior parte das vezes segundo os preceitos de Gilles Deleuze (lembro-me agora que em 2010, quando voltei a estudar, o Carlos já quase só improvisava). Seguidamente, perante o desfilar furioso das imagens e sons das constantes obras-primas que ele escolhia, muitos cigarros, muitos comentários seus que na maior parte das vezes soavam desconcertantes (certa vez disse que os irmãos Coen de Fargo eram meninos de coro em comparação com o Jacques Tourneur de Nightfall; de outra contou que alguns cinéfilos diziam por vezes encontrar Oja kodar em Lisboa saída das névoas de F for Fake) e mais cigarros, muitos cigarros até o Estado os ter proibido nas aulas.

Mas durante as três horas que No Quarto da Vanda dura, o Carlos não usou Deleuze, tenho quase a certeza. Falou-nos de pintura, de composições clássicas, da posição dos corpos no espaço confinado, do fora de campo sonoro que extravasava o quadro para lá de todos os limites, de constelações secretas e ínfimas que pediam muito, que pediam tudo aos nossos sentidos, ao nosso olhar, concentração e coração. Falou-nos em Johannes Vermeer, falou-nos em Peter Paul Rubens, mas disse-nos sobretudo que Pedro Costa trabalhava por amor: amor aquelas gentes, amor aquele bairro, amor a uma fatia gigantesca de humanidade que normalmente o cinema não tem coragem de se aproximar. Falou-nos também de confiança, confiança da Vanda, do Pango e de muitos que o deixaram entrar nos quartos e becos das desaparecidas Fontainhas, para Costa lhes devolver esse gesto com toda a paciência e saber formal que detinha. Costa, e, contou-nos o professor, uma pequena câmara mini-dv com que gravava centenas de horas, deixando-nos espantados, nós estudantes que citávamos Godard, acreditávamos na desconstrução, nas quebras de raccords e na câmara solta. Pensando agora nisso, quase aposto que não entrou nem calcorreou os caminhos pedregosos do cinema moderno… Quando certa vez conheci Pedro Costa nos laboratório da Tobis e lhe perguntei como é que ele conseguia aquelas imagens, respondeu-me que não era mágico, que todos o podiam conseguir.

A partir daí os horizontes expandiram-se imenso para alguns. Até à estreia de Juventude em Marcha, meses depois. Nesse intervalo li as entrevistas de Costa a Serge Kaganski ou a Jaques Lemiére, mas também as mais recentes, sobretudo uma em que ele disse que John Ford nunca teve uma ideia de cinema, antes crenças fortíssimas para imagens e sons. Em Juventude em Marcha, sobre o qual Carlos Melo Ferreira não teceu considerações mas apenas nos pediu encarecidamente para irmos ver, descobri que era possível elevar em digital o “miserável” Ventura aos píncaros colossais do Woody Strode de Sergeant Rutledge. Ou como se formularia melhor posteriormente, transformar um Zé-Ninguém, um John Doe, num príncipe.

Portanto, se o cinema de Pedro Costa foi muito importante para mim em termos de cinema mas sobretudo em termos humanos, devo-o a Carlos Melo Ferreira, que continuou a escrever sobre o filmes seguintes, sobretudo destacando o compromisso de vida e de morte com a comunidade que permite tais filmes. Neste livro está lá tudo isto, e ainda mais, de que destaco o que aprendi:

- um conceito e uma visão de “arte do cinema” complexa, que inclui a disjunção entre cinema e arte para uma articulação a um nível mais profundo; a importância fundadora e salvífica de Casa de Lava; a integridade e inteireza de todos aqueles seres mesmo no mais profundo sofrimento; que para Pedro Costa o cinema é uma arte equiparada às outras grandes artes estabelecidas (música, pintura, até arquitectura, etc.); ainda, conceitos para mim novos: o Inciso espacial e a análise exaustiva do plano-sequência com profundidade de campo, bem como o consequente desenvolvimento da iluminação em negro sobre o negro; o Inciso temporal e a distância justa, «o tempo que escorre no vazio» quando os personagens saem de campo, como escreve mais à frente; o Inciso audiovisual desdobrado para a “mistura audiovisual”, o falso que pode tornar tudo mais verdadeiro, sintetizando no final um primitivismo que rasgou muitos caminhos para o futuro; passando pelo conceito misterioso de Inciso artístico, que não é meramente a soma dos anteriores, elaborando com precisão sobre o tipo de beleza presente em cada filme e sobretudo na trilogia das Fontainhas --» distendendo-se aí para a consciência social e política das formas; ainda o caudal de pensamento sensível e comparativo que mergulha no Excurso cinematográfico e no Excurso poético; a coragem e lucidez da comparação entre o bairro e os campos de concentração nazis bem como o Tarrafal; mostrou-me como em Ossos temos o bairro como cenário passando em Vanda a personagem principal; por fim destaco ainda a luz feita sobre a única obra que não tinha compreendido de Pedro Costa: a instalação The End Of A Love Affair: um homem, num quarto, olha inquieto para o exterior, para o fora de campo, um fora de campo que só ele vê, assim como só Vitalina, Vanda ou Ventura sabem o que vêem quando olham sozinhos para um longe que nos é doloroso alcançar. Uma bela descrição poética e uma aproximação aos segredos da arte de Pedro Costa, isto é, todo o livro.

José Oliveira
Junho de 2019

terça-feira, 11 de junho de 2019





The Bad News Bears, Michael Ritchie, 1976

Em “The Bad News Bears” pouco ou nada se aprende, isto é, se só tivermos em conta os preceitos dos sociólogos canónicos, dos ministérios de educação oficiais, dos grandes pedagogos de secretária, dos partidos conservadores da boa consciência familiar e patriótica... da lengalenga determinista... Na abertura o treinador e atleta falhado de Walter Matthau é enleado por uma luz espessa, brilhante mas perfurada por demasiada granulação da película para  tudo se poder acreditar harmónico; no final, ele e a sua equipa de petizes vão acabar a beber cerveja no primeiro lugar dos últimos. A harmonia é apanhada em linhas convulsas. Pois esse treinador que contrata a sua talentosa «filha» para a quadra de basebol não com palavras belas ou pelo falar de almas entrelaçadas, mas sim por largar umas notas para o que ela realmente almeja, jamais trata a criançada de modo inferior, infantil ou apalhaçado mas sim com trejeitos tão severos como se fosse meter um Mickey Mantle na linha.

É essa a inteligência que não o faz prescindir da sua personalidade nem das crenças que a vida vivida ensinou mas antes fazer perceber aos novos demais da pureza disso mesmo – mesmo nas contradições, mesmo nas falhas. Fidelidade, e complexidade, tanto no bailado cénico que conjuga Georges Bizet com a magia e os milagres dos tacos e do swing puramente americanos que Walt Whitman cantou, como nos pactos calados entre aquele balneário que é um mundo – raparigas, mexicanos, bêbados, bons corações – sempre em genuína evolução e irmandade: modernidade para lá dos rótulos e cadernos de encargos, um por todos e todos por um, mais vale quebrar do que torcer, incluindo no momento da falha técnica e humana no jogo ou para lá dele: sempre em recomposição e aprendizagem, a tentarem perceber, como as bolas curvas, do que trata a tal da existência plena. Michael Ritchie, considerado nos compêndios um realizador de terceira, atingiu nesta simplicidade de afectos e instintos quase todos os modos e géneros do cinema americano. Como quem não quer a coisa e não larga o osso. Brilhante e terno como a espantosa e perfurada luz iniciática das origens, lídima estripada.

terça-feira, 4 de junho de 2019

Felix E. Feist



Felix E. Feist é mesmo dinamite, cepa que não engana, mais um tiro certeiro do festival Cinema Ritrovato, poeira levantada de um baú enterrado fundo demais onde valeu a pena sujar os olhos e a consciência. Mesmo com argumentos vacilantes, trémulos de realismo e nexos inverosímeis entre situações e personagens – que fariam o último master do script doctor ficar chocadíssimo – a mise en scene e o choque magnético com a realidade é de vida ou de morte instante a instante, seja um corpo esgaçado ou a parede de concreto falso que impede a fuga. A fuga, mesquinha ou atómica.

E assim está no mesmo comprimento de onda e com a mesma pressão essencial, na tal distância entre dois máximos consecutivos do campo, cravados entre os fora-de-campo, de um Kendrick Lamar que cada vez que abre a boca ou dispara um beat é para morrer se for preciso; ou do Kawi Leonard das quadras de basket a dilatar o tempo diante dos olhos mortais na construção e posse inata da beleza; a palavra definitiva seja ela qual for e a moral que se tornou sagrada na existência do cineasta espanhol Víctor Erice. 

Dos filmes de 60 minutos que entre 1947 e 51 aproveitaram o templat do género noir para documentar os limites da persistência da garra do passado e da marca a fogo ferrado da memória, para lá do bem e do mal, para lá da argamassa mexida da infância ou da convulsa edificação adulta, "The Threat", em confins e nos cárceres apocalípticos de quem viu uma Grande Guerra pela televisão, nos campos de batalha, ou a distender-se até aos passeios do quotidiano e da normalidade, é Raoul Walsh + Joseph Losey, o meio natural fechado ao humano e o meio visceral que o cospe em redundância incompreensível, isto é, em erro de redundância cíclica. Pequenos filmes, brutais, sujos, improváveis, assustadoramente lógicos.