A propósito do livro PEDRO COSTA de Carlos Melo Ferreira
No Quarto da Vanda foi o
primeiro filme de Pedro Costa que vi. Na verdade, talvez antes tenha assistido
a Casa de Lava e Ossos, numa caixa de DVDs da Atalanta Filmes. Marcou-me
bastante esse díptico, tendo-o visto antes ou depois de Vanda, mas, apesar das
suas singularidades, conseguia perceber neles muitas coisas das centenas de
filmes que eu consumia anualmente por esses anos em que estudava cinema no
Porto. Muitas coisas, certas ou erradas, de Roberto Rossellini a Robert
Bresson, passando até, imagine-se, por Tarkovski. Se alguém que estuda filmes
ou faz filmes só vê filmes, não tem saída, os seus filmes ou a maneira de falar
sobre os filmes chegará somente dos filmes. Mas No Quarto da Vanda não
me fez lembrar o cinema.
Recordo-me das condições em que ele
literalmente me deixou KO como se fosse agora: um auditório gelado, com a luz
do dia a entrar por todos os buracos, ecrã barato e coçado destinado às
apresentações PowerPoint dos arquitectos que dominavam a escola, cadeiras duras
de café, um cubículo concebido para tudo menos para se projectarem filmes. Também
me lembro bem do formato, das condições da cópia e da qualidade do projector:
cassete VHS, possivelmente gravada da televisão, com a janela possivelmente
cortada, uma linha carcomida a ocupar a parte superior da imagem, típica do
analógico e da sua matéria e compatibilidade sempre flutuante, o som vibrante,
rugoso, estridente, as colunas baratas a não acompanharem o revolucionário
trabalho sonoro que rivalizou com as composições pictóricas, o projector quase
de slides tantas vezes a ceder e a esmagar a comunhão e a guerra entre os
dourados e os negros. Uma sessão catastrófica, tecnicamente e porque bem perto
da entrada da sala, que não tinha porta, passavam professores, alunos,
empregados de limpeza, que talvez fizessem de propósito para falarem mais alto
devido à tentativa de apagão do seu espaço de excelência e ofendidos pela banda
sonora de tosses, cuspes, vómitos, hip-hop, e amiúde, heresia, uma peça
clássica de um tal György Kurtág
nos interstícios de toda aquela degradação. Também da parte dos colegas de
turma houve de tudo, dos olhos esbugalhados até ao desespero, passando pelas
longas idas à casa de banho, mas sobretudo, para o bem e para o mal, os olhos
esbugalhados.
Quentin
Tarantino, outro cineasta que dizem estar nos antípodas do cinema de Pedro
Costa, atirou que se um filme for bom, cinematicamente e humanamente
forte, resiste a tudo. Confessou ainda que durante a montagem dos seus filmes
transfere uma versão dos 35 mm para VHS foleira e que se o filme ainda assim
resistir numa televisão antiga, com os enquadramentos falsificados e as cores
manhosas, muitas vezes até a preto e branco propositado, a coisa está lá, existe filme. O que aconteceu
naquela tarde de 2006 nesse infame auditório improvisado da ESAP, onde Carlos
Melo Ferreira leccionou por décadas a fio, partindo pedra lentamente para que
um dia fosse possível mostrar No Quarto da Vanda ou a resistência de
Straub / Huillet (que também nos mostrou) foi ainda assim histórico. Foi
histórico duplamente, ou seja, mesmo ou até por causa dessas condições, uma
obra de arte transcendeu-se para lá de todas as contrariedades, foi a sessão de
uma vida.
As aulas de Carlos Melo Ferreira
eram especiais porque generosas, entre o profissionalismo Hawksiano e uma
ruptura académica que sempre me pareceu vinda da nouvelle vague francesa
de que ele tanto nos falava. No início, antes ainda de ter que marcar falta aos
estudantes de cinema que desprezavam a história do cinema, perguntava aos
alunos que filmes viram durante a semana, o que leram, etc. Depois seguia-se
uma exposição sobre o filme que iria mostrar na parte final da aula, exposição
que normalmente consistia na leitura de um texto seu, a maior parte das vezes
segundo os preceitos de Gilles Deleuze (lembro-me agora que em 2010, quando
voltei a estudar, o Carlos já quase só improvisava). Seguidamente, perante o
desfilar furioso das imagens e sons das constantes obras-primas que ele
escolhia, muitos cigarros, muitos comentários seus que na maior parte das vezes
soavam desconcertantes (certa vez disse que os irmãos Coen de Fargo eram
meninos de coro em comparação com o Jacques Tourneur de Nightfall; de outra
contou que alguns cinéfilos diziam por vezes encontrar Oja kodar em Lisboa
saída das névoas de F for Fake) e mais cigarros, muitos cigarros até o Estado
os ter proibido nas aulas.
Mas durante as três horas que No
Quarto da Vanda dura, o Carlos não usou Deleuze, tenho quase a certeza.
Falou-nos de pintura, de composições clássicas, da posição dos corpos no espaço
confinado, do fora de campo sonoro que extravasava o quadro para lá de todos os
limites, de constelações secretas e ínfimas que pediam muito, que pediam tudo
aos nossos sentidos, ao nosso olhar, concentração e coração. Falou-nos em Johannes
Vermeer, falou-nos em Peter Paul Rubens, mas disse-nos sobretudo que Pedro
Costa trabalhava por amor: amor aquelas gentes, amor aquele bairro, amor a uma
fatia gigantesca de humanidade que normalmente o cinema não tem coragem de se
aproximar. Falou-nos também de confiança, confiança da Vanda, do Pango e de
muitos que o deixaram entrar nos quartos e becos das desaparecidas Fontainhas,
para Costa lhes devolver esse gesto com toda a paciência e saber formal que
detinha. Costa, e, contou-nos o professor, uma pequena câmara mini-dv com que
gravava centenas de horas, deixando-nos espantados, nós estudantes que citávamos
Godard, acreditávamos na desconstrução, nas quebras de raccords e na
câmara solta. Pensando agora nisso, quase aposto que não entrou nem calcorreou os
caminhos pedregosos do cinema moderno… Quando certa vez conheci Pedro Costa nos
laboratório da Tobis e lhe perguntei como é que ele conseguia aquelas imagens, respondeu-me
que não era mágico, que todos o podiam conseguir.
A partir daí os horizontes
expandiram-se imenso para alguns. Até à estreia de Juventude em Marcha,
meses depois. Nesse intervalo li as entrevistas de Costa a Serge Kaganski ou a Jaques
Lemiére, mas também as mais recentes, sobretudo uma em que ele disse que John
Ford nunca teve uma ideia de cinema, antes crenças fortíssimas para imagens e
sons. Em Juventude em Marcha, sobre o qual Carlos Melo Ferreira não
teceu considerações mas apenas nos pediu encarecidamente para irmos ver, descobri
que era possível elevar em digital o “miserável” Ventura aos píncaros colossais
do Woody Strode de Sergeant Rutledge. Ou como se formularia melhor
posteriormente, transformar um Zé-Ninguém, um John Doe, num príncipe.
Portanto, se o cinema de Pedro
Costa foi muito importante para mim em termos de cinema mas sobretudo em termos
humanos, devo-o a Carlos Melo Ferreira, que continuou a escrever sobre o filmes
seguintes, sobretudo destacando o compromisso de vida e de morte com a
comunidade que permite tais filmes. Neste livro está lá tudo isto, e ainda
mais, de que destaco o que aprendi:
- um conceito e uma visão de “arte
do cinema” complexa, que inclui a disjunção entre cinema e arte para uma
articulação a um nível mais profundo; a importância fundadora e salvífica de Casa
de Lava; a integridade e inteireza de todos aqueles seres mesmo no mais
profundo sofrimento; que para Pedro Costa o cinema é uma arte equiparada às
outras grandes artes estabelecidas (música, pintura, até arquitectura, etc.);
ainda, conceitos para mim novos: o Inciso espacial e a análise exaustiva
do plano-sequência com profundidade de campo, bem como o consequente
desenvolvimento da iluminação em negro sobre o negro; o Inciso temporal
e a distância justa, «o tempo que escorre no vazio» quando os personagens saem
de campo, como escreve mais à frente; o Inciso audiovisual desdobrado
para a “mistura audiovisual”, o falso que pode tornar tudo mais verdadeiro,
sintetizando no final um primitivismo que rasgou muitos caminhos para o futuro;
passando pelo conceito misterioso de Inciso artístico, que não é
meramente a soma dos anteriores, elaborando com precisão sobre o tipo de beleza
presente em cada filme e sobretudo na trilogia das Fontainhas --»
distendendo-se aí para a consciência social e política das formas; ainda o
caudal de pensamento sensível e comparativo que mergulha no Excurso
cinematográfico e no Excurso poético; a coragem e lucidez da
comparação entre o bairro e os campos de concentração nazis bem como o
Tarrafal; mostrou-me como em Ossos temos o bairro como cenário passando em
Vanda a personagem principal; por fim destaco ainda a luz feita sobre a única
obra que não tinha compreendido de Pedro Costa: a instalação The End Of A
Love Affair: um homem, num quarto, olha inquieto para o exterior, para o
fora de campo, um fora de campo que só ele vê, assim como só Vitalina, Vanda ou
Ventura sabem o que vêem quando olham sozinhos para um longe que nos é doloroso
alcançar. Uma bela descrição poética e uma aproximação aos segredos da arte de
Pedro Costa, isto é, todo o livro.
José Oliveira
Junho de 2019