As sequências tonitruantes, a mata-cavalos, praticamente
indistintas cinematograficamente que abrem Rambo:
Last Blood e que também parecem feitas para comprovarmos e comprarmos a
revolução do sistema sonoro Atmos que propaga as ondas quebradas e requebradas
sem limitação espacial, são apenas uma rampa de lançamento justificativa do
contrato com os shoppings que permitiram a sua produção; mas a rapidez com que
deixámos o caos audiovisual e começamos a entrar no território do rosto de Sylvester
Stallone e assim no território do cinema é praticamente Hawksiana e funcional, despachando sem pestanejar todo o supérfluo
rumo à pastoral americana que virá como um sopro limpar o dispensável e a
mácula; pastoral lenta, elegíaca e elementar quando importa, comprometida com o
meio e com o espaço, com o que existe e igualmente com as almas; com os vivos e
com os mortos e com o rasto impossível de apagar de tudo o que habitou esta
terra.
Assim que John Rambo volta mais uma vez a casa, enquadrado
pelo caminho de terra batida e pela caixa de correio anacrónica, tudo pode
entrar em sentido novamente, embates particulares incluídos; a desordem da solidão exterior
ao seu lar (toda a política do medo em fora de campo, de Trump às catástrofes
naturais) volve-se imediatamente ordem de comunhão a procurar, valendo a
comunicação entre todos os elementos desse mundo dentro do outro mundo perdido,
à maneira de John Ford. Os homens falam com os cavalos, têm café na mesa depois
da hecatombe, a companhia incomensurável de uma Maria de bom coração que aquece
mais do que qualquer bebida quente, e um recolhimento que mesmo na convulsão,
salva.
Tudo muito lento na outra comunhão, a da câmara de filmar
com o mover e o estado do corpo e do espírito do protagonista; mesmo em planos
aéreos, feitos com drones ou assentes em velhas gruas mecânicas, o ritmo é o da
observação, da contemplação pura, óptica, o da fusão, máquina e humano: John
Rambo com o seu cavalo em paz com os anjos no picadeiro é uma pastoral
puramente Cormackiana, ou seja,
imbuída dos bons sentimentos mesmo no vendaval e no acto irracional e destrutivo
sempre à espreita.
«Antes que o potro se
pudesse erguer, John Grady agachou-se-lhe sobre o pescoço e puxou-lhe a cabeça
para o alto e para o lado e prendeu o animal pelo focinho, com a cabeça
comprida e ossuda apertada contra o peito e o fôlego quente e adocicado do
cavalo a brotar dos poços escuros das narinas e a banhar-lhe o rosto e o
pescoço como novas de um outro mundo. Não cheiravam a cavalos, aqueles animais.
Cheiravam àquilo que eram, a animais selvagens. Ele segurou a face do cavalo
contra o peito e sentiu, ao longo do interior das coxas, o sangue a pulsar
através das artérias e sentiu o cheiro do medo e pôs a mão em concha sobre os
olhos do cavalo e afagou-lhos e nem por um momento deixou de falar com ele,
articulando as palavras em voz baixa e firme e explicando-lhe tudo o que
tencionava fazer e cobrindo os olhos do animal e afagando-os para expulsar o
terror».
Outro John, John Grady, o protagonista de All the Pretty Horses de Cormac
MacCarthy, é, como nos diz o tradutor do livro para português, Paulo Faria,
genuinamente bom, mas também, como se verá na sua epopeia, um selvagem que se
interessa por tudo, por muitas coisas e polos diferentes. Está com um pé no seu
Éden nostálgico e palpável, e com outro no infernal lado negro que não
desdenha, por justiça com a criação. Também Rambo tem os seus túneis e as suas
escavações miseráveis, também fala com o seu cavalo, ensina-o e aprende, troca
confidências, puramente humanos; e também tem o seu altar dentro de casa, o seu
quarto verde de Truffaut, onde pulsa energia vital. Está no reino dos céus,
onde não quer acreditar que sabe que voltará a sujar-se, lá fora. O reino dos
céus, semelhante ao homem que semeou a boa semente no seu campo, dizem as
escrituras, e por onde John Rambo plana a cavalo com uma sua filha, antes das
misérias e dos pecados do mundo. Onde deparam com uma árvore inviolavelmente
paradisíaca e Kiarostamiana, ali,
onde os sete e os setenta estão ao mesmo nível. Enquanto os homens dormiam,
veio o inimigo dele, semeou o joio no meio do trigo e retirou-se, continuam as
escrituras.
A partir daí Stallone não vai quebrar promessas sagradas nem
meter em cheque a sua ética original e inescapável e Rambo: Last Blood não se tornará maniqueísta, politico por
politico, muito menos Republicano ou partidário, palavras proibidas e abjectas
nesta transcendente morfologia complexa. Porrada por porrada, action for
action, dente por dente; o momento do apagamento da sua pequena amada é dos
mais sublimes do cinema nestes tempos anti-emotivos e calculados, quase cinema
mudo, quase Dreyer do velho Oeste, a falar com a literatura e a pintura veladamente
ultra romântica – conceito no qual o clamoroso paradoxo é a chave.
«Mas sabes tu o que é
um homem de coração despedaçado e morto! Se fala, as suas palavras são
terríveis e confusas como seriam as de um espectro. Se olha, o seu olhar tem
centelhas de fogo que fazem aquecer as faces virgens como as da tua amante. Se
respira, o seu hálito importuna e enjoa como a exalação de um cadáver!»
vociferou Camilo Castelo Branco, tal como escreveu com outros ferros em brasa
William Faulkner, Balzac ou Pascoaes. Preces românticas e vinganças românticas,
concedidas pelo terror do ultra real.
Sob a platina de um luar que lhes recorta as silhuetas
vacilantes (e sem que o color grading
dos blockbusters americanos ou dos blockbusters festivaleiros de prestígio tome
conta do campo todo), John Rambo pede à sua filha amada que mantenha os olhos
abertos e faça frente à lenta consumição programada lá fora, fala-lhe da sua
infância prodigiosa, de como ela consegue sempre tudo e conseguirá, de todas as
conquistas ainda possíveis… e conta-lhe talvez o que nunca lhe tinha contado,
nem a ninguém: que quando regressou a casa das guerras era um homem perdido e
ela mostrou-lhe algo que nunca tinha visto.
A luz incompreensível e a última lágrima em câmara lenta de
milésimos de segundo, enleados em harpas de anjos da prodigiosa partitura de
Brian Tyler, e também estamos nos altares sacros do renascentismo lírico e imediatamente do seu
suicídio. Tudo obscurece ainda mais, John adquire o coração despedaçado, a
fala, os olhos e a respiração Camiliana, pisa no acelerador, quebra
literalmente a fronteira e a politica, a árvore de Kiorastami incendeia-se, e volve-se
um John Wayne e um Clint Eastwood, redimidos no boomerang da violência acumulada
devolvida fatalmente à grande violência americana e aleatória.
Bastaria essa sequência para Sly estar entre os maiores, mas
quando no final arranca a ferro frio o coração do violador, até o Lautréamont (ou
Barbey d'Aurevilly) bem compreendidos e não só aceites pelo lado satânico e
picaresco entram na equação, e já não compreendemos nada, como diz Eastwood no
termo de A Perfect World, perfeita epigrafe
neste capitulo final. Um homem que nunca conseguiu regressar a casa mas que
nela ficará a conservar os seus fantasmas e as suas memórias até ao fim.
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