15-9-2020
Saí de madrugada do bas
fond da antiguidade e estacionei agora o velho na estação de serviço de
Estarreja para me abastecer de café e cigarros com um whisky de transição.
Devia estar a caminho de Cacela-a-Velha…
Vamos ao que interessa!
Adorei “Os Conselhos da Noite”, um dos mais belos filmes que
vi na última década. Comoveu-me logo de entrada: a silhueta cansada na linha do
horizonte em lúgubre aurora / o ranger azul do portão / a doença: fogo que arde
sem se ver / a passagem de testemunho do Zé Lopes, o Homem de “Longe”.
A morte a nascer da vida e a vida a nascer da morte. Um
paradoxo ambulante.
Aí vai o Roberto, aí fomos nós ontem à noite, mais um périplo
destes e desço às catacumbas… Por momentos quase vi os túmulos pesados dos
antepassados bracarenses, temporariamente arrebatado para a escuridão… Posso
dizer-te que o filme continuou para lá da palavra “fim”.
Filmaste uma Via Crúcis boémia e o Roberto carrega o filme às
costas como Cristo a cruz. Mas não só…
(um golinho para embalar)
Por vezes parece que a
sua vida se transformou numa quixotesca ficção de Hollywood. Talvez tenha visto
demasiados filmes ou lido demasiados romances de cavalaria como o cavaleiro da
triste figura. Ou então é o álcool que faz confundir o plano objectivo com o plano
subjectivo. Ou deixou-se habitar pelo fantasma do escritor frustrado… Vejo-o
deprimido e eufórico, debaixo e acima da cidade, atalhando caminhos de
iluminação divina e limpando o cu da garrafa ou o chão do bar em trágica
zombaria. Vejo-o arrastado e sugado por buracos ou gargantas de pedra fria, a
fugir de si mesmo… Vejo-o em grutas subterrâneas inundadas de vinho e música
barulhenta e como um eremita numa cela de frade. Vejo-o a baptizar a Sara de
Sarah Jane (sci-fi) ou inventar duelos à Jess James… Vejo-o rezar com toda a fé
e logo a seguir conspurcar-se na noite… Vejo-o ouvir música autodestrutiva e os
sinos da ressurreição… Vejo-o almejar a salvação ou a picar-se como o
escorpião… Vejo-o imaginando estrelas, procurando sensações baratas, transportando
a tristeza para claustros de mosteiros… Vejo-o jogar à sardinha com as vidas
passadas… Vejo um yo-yo de homem, das
torres imponentes à lua na valeta… Vejo-o encafuado, a cuspir os pulmões ou a
respirar num efémero idílio abraçado a um cavalo… Vejo-o numa ânsia de
encontrar um projecto, como se estivesse à espera de alguma coisa e ao mesmo
tempo não esperasse nada… Vejo-o a polir esquinas ou na mesa do canto a pensar
sabe-se lá no quê, talvez na próxima bebida… Vejo-o em embates familiares e na
profundidade mais esventrada… Vejo-o perseguido por lembranças, consumições,
oportunidades desperdiçadas por imaturidade, medo, injustiça ou paixão pela
fatalidade… Vejo um dente negro vacilando na boca infernal… Vejo as noites
perdidas do pobre Roberto Dias… Vejo os travellings da sua errância de flâneur e o ponto perdido no espaço. Vejo
um jovem Hamlet embriagado na dúvida, labirintos, corredores ou túneis sem
fundo à vista. Vejo um ser febril: os que o amam só se podem queimar.
O filme é um caleidoscópio que não pára
de girar e deixa-se levar sem rumo definido por um actor magnífico. Gosto
dessas panorâmicas ascendentes e descendentes, casam maravilhosamente com a
incessante ascensão e queda do protagonista, assim como a câmara a vogar por
detalhes arquitectónicos e históricos e pelas ruas mais anónimas com tesouros
de personagens, enfim, a vida na sua incandescência, com a língua da rua e calão
sem paninhos quentes.
Sujidade e graça, câmara a rezar nas
alturas para depois escavar como uma toupeira na fossa, tudo para agarrar a
cidade pelos cornos, a Braga libertária e castradora, putona e ascética, a
Braga que te ama e odeia, pecaminosa e redentora, do libertino Pacheco ao
recalcitrante Camilo.
Braga personagem,
altos e baixos, céus e infernos, ruínas, igrejas, bares, bairros, bordéis,
mosteiros, jardins, comércios démodés,
praças, ruas, esquinas, cinemas, pavilhões, tascas, antros, túmulos, retratos,
janelas, sombras, geografia sentimental e secreta. Braga possuída inteira e
fluida, em plano sequência, às vezes mais rápido, outras vezes mais lento,
conforme a disposição vital. Braga na contraditória e desconcertante
diversidade, filmada à altura, sem piruetas de estilo, popular e boémia, apesar
de os bandidos a quererem para inglês ver. Braga que no seu leito acolhe todos
sem discriminação - coxos, desempregados, marialvas, pró-activos, estudantes,
putas, chulos, losers, advogados,
porteiros, músicos, betos, bêbedos, beatas, ateus, bailarinos, comerciantes,
uma multidão de gente de toda a laia que povoa a sua solidão – e a todos
atribui o nobre título de poetas, pois a verdadeira poesia está na rua e não
raras vezes vem da sarjeta. Braga que nos diz, pela voz do bailarino, que a
“vida é um perpétuo baile” e que a noite e o dia, a melancolia e a alegria, a
morte e a vida, são faces de uma mesma moeda. Roberto em Braga, comédia humana
à procura do tempo perdido.
Braga, “palco vivo onde vários actores representam diversas
peças” (cito de memória o Pessoa), a cena da dança macabra do bailarino, como
se fosse o esqueleto do Roberto (“há sempre uma cidade dentro de nós, há sempre
solidão dentro de nós”); a cena no pavilhão do ABC, essa recordação presente
dos tempos felizes, sem as responsabilidades cabronas; a cena da roulotte onde o
riso é o dinheiro dos pobres; o manguito das horas certas; o “momento
transcendente que alimpa um pouco a sujidade citadina” (outra camada fascinante
é o escreviver o próprio filme); as estrelas que só existem no firmamento dos
amantes.
Uma órbita elíptica em que as personagens se tocam, afastam e
se voltam a encontrar.
Adoro a Sara (Marta Carvalho), o sol da meia-noite, o fósforo
riscado na Sé La Vie, a estrela
cadente, o amor fugaz que permanece, a amada de noite e a ignorada de dia (que
cena fabulosa a despedida presencial dos amantes, ele de costas, ela de frente
a oferecer-lhe tudo: indiferença, sacrifício, coragem e cobardia no mesmo
plano).
Seja a vida um sopro, mas lá está ela ao virar da esquina sob
a forma de uma bebida ou de um encontro súbito com um amigo. Que maravilha a
câmara fixar-se no “comboio descendente”, a canção distribuída generosamente
pelos pequenos grupos, todos no comboio descendente que é a vida, da gargalhada
ao fim da linha; e a música a circular como uma garrafa fraterna para o brinde
solidário dos solitários.
(pausa para mais um whisky)
Sei que é um filme feito com a tua
própria carne e adivinho algum sofrimento. Terás que passar pelo crivo do
Presidente Honorário do cinema experimental asiático pós-moderno, do Alto
Embaixador para o Cinema da Não Emoção, da Associação dos Cogumelos
Cartesianos, do Comité por um Cinema Responsável para com a Sociedade
Contemporânea, do Sindicato das Lombrigas e do Ministro dos Saldos
Universitários! Sabem tudo esses caralhos, excepto fazer papas de sarrabulho.
Serás rejeitado pelos festivais e pelos críticos, pois há uma
certa grandeza anónima neste filme, feito de coisas comuns e simples, para lá
das modas, que nunca fará montra. Dirão os encartados que o filme não é
suficientemente “moderno” nem socialmente comprometido… E também não será
novidade para ti que a maior parte dos curadores, programadores e críticos foi
recrutada entre os fariseus.
De há dez anos para cá, imagino que o panorama não se tenha
alterado, os mesmos alarves do cinema abacalhoado à Miguel Gomes (para quando a
nomeação para a Secretaria de Estado dos Brinquedos?), as mesmas
galinhas-chocas dos ovos moles do Nicolau, as mesmas produtoras milionárias de
influências, consta que um cara de cu disse gastar milhões de euros em
jornalistas (vide cineleaks). Enfim, o cinema não escapa ao estado de podridão
que medra no país, onde os honestos são apenas os mais caros…
Se querias ter sucesso, devias ter metido um crocodilo-bebé
(com patrocínio da Lacoste) a passear na Sé de Braga, mergulhares as tuas
personagens num decorativismo colonial a preto-e-branco, ires até à Amadora de
câmara ao ombro, usares uma lanterna na cabeça para procurar uma espécie
exótica, ou adaptares um clássico da literatura (de preferência do Plano
Nacional de Leitura). Aí críticos encantados, aplauso dos espectadores
inteligentes, o belo sexo começa a frequentar a sala de montagem, a produtora
prospera, os festivais abrem as pernas, o ica os seus orçamentos afectivos…
O cinema português só se fodeu quando deixou de andar nu.
Hoje não temos críticos, temos costureiros à la mode com uma bela filarmónica
de arrivistas e trampolineiros.
Prepara-te, pois, para o inventário de imbecilidades que
lerás a propósito do filme. Eles não gostam da artilharia da vida, estraga os
cosméticos…
Vão embirrar com a gíria de Braga, com os actores porque são
actores, com os não actores porque são não actores, vão dizer que as geniais elipses
são falhas de ligação, que a cena se sobrepõe por vezes à narrativa, não vão
entender o desequilíbrio vital do protagonista e da realização e ainda apontar
um ou outro erro de gramática. As cagadas do costume em prosa apurada. E,
claro, pecado capital: o filme não gira à volta do umbigo de Lisboa.
Como quase sempre, só o tempo fará justiça e colocará este
filme no lugar que merece. O resto é espuma.
E agora sigo viagem, um abraço,
Mário Fernandes
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