José Oliveira
Abril / Maio de 2020
O Burke Devlin interpretado
por Rock Hudson em THE TARNISHED ANGELS de Douglas Sirk continua a ser a minha
personagem preferida na história do cinema. Um jornalista alcoólico que troca
os factos mortos («dead facts») que fazem as delícias dos ávidos editores
cegos, surdos e burros por aquilo que não consegue perceber, rastejando na
sujidade, no lixo, na lama, na indecência, e, como um Príncipe romântico e
solitário, mantendo-se essencialmente limpo. Jornalista meio espantalho e meio
palhaço num mundo de seriedade virada do avesso, manda às ortigas a cobertura
política prestigiosa, a falaciosa pertinência da actualidade forjada, preferindo
entregar as chaves de casa a uns semelhantes, despidos, eternos, irracionais,
perdidos na entrega total às paixões, fatalmente suicidários, descobrindo neles
a beleza e o amor absolutos, provocando a estupefacção do seu editor e dos
calculistas como ele.
#
I, plano fixo único, geral, picado.
Campo dos Mártires da Pátria, sete da tarde,
sexta-feira, nem sol nem chuva. Um homem dos seus quarenta anos está atento ao
passeio do seu cão. Coxo, roupa casual azulada, baixo, gordinho, com ar de
pessoa afável. Troca diversos olhares de incompreensão com os poucos passantes.
Está atento ao deambular do seu animal,
sempre com sacos de plástico a saírem do bolso, prontos para entrarem em acção.
Robusto, pêlo amarelo-torrado, de ar simpático,
pesado e leve, o cão vai correndo livre, consciente da protecção incondicional,
da admiração mútua. Sacos do Pingo Doce para cá e para lá, a abarrotarem, um
monte indistinto de plástico e papel, carne, leite, produtos de limpeza, papel
higiénico, tubos e embalagens a saltarem para fora. O cão vai mijando nas ervas,
nas flores vermelhas e violáceas, o dono em alerta desvia o olhar uns segundos
para olhar uma velhinha corcovada com o seu fardo, dois nepaleses na casa dos
trinta, um com máscara comunitária e outro sem, lado a lado dir-se-ia
perigosamente, fumando dir-se-ia perigosamente, um casal mascarado a voltar
apressadamente ao lar com duas baguetes da Padaria Portuguesa. O cão avança
furiosamente sobre uma planta com aspecto de couve achatada, estanca, caga,
foge, efusivo. O dono faz o seu trabalho, apanha a merda com um saco plástico
para dentro de outro saco igual, dá um nó, pacientemente, a mancar, resoluto,
inexorável, e coloca-se de sentinela, novamente. Mais um autocarro sem
passageiros, o condutor a beber água no chafariz junto à quadra desportiva
trancada a cadeados, fumando, olhando para o relógio. Caí o crepúsculo.
II, planos inteiros, planos americanos, planos de
peito, planos individuais, planos de conjunto, travellings, campo-contra campo?,
posição da câmara à altura do homem, talvez não tentar o grande-plano.
Jardim Constantino, seis da tarde, sol duro coado
pelas imensas árvores. Cabine telefónica PT sem clientes, do
lado da nova esquadra da PSP, a fita proibitiva desfeita, um carrinho do Lidl
dentro a proteger a roupa da cama, a cama e o vestuário de alguém. Num dos
bancos a Leste, cinco pessoas, um deles ostentando um casaco camuflado da
tropa, tem um saco plástico reutilizável Pingo Doce desbotado de cinquenta
cêntimos que é a sua casa, seguro entre as pernas, dentro os copos de plástico usados,
pratos usados, mantas, cuecas, meias. No banco Sul, o grupo mais animado. O
elemento mais novo e espadaúdo faz a festa, é o único sem barba, ar marroquino,
chega com um litro de vinho tinto maduro Minipreço em embalagem tetra-pak, dá
um beijo na face a um companheiro gordinho, careca, da mesma idade,
sensivelmente. Dois deles estão de mãos dadas, entrelaçadas, ora às festas, ora
a jogar braço-de-ferro. O mais velho dos quatro tem duas medalhas ao peito,
bolorentas, indecifráveis, calças de pijama com uma das pernas arregaçadas até
ao joelho, varizes, carne viva friccionada, pus amarelado. A Norte, as mesas de
jogo ostentam mais fitas desanimadoras de riscas brancas e vermelhas, três
reformados rememoram velhas partidas da bisca ou da sueca, antigas discussões,
os que partiram, as mulheres. A Oeste uma jovem indiana fala através da máscara
comunitária azul escura para um conterrâneo novo e sem cabelo, parece ser uma
primeira vez, parecem dizer que as coisas estão melhores, que o pior já passou,
que já podem voltar àqueles bancos, trocam alguma coisa. Ele levanta-se, vai
falando ainda, aponta para o relógio, aponta com o queixo para a frente,
sorriem, segue o seu caminho. Um minuto passa e um jovem cabeludo de máscara
comunitária verde e penosamente manufacturada vai ter com ela, conversam por
uma hora. Os indigentes do Sul repartem o vinho, o do meio tira do bolso uma
caixa plástica com amêndoas de chocolate coloridas, é o que tem a roupa mais
suja e coçada, reparte-as. O elemento que costuma levantar a louça suja na
esplanada fechada do centro do jardim não bebe, não fala, olha para o Quiosque
Hamburgueria Mustarda, longamente. Abana a cabeça compulsivamente e interage
com o ar, parece escutar músicas ou lengalengas de outrora, é o único deles que
tem máscara comunitária, branca, limpa, papel vegetal a transbordar nas pontas,
dificuldades várias com a cigarrilha. No banco Leste reparte-se pão entre o
velhote da casa ambulante marca Pingo Doce e o vizinho do banco do lado. Os
reformados batem com garrafas de água plásticas vazias nos joelhos e nas
canelas, numa melodia sem história. Um homem não muito velho, de barbas
brancas, fato-de-treino creme esfiapado, marca Ardidas, anda descalço para trás
e para a frente, para trás e para a frente, como que a marcar um ritmo só dele,
uma memória só dele. No antebraço pendura-se um saco estraçalhado marca El
Corte Inglés, a transbordar de pão duro. O barulho seco e o eco seco que o pão
faz quando cai no empedrado torna-se o único motivo para os vizinhos voltarem a
olhar para ele, dura milésimos de segundo. Um rapaz da Uber estaciona num bloco
de betão junto das mesas de jogo em estado de sítio e retira do gigantesco saco
verde térmico uma bebida energética Monster verde 500 ml. Perto do centro,
entre Leste e Sul, sentam-se quatro reformados, um trabalhou toda a vida no
balcão dos correios ali perto, outro em estações da CP na região de Lisboa,
outro reformou-se cedo por causa do coração, outro foi afinador de máquinas na
Alemanha por mais de trinta anos. Começam uma partida de sueca, num banco
despido, áspero, carregado de pólen e cheiro primaveril, o mais novo tem o
isqueiro em punho e é o único sem qualquer tipo de máscara comunitária ou
cirúrgica, os outros têm todos máscaras cirúrgicas cedidas por um funcionário
da junta de Arroios. Juntam-se a eles dois espectadores, um ex-bombeiro
voluntário, um ex-empregado de mesa do restaurante Sol-Rio, sem máscaras
comunitárias, sem máscaras cirúrgicas. No sobrevivente balcão do quiosque
fechado alguém absolutamente comum devora uma salada de frutas, embrulhada numa
folha de prata, sem qualquer tipo de talheres. Uma jovem atleta, de máscara social
cor-de-rosa e viseira de acetatos, sapatilhas Nike cor-de-rosa, contador de
calorias no braço esquerdo, óculos de sol pretos arredondados, gel
desinfectante preso na cintura, parada, faz uns alongamentos na fonteira do
jardim, respira fundamente, cruza-o fulgurantemente de Oeste para Leste,
desaparece da vista. O homem das barbas brancas, continuando para trás e para a
frente, para trás e para a frente, inaugura uma melopeia inidentificável,
pedregosa, fazendo lembrar um profeta desistente, segundo as palavras do homem
comum da salada de frutas. Na pastelaria Aloma, a fila para o café, pastéis de
nata, pão, etc., quase chega à dúzia de pessoas, afastadas pelo menos um metro
umas das outras, notoriamente conscienciosas. No prédio por cima do Novo Banco
o Hastag #vamostodosficarbem recebe os derradeiros raios de sol.
III,
planos subjectivos, panorâmicas horizontais, subjetiva indireta livre?
Avenida
Almirante Reis, nove e meia da noite, terça-feira, lua cheia, noite clara,
quase dia cinzento, quase eclipse inaudito. Uma bola de ténis é constantemente
lançada pelo passeio adiante, acto contínuo, um pequeno cão, preto e branco, às
manchas irregulares, corre para ela, recolhe-a entre os dentes, devolve-a ao
dono. Ritmo cadenciado, sem falhas, automático. O dono está junto à tenda de
campismo Quechua, esverdeada, azul, descorada, gasta, montada na reentrância de
um prédio, a tocar no centro de formação Do It Better: Home, a dois metros da
entrada de moradores. A bola é novamente atirada, o cão volta a percorrer um
percurso semelhante, a direito, longitudinal, vinte metros, apanha a bola com
um pequeno esgar, um salto, volta, devolve-a. A observar tudo isto, do outro
lado da avenida, ao lado do Pomar Fresco, o vizinho da frente, resmungão,
mirolho, mudo, quarentão de cabelo branco e duro, óculos de sol Ray-Ban estilo
aviador notoriamente contrafeitos no peito da camisa aberta branca suja, lar composto
de caixas de cartão do Continente com cobertores fétidos e nauseabundos.
Esbraceja, pontapeia a atmosfera, rasga a noite e o luar em movimentos
cortantes, atira uma pedra que apenas chega à placa central divisória, apanha a
beata atirada por um passante ousado, não confinado, em desregra. O dono do
cão, de cabelos compridos, oxigenados, saia azul-bebé pelos joelhos, top
cor-de-rosa choque colado à pele estriada, soutien branco sujo a sair do top e
dos minúsculos mamilos, saltos altos pretos, tipo estiletes, sem meias, pele
das pernas coberta com pêlos russos, barba de três dias da mesma gama, agarra a
bola na mão, ri-se, bate na tenda, pede a alguém para sair numa voz grave e
cavernosa e constipada, dois rapazes na casa dos trinta, quase gémeos, de
calças de ganga azuis e t-shirts pretas indistintas, cabelos pretos e barba de
uma semana, largam a tenda, olham para o vizinho do outro lado da avenida,
rieem-se, passam um cigarro de um deles entre mãos, o cão guincha, ladra, tenta
chegar à bola, entrelaça-se nas pernas do dono. Um dos trintões mexe no
telemóvel, um poderoso ritmo reggaeton começa a bombar de uma coluna interior à
tenda, dança-se, eles três, o cão ao colo, uma das mãos pega ainda num
deformado peluche-pinguim monstruoso, uma mescla intraduzível. A sirene que
devora infernalmente o macadame apenas se torna mais um ingrediente do caldo. O
vizinho do outro lado da avenida recolhe-se, paralisado.
IV,
travellings, planos de conjunto, frontais e laterais, talvez não tentar o grande-plano.
Rua
Jacinta Marto, Rua da Escola do Exército, Rua José Estêvão, doze e trinta, sol praticamente
a pino, poeira. Fila de pessoas desde a Escola do Exército até à Jacinta Marto
em direcção à sopa social da Academia Militar. Um carro da polícia municipal defronte
do portão, ainda fechado. Do lado da frente da Academia, a entrar pela José
Estêvão adentro, mais pessoas, umas em pé, que preferem comer mais tarde para
não gramarem a fila, outras prostradas nas bordas das lojas fechadas, em lajes
e em degraus, junto aos cadeados e aos avisos de clausura, admirando o
silencioso espectáculo. Distância social não procedente, não praticável, não
obrigada. Uma massa distinta, todas as idades a partir dos vinte, donas de casa,
jovens bem-parecidos, colaboradores em regime Layoff sem nada com que se
entreterem a conversar com os que esperam pela comida, gordos, magros,
escanzelados, brancos, pretos, mulatos, curtidos pela torreira do sol, avós
velhinhas de cabelos brancos saídas de contos infantis do antigamente, um ou
outro brutamontes com cara de poucos amigos, apátridas, imigrantes, indigentes,
escorraçados, refugiados na corda-bamba, jogadores, perdidos da vida, sentinelas
de alguma coisa ainda, perfilados, paralisados, sonolentos. Alguns destacam-se
por um pormenor discordante, excêntrico, subtil: um jovem oriental de boné Air
Jordan cor de vinho, agachado, um preto de camisa exótica com quase todas as
cores conhecidas, bamboleante, numa dança desenfreada na estrada interrompida,
talvez para o tempo passar mais rápido, dois a lerem livros, um na fila com um
calhamaço de capa espectacular, outro no chão com um livro escuro corriqueiro,
um branco de cinquenta anos, baixo, cabelo branco, comprido, desgrenhado, casaco
de couro preto coçado, calças de ganga pretas, barba de uma semana amarelada do
tabaco, como uma estrela de rock sem cheta, a contar uma história a um homem da
sua idade vestido de preto, roupas largas, de muletas, cabelo ralo, gordo,
moreno, de aspecto muçulmano: logo no primeiro dia em que o barbeiro da Forno
do Tijolo abriu portas na primeira fase de desconfinamento, um tipo bem-posto
dos seus cinquentas foi cortar o cabelo com um miúdo giro, depois de ter
cortado o seu mandou o indiano cortar o do rapaz, foi tomar uma bica, uma hora
depois não tinha aparecido, o indiano perguntou ao rapaz pelo pai, ele
respondeu-lhe que não era o pai dele, que era um desconhecido que o encontrou
na rua e que lhe perguntou se queria ir cortar o cabelo com ele. Conclusão do
contador da história: esta merda vai ficar toda igual. Risos. Doze e quarenta e
cinco, mais poeira e mais ruído das máquinas das obras que recomeçam trabalho
em frente ao hospital Dona Estefânia. Ruído ainda dos passos das botas na brita
de dois militares que se aproximam de dentro da Academia. O sol em pino
absoluto. As portas abrem-se. Um rumor humano. A fila avança. O mundo desperta,
equilibra-se.
V,
Teleobjectiva 70-300 mm do lado do Novo Banco, lentes despolidas, planos
cerrados, perscrutadores.
Jardim Constantino, onze da manhã, chuva fina não
coada pelas imensas árvores. Espaço praticamente vazio, cinzento, lúgubre, solo
um pouco viscoso pelo escorrer de vinho e cerveja e sobras da festa recente,
brilhante, ar purificado, leve, andadeiro. De volta do quiosque fechado e por
de baixo do toldo que teima em estar disponível, seis indivíduos, uns
protegidos com capas, outros no chão com cobertores ou o próprio casaco, um
deles a comer qualquer coisa de um saco branco ao balcão teimoso, ainda outro
de tronco nu dentro de um lençol, parece sacudir um casaco ou manto pesado.
Perante a chuva fina a paisagem surge velada, a massa humana mesclada, mesmo
assim um cão preto e de assinalável porte espeta o focinho para fora do seu
caixote, junto ao dono recolhido.
#
«Quatro horas
antes eles não tinham tecto e eu morava nesta casa, e agora passa-se
exactamente o contrário. Dir-se-ia que a pobreza obedece a leis cósmicas
semelhantes às que regem o nível do mar; dá ideia que, se os corpos dos
vagabundos que dormem nos bancos de jardim e nas salas de espera das estações
ferroviárias não perfizerem um certo peso, o mundo é bem capaz de se virar de
pantanas, cuspindo-nos pelos ares, desvairados, aos guinchos, a esbracejar,
quais estrelas cadentes, até desaparecermos no vazio.»
William
Faulkner, em PYLON, o livro no qual THE TARNISHED ANGELS se baseia. (tradução:
Paulo Faria)
[Publicado originalmente na rubrica Sala de Projeção do site da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema: http://saladeprojecao.cinemateca.pt/casas-queimadas/]
Sem comentários:
Enviar um comentário